quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Missão Impossível - Protocolo Fantasma


Vale o ingresso e a pipoca


Esta produção marca a migração do diretor Brad Bird, de animações como “Os Incríveis” e “Ratatouille”, para o mundo live-action e a verdade é que acabou sendo bem-sucedida, muito embora inegavelmente ainda tenha vários aspectos a melhorar. Talvez o mais importante deles seja o cuidado com o desenvolvimento do roteiro (escrito por André Nemec e Josh Appelbaum) um tanto esfarrapado, com um vilão mal trabalhado e cheio de situações forçadas para gerar sequências de ação. E aqui apontamos o ponto mais positivo do longa-metragem: estas sequências aventureiras são realmente de tirar o fôlego do espectador, compensando em muito o preço do ingresso para a sala escura.

Na trama, Ethan Hunt (Tom Cruise, também produtor e parecendo que saiu de um tanque de formol) acaba de concluir uma missão onde esteve enclausurado em um presídio russo para já engatar uma outra aventura: roubar códigos de ativação de armas nucleares escondidos a sete chaves no Kremlin para evitar que os mesmos caiam nas mão de um terrorista que pretende causar uma hecatombe nuclear. Todavia, a empreitada acaba mal para os agentes da IMF (Impossible Missions Force), a qual acaba sendo vista pelo governo americano como responsável por uma enorme explosão em Moscou (uma das cenas mais marcantes do longa, diga-se de passagem). É então que é colocado em prática o tal “protocolo fantasma” do título, desativando a força especial e desautorizando todas as suas ações, fazendo com que Ethan e seus companheiros Benji (Simon Pegg, divertidíssimo), Jane (Paula Patton) e Brandt (Jeremy Renner) tenham de agir por conta própria e com poucos recursos para tentar salvar o mundo da guerra nuclear definitiva.

Talvez a maior inovação que Bird inseriu na franquia seja o leve tom cômico que estava ausente nos outros episódios. E isso sem exageros, sabendo brincar com as próprias nuances e características da série (como a mensagem que explode depois de alguns segundos), mas sem cair no ridículo. Além disso, pegou do terceiro título a humanização dos personagens, os quais têm uma vida que vai além da espionagem. Há uma ligação muito importante entre Ethan e Brandt que diz respeito à esposa do primeiro (interpretada no terceiro filme por Michelle Monaghan) e mais não digo para não revelar demais para quem ainda não assistiu. É bom salientar ainda, nessa linha, que Bird e os roteiristas evitaram o romance fácil que poderia surgir entre Ethan e Jane, fugindo assim de um dos grandes clichês dos filmes de ação. Não se pode negar, ademais, que a química estabelecida entre os quatro integrantes do grupo foi a melhor dentre todos os episódios e acredito até que ela será repetida em futuras edições, muito embora a performance dos atores seja oscilante, principalmente Paula Patton, bastante canastrona em diversos momentos, a despeito de sua beleza. Nesse aspecto, vale dizer que Cruise faz o Ethan de sempre (mas agora com menos sorrisos colgate) e é impressionante notar como ele se mantém jovem e atlético mesmo à beira dos 50 anos, dispensando dublês na maioria das cenas de ação. Jeremy Renner tem boa presença e atuação correta, mas quem rouba mesmo a cena é o britânico Simon Pegg com o seu Benji, sempre chamando a atenção com as melhores tiradas e frases quase sempre que aparece. Por outro lado, o vilão Hendricks (Michael Nyqvist) é mesmo o grande ponto fraco da trama, com uma caracterização pífia e motivações nada convincentes (um tique negativo da maioria dos filmes de James Bond, por sinal). Ademais, como já salientado mais acima, algumas situações se mostram cheias de furos e percebemos que elas estão ali apenas para gerar sequências agitadas.

Mas estas últimas são mesmo o grande ponto alto do longa. Variando por cenários que vão de Moscou a Dubai, passando de Bombaim a Budapeste, as cenas de ação são extremamente bem dirigidas e impactantes, com edição limpa que permite que entendamos tudo que se vê na tela (Michael Bay, quando você irá aprender essa lição?), valendo destaque para as que se passam em Dubai, principalmente a escalada do edifício Burj Khalifa (o mais alto do mundo) e a tempestade de areia nas ruas da cidade (o que não deve ajudar muito no turismo dela, é bom dizer). Fico imaginando como seria vê-las em uma sala IMAX,já que a tecnologia de filmagem foi apropriada para a exibição nas telas gigantes. Com certeza, resultarão ainda mais espetaculares. Some-se a isso uma trilha sonora competente (de Michael Giacchino) que soube aproveitar muito bem o clássico tema da franquia, além de colocar músicas com nuances apropriadas para cada localidade onde o grupo se encontra.

Embora não se possa considerar este o melhor filme da série (considero o primeiro, de Brian De Palma, ainda superior) e escorregue em alguns clichês do gênero (mesmo evitando outros), "Missão Impossível - Protocolo Fantasma" não deixa muito a desejar e tem tudo para alavancar a combalida carreira do astro Cruise, bastante errática desde que teve alguns “surtos” diante das câmeras de TV. Está indo muito bem de bilheteria, tanto nos EUA quanto internacionalmente, e deverá gerar um já quase inevitável 5º episódio. Também se mostrou muito proveitoso como estreia de Brad Bird na direção de atores, deixando o conforto em que se encontrava com suas ótimas animações. Mesmo que ainda precise evoluir (e é perfeitamente natural) ele já mostrou a que veio, entregando um longa que tem tudo pare agradar o público-pipoca dos fins de semana (eu mesmo consumi um bocado de pipoca durante a sessão). Dentro da atual crise de criatividade de Hollywood, com suas cada vez mais exaustivas continuações e remakes, levar o espectador a roer as unhas e jamais se cansar diante de 2h13min de projeção já é um feito e tanto.

Cotação:

Nota: 8,0

Obs: Este é o último post de 2011. Mais uma vez aproveito para desejar um feliz ano novo para todos! Que seja um ano de muitas realizações! Até 2012!

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Os 7 melhores filmes de 2011

Bem, chegamos à última semana de 2011 e o Cinema Com Pimenta apresenta a sua lista (como sempre de 7 itens) com os melhores filmes exibidos no circuito comercial brasileiro no ano. Costumamos sempre dizer que o ano foi fraco, mas acredito que tais afirmações acabam sendo revisadas no futuro. Em outras décadas, tidas como "douradas", a impressão era a mesma. O tempo é o melhor juiz para a arte. Bem, vamos à lista:




Então, é isso. Listas são inúteis, mas não há como deixar de fazê-las. Um feliz 2012 para todos vocês! Grande abraço e até a próxima!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Curtindo o Curta #2


O conto de Charles Dickens "A Christmas Carol" já foi adaptado para a tela várias vezes, como em "Os Fantasmas de Scrooge" (2009), animação em 3D dirigida por Robert Zemeckis. No entanto, a mais antiga lembrança que tenho desta bela estória natalina se deve ao curta de animação "Um Conto de Natal do Mickey" (Mickey's Christmas Carol), realizado pelos estúdios Disney em 1983 e sempre reprisado pela Rede Globo na época em que lembramos o nascimento de Cristo (ao menos no meu tempo de criança era uma atração certa na programação de fim de ano). Nele, Ebenezer Scrooge, o velho ranzinza e mesquinho que não compreende sentimentos como amor e solidariedade, está na pele do Tio Patinhas, enquanto o seu empregado oprimido e mal tratado é vivido por Mickey. Scrooge receberá a visita de três espíritos na noite de Natal que o procurarão mudar a sua visão de mundo. Abaixo, segue o curta (que foi inclusive indicado ao Oscar como melhor curta de animação) dividido em 3 videos (são 25 minutos ao todo). Esta é a forma do "Cinema Com Pimenta" desejar um feliz Natal para todos, repleto de paz e harmonia, mesmo para aqueles que eventualmente não acreditem em Jesus Cristo. Que Deus abençoe a todos!






quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Filmes Para Ver Antes de Morrer


A Estrada da Vida
(La Strada, 1954)

A flor entre as rochas


É difícil falar de um filme como “A Estrada da Vida” (La Strada, 1954), uma das mais queridas obras de um do mais amados diretores do cinema, o genial Federico Fellini. A missão é espinhosa justamente porque muito já foi dito e escrito sobre esta película. O risco de cair no lugar-comum é enorme e creio que acabarei sendo levado a isso, mas não vou me furtar mais uma vez a tentar transmitir a grande admiração que tenho por este filme simples, direto, mas ao mesmo tempo extremamente emocionante. Afinal, é difícil não se sensibilizar com a estória de solidão de Gelsomina (Giulietta Masina, esposa de Fellini) e Zampanò (um soberbo Anthony Quinn), dois artistas mambembes que levam uma vida errante, marcada pela incompreensão mútua em uma relação onde ambos se colocam nos extremos entre a doçura e a brutalidade. O filme também dá início à transição de Fellini do neo-realismo, movimento no qual despontou como roteirista, para um estilo próprio e único que faria a sua reputação mundial.

Zampanò é um tipo de saltimbanco que sobrevive desempenhando um número banal onde quebra uma corrente com a força do seu tórax (ele foi inspirado em um açougueiro brutamontes de Rimini, cidade natal do cineasta). Precisando de uma ajudante, ele compra Gelsomina de uma família miserável, cuja mãe não tem mais de onde tirar o sustento para as filhas mais novas. Porém, Gelsomina ainda é uma criança em espírito e se submete à tal humilhação, mesmo depois que Zampano demonstra todo a sua brutalidade, tratando-a muitas vezes como uma verdadeira escrava ou um objeto. E os dois seguem pelas estradas da Itália, na sua paisagem miserável do pós-guerra, até se juntarem a um circo onde o equilibrista “Il Matto” (Richard Basehart, também ótimo), desperta a atenção de Gelsomina e faz nascer um mal disfarçado ciúme em Zampanò, incapaz de admitir ou mesmo compreender os seus sentimentos para com ela. “Il Matto”, dotado de grande conhecimento da vida por trás de sua faceta de gozador, ao mesmo tempo em que encanta Gelsomina, estimulado-a a ter uma vida livre, debocha o tempo inteiro do comportamento rude e bruto de Zampanò, o que acaba levando este a atitudes que culminarão em uma tragédia que afetará a vida de todos.

É certo que há em “La Strada” muito de road-movie, tanto no aspecto formal quanto substancial. Inteiramente filmado em locações (como era típico dos filmes neo-realistas), o cenário maior do filme, como já mencionado, é a Itália pobre que ainda busca se reerguer do pesadelo da guerra. Ou seja, o longa também pode ser visto como o retrato de um país que ressurge das cinzas, onde os indivíduos tentam sobreviver da forma que conseguem. Todos os personagens do filme parecem, antes de tudo, ser artistas da sobrevivência. Essa visão ganha ainda mais força ao lembrarmos como surgiu a ideia para a realização do longa-metragem, atribuída a Tullio Pinelli (co-escritor do roteiro ao lado de Ennio Flaiano e do próprio Fellini), o qual teria visto uma casal de mambembes empurrando uma espécie de carroça ao longo de uma viagem e pensou em um enredo baseado nessa cena. Mas é óbvio que Fellini não se resumiria tão somente a pintar um painel da Itália do seu tempo. Ele aproveita a oportunidade para questionar o que levam solitários a serem solitários ou se tal circunstância vai muito além do aspecto volitivo. A frágil e terna Gelsomina é uma solitária justamente devido à sua enorme doçura, incapaz de reagir com a dureza que a vida exige em alguns momentos. Sente-se uma inútil, acreditando que Zampanò não gosta dela porque não sabe cozinhar ou fazer algo que o agrade. Este último, por sua vez, reage com tanta brutalidade diante das dificuldades que se tornou incapaz de demonstrar afeto por alguém, acabando por espantar todos à sua volta. Ou seja, A solidão para Gelsomina é uma circunstância imposta pelo mundo e em que vive, enquanto para Zampanò acaba sendo muito mais consequência de sua atitudes.

Personagens tão ricos e complexos exigiriam intérpretes à altura e o que vemos na tela é impressionante. Giulietta Masina torna simplesmente inesquecível sua personagem, mostrando-nos toda a carência da mesma, assim como sua forma particular de entender o mundo. Inspirando-se em Chaplin, ela empresta de Carlitos a sua ternura e trejeitos (mas não a sua esperteza) e é certo que Masina tomou emprestado do cinema mudo a primorosa expressão facial e corporal, dispensando palavras para traduzir os sentimentos da personagem. Sua presença cênica é tão forte e sua incorporação tão profunda que acabou por afetar sua carreira daí em diante (algo como o Jack Torrance de “O Iluminado” para a carreira de Jack Nicholson, que parece ter ficado meio sequelado depois dele, levando seus tiques para outros personagens). Da mesma forma, Anthony Quinn nos brinda com um de seus papeis mais destacados. É muito raro interpretar um tipo como Zampanò sem cair na caricatura, mas ele consegue e, apesar de sua brutalidade, conseguimos sentir pena do mesmo na famosa e triste sequência final. Já Richard Basehart nos entrega uma equilibrista saborosamente maluco, provocador e, por que não, também cheio de sabedoria. A cena em que ele explica a Gelsomina que até uma mera pedrinha tem a sua importância é simplesmente emocionante e memorável, uma peça de arte em estado puro. E, claro, além de interpretações tão marcantes ainda temos a trilha inesquecível do mestre Nino Rotta, tocada ao longo do filme por Gelsomina com seu trompete, uma das mais inspiradas da longa parceria do compositor com o diretor.

Premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro, foi com “A Estrada da Vida” que Fellini adquiriu respeito internacional e, principalmente, começou a operar sua magia, transformando a dura realidade em algo poético, mas sem jamais desdenhar do sofrimento dos seus personagens. Aliás, Federico foi um dos cineastas que mais respeitaram o ser humano, tendo consciência de que o mais rude dos homens também possui uma enorme capacidade de amar. Esta, inclusive, talvez seja a perfeita tradução da narrativa em “La Strada”, a de que o amor pode nascer mesmo nos ambientes mais áridos e dentro dos corações mais duros, como uma flor que nasce entre as rochas.


Cotação e nota: Obra-prima.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Dica de Livro


Se você deseja presentear um cinéfilo neste Natal, uma ótima pedida é o livro "Tudo Sobre Cinema", que tem como organizador o crítico e historiador de cinema Philip Kemp. Embora trate em específico de uma quantidade menor de filmes que o famoso "1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer", traz como diferencial uma análise sobre os diversos movimentos e estilos que nasceram ao longo de mais de 100 anos de história do cinema, com textos sobre a Nouvelle Vague, o Expressionismo Alemão, a Nova Hollywood, cinema soviético, entre outros. Além disso, os filmes analisados contam com quadros detalhados onde são resumidas as cenas mais marcantes, além de uma ampla gama de imagens que vão deixar qualquer aficcionado babando (tem foto até dos irmãos Lumiére). Agradável e didático, contando com a qualidade gráfica sempre impecável da Editora Sextante, "Tudo Sobre Cinema" já pode ser colocado como obrigatório na estante dos amantes da Sétima Arte. Ah, e vale também para o cinéfilo que deseja se auto-presentear. No meu caso, já fui presenteado pela minha noiva. :=) Boa leitura!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Kirk Douglas: 95 anos!


É isso aí! Hoje, um dos maiores astros do cinema em todos os tempos, Kirk Douglas, está completando 95 anos de uma vida repleta de grandes sucessos cinematográficos, prolífica (participou de 95 produções ao todo) e também, como todos nós, repleta de desafios, tendo superado um derrame cerebral e até escrito um livro sobre essa sua vivência. O pai de Michael Douglas sempre foi incansável, construindo uma das mais sólidas carreiras já vistas. Protagonizou obras como "Glória Feita de Sangue" (filme que levou Stanley Kubrick a ser reconhecido como um grande diretor), "Spartacus" (quando brigou com o mesmo Kubrick, mas é um filmaço!), "A Montanha dos Sete Abutres" (de Billy Wilder) e "Assim Estava Escrito" (de Vincent Minelli). Ainda precisaria de mais?

Parabéns, vovô Kirk, firme e forte no caminho dos 100 anos!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Filmes Para Ver Antes de Morrer


O Anjo Exterminador
(El Ángel Exterminador, 1962)


Luís Buñuel e a invenção do Big Brother



Muitos atribuem ao livro “1984”, de George Orwell, a grande inspiração para a criação do famigerado programa televisivo “Big Brother”, amado por muitos e odiado por outros tantos, e é verdade que o nome da atração foi retirada da citada obra ficcional. Entretanto, o seu formato, colocando os participantes confinados em uma casa, obrigados a conviver com outras pessoas, por vezes bastante distintas em personalidade (muito embora todas tenham em comum o fato de gostar de se expor), remete com maior propriedade a “O Anjo Exterminador” (El Ángel Exterminador, 1962), filme que constitui uma das obras máximas do cineasta espanhol Luís Buñuel, certamente o maior nome do Surrealismo cinematográfico e um dos mais ferozes críticos da classe burguesa. Afinal, neste longa-metragem extremamente original, último fruto de sua fase mexicana (iniciada após a sua saída da Espanha, com a guerra civil nos anos 30), vemos um grupo de burgueses confinados em um casarão logo após um jantar de gala, realizado a convite do proprietário. O mais curioso é que não se sabe o porquê desta imobilidade. Não há sequer uma porta trancada no imóvel e o grupo simplesmente se resigna a passar horas, dias e semanas restritos àquele ambiente, situação que os leva à animalização do comportamento, caindo todas as máscaras condicionadas pela moral burguesa.

Na realidade, talvez o porquê da situação sui generis nem seja exatamente importante. O próprio Buñuel chegou a afirmar, em uma entrevista, que o filme seria uma espécie de estudo sobre a natureza da vontade, procurando analisar o que leva uma pessoa a realizar atividades prosaicas como andar, rir ou mexer um braço. No entanto, a síntese oferecida pelo diretor esconde sua intenção de dissecar os costumes e artificialidades burguesas. Em verdade, Buñuel desfere um tiro certeiro na apatia e futilidade de uma classe ociosa e distante da realidade. Não por acaso, no desenrolar do roteiro (escrito pelo próprio diretor), os empregados da mansão sentem um desejo irrefreável e inexplicado de deixá-la imediatamente, como se soubessem que algo de muito ruim estivesse para acontecer ali. O único dentre estes que permanece é o mordomo, justamente aquele mais adaptado e inserido no modo de vida da outra classe, um tipo de “bruto domesticado”. Da mesma maneira, os únicos presentes ao jantar que são poupados do “martírio” se resumem a um idoso que vê com olhos críticos o evento e um casal de apaixonados que, apesar de tudo, se colocam acima dos demais por terem a capacidade de nutrir amor. Ou seja, Buñuel reserva sua tortura psicológica apenas àqueles contaminados pela moral burguesa.


O longa se inicia com uma espécie de apresentação dos personagens, recurso semelhante aos usados em filmes de tragédias ou aeroportos, onde são mostrados os integrantes da fauna social que vivenciará a narrativa. É nessa primeira parte que percebemos a superficialidade daquelas pessoas, como na fala marcante da personagem que diz que ficou mais consternada ao ver um príncipe morto do que diante de uma tragédia onde viu várias pessoas esmagadas por um trem, alegando para tanto que “os pobres sentem menos dor”. A anfitriã, por seu turno, possui um urso de estimação, algo totalmente non sense, mas que certamente denota uma pontada nas excentricidades que costumam povoar o comportamento de classes mais abastadas, pois que carentes de objetivos maiores na vida. Outra personagem marcante é a de Valquíria (papel da famosa atriz mexicana Silvia Pinal, que já havia trabalhado com Buñuel em “Viridiana”), que todos afirmam ainda ser virgem, mas desconfiam da veracidade dessa condição. Descobrimos, também, que o adultério é uma constante no comportamento do grupo, assim como a inveja e a desfaçatez, vícios humanos que ficam cada vez mais expostos à medida que o tempo passa. Com a angústia crescente no ambiente, atitudes tipicamente humanas afloram, como procurar um culpado para a situação, o que acaba sobrando para o anfitrião, justa e ironicamente um dos mais lúcidos e bem intencionados do grupo. E eis que a situação dos “aprisionados” começa a despertar a atenção dos moradores da cidade, o que nos remete mais uma vez ao citado programa televisivo. Uma multidão se aglomera pelas redondezas e começa a tentar acompanhar e saber os passos dos convidados, mas em nenhum momento a polícia chega a invadir o local para “salvá-los”, aguardando passivamente que eles resolvam sair.


Todas essas circunstâncias narrativas são mostradas com o tradicional poderio imagético de Buñuel, neste aspecto, até por ser herdeiro da tradição surrealista, um dos cineastas mais criativos em todos os tempos. A cena em que os convidados quebram as paredes em busca das tubulações de água para matar a sede é de uma mistura de drama e comédia que só poderia ter partido de uma mente genial. Ademais, Buñuel mais uma vez pontua a narrativa com imagens surreais que representam os pesadelos dos confinados, quase todos já no limite entre lucidez e insanidade, algo que nos remete ao “Ensaio Sobre A Cegueira” de Saramgo/Meirelles, ou, mais ainda, a Franz Kafka com suas ideias de situações limítrofes e inexplicáveis. Embora não seja este o filme em que Buñuel mais acentua sua veia anticlerical – este posto cabe ao mencionado “Viridiana”, seu filme imediatamente anterior (1961) – ele reserva para o desfecho as suas ferroadas na Igreja, mas este ponto fica para você realizar sua própria apreciação quando tiver a oportunidade de ver o longa.

O cineasta repetiria um mote semelhante em “O Discreto Charme da Burguesia” (Le Charme Discret de La Bourgeoisie, 1972), filme posterior de sua fase francesa, mas este “O Anjo Exterminador” é, de certa forma, mais acessível aos não iniciados na sua filmografia e, certamente, mais original. Luís Buñuel se revela, mais do que nunca, um profundo conhecedor das limitações humanas, além de se mostrar algo profético ao conceber a situação de seres humanos confinados em um ambiente por vontade própria (ou falta dela). Se estivesse vivo para acompanhar o sucesso dos reallity shows, é provável que ele desse boas risadas e ficasse envaidecido ao constatar que ele possuía inteira razão nas conclusões que tirou a partir de seu exercício criativo. Hoje, o Big Brother é a tradução moderna e rasteira desta obra singular do mestre espanhol, mas, claro, sem a arte desta.


Cotação:

Nota: 10,0

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Curtindo o Curta #1


Há alguns dias, descobri um programa da Rede Brasil chamado “Curta TV”, dedicado à abordagem e exibição deste formato de cinema tão pouco visto hoje. O mais triste é que ele fica relegado ao esquecimento não apenas pelo grande público, mas até mesmo no meio cinéfilo, mostrando como o curta-metragem anda muito desprestigiado. Faço uma pergunta a você que acompanha este espaço: quantos curtas você viu este ano? Acredito que a resposta deverá resultar em um número que não passa dos dedos das mãos. Todavia, a verdade é que o curta-metragem representa, antes de tudo, o nascimento da Sétima Arte. Afinal, quando os irmãos Lumiére inventaram essa poderosa magia, eles obviamente não começaram produzindo filmes de 120 minutos. Foi pensando exatamente neste espaço escasso dado aos curtas, os quais, ademais, acabam sendo a escola de qualquer cineasta (seja um medíocre ou um gênio como Chaplin), que resolvi criar uma nova série aqui no “Cinema Com Pimenta”, a “Curtindo o Curta”, dedicada a exibir (claro que por meio destas ferramentas fantásticas que são o sites comoYoutube ou Dailymotion) relevantes curtas-metragens, sejam contemporâneos ou clássicos, como uma forma modesta de tentar suprir esta lacuna na bagagem cinéfila de muitos amantes do cinema (entre os quais eu me incluo).

O filme que escolhi para iniciar essa nova sessão do blog foi “Viagem à Lua” (Le Voyage Dans La Lune), uma obra de 1902 dirigida por um dos desbravadores da arte cinematográfica, Georges Méliès, um ex-ator e ilusionista que ousou fazer algo inteiramente distinto do que era realizado até então. A começar pela sua duração. Pode parecer curioso hoje, mas “Viagem À Lua”, com seus 14 minutos, foi um verdadeiro longa-metragem no seu tempo, pois que até então os filmes geralmente se limitavam a 2 ou 3 minutos de projeção. Entretanto, ainda mais inovadora foi a sua premissa. Ao adaptar o romance homônimo de Julio Verne para a tela, Méliès abriu as fronteiras da imaginação no alvorecer da arte cinematográfica, deixando de lado o cotidiano filmado que era a regra até então (ou seja, mini-documentários), para explorar um universo inteiramente ficcional, voltado única e exclusivamente ao entretenimento. Não é nem um pouco absurdo afirmar que Méliès foi o pai do gênero ficção-científica, estabelecendo as bases que seriam seguidas por praticamente todos os cineastas dali em diante, até mesmo por gênios como Stanley Kubrick, cuja obra máxima, “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (2001 – A Space Odissey), não deixa de ser uma variante filosófica do filme de Méliès.

O roteiro, também escrito pelo próprio diretor, começa com um cientista tentando convencer seus colegas, em uma espécie de congresso, de que é possível viajar ao satélite da Terra por meio de uma nave com estrutura semelhante a de um míssil. Um grupo, então, empreende a aventura, aterrissando de maneira pitoresca no “olho” da Lua, que é caraterizada de modo antropomórfico (por sinal, uma das cenas mais conhecidas do cinema até hoje). Lá eles descobrem que a Lua é habitada pelos selenitas, sendo aprisionados por estes até o momento em que descobrem que os estranhos habitantes viram fumaça quando golpeados com guarda-chuvas. Conseguindo escapar, os aventureiros voltam à Terra e caem no mar, sendo resgatados e recebidos com festa em Paris. Diante de narrativa tão fantasiosa, Méliès, utilizando de seus prévios conhecimentos de ilusionismo, acabou por engendrar o que hoje denominamos de efeitos especiais ou visuais, além de usar técnicas de superposição, fusão e edição de imagens que seriam fundamentais no desenvolvimento da Sétima Arte. Além disso, trata-se da primeira adaptação de uma obra literária para a película, o início de uma parceria entre cinema e literatura que renderia muitos grandes frutos ao longo de décadas. No mais, Méliès parece realizar uma grande zombaria com o cientificismo reinante na época, caricaturando a fé na ciência que por vezes se assemelha à fé religiosa, ocorrendo apenas uma substituição, ao mesmo tempo em que demonstra que a humanidade nunca terá pleno conhecimento sobre os mistérios da natureza e do universo.

Tremendo sucesso em sua época, ironicamente Méliès acabou indo à falência algum tempo depois, principalmente porque o filme foi distribuído nos EUA à revelia do seu autor, o qual não recebeu um centavo das bilheterias ianques. De qualquer forma, sua obra resultou precursora e muitos aspectos, o que acaba por transformá-la em obrigatória para qualquer pessoa que procure se aprofundar um pouco mais na arte da imagem em movimento. Bem, vamos deixar de falação e passarmos ao filme. A versão mais completa que encontrei na rede, e que segue abaixo, nos fornece 12 minutos de projeção, o que é praticamente o filme inteiro. Bom filme nesta primeira sessão do “Curtindo o Curta”.



Le Voyage dans la Lune (Uni Music) - 1902... por Krasny-Kofe

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Começou


E começou a temporada de prêmios pré-Oscar. O primeiro deles foi o da respeitável Associação de Críticos de Nova York, a qual concedeu o título de melhor filme do ano a "The Artist" (foto acima), um longa-metragem mudo e em p&b produzido pelos irmãos Weinstein e que trata da transição do cinema mudo para o falado em Hollywood e as repercussões da novidade tecnológica na vida dos atores. Ele também acabou levando o prêmio de melhor diretor para Michel Hazanavicious. O prêmio de melhor ator foi para Brad Pitt por "A Árvore da Vida" e "Moneyball", valendo destacar que os críticos de Nova York levam em conta o ano do artista e não apenas um trabalho específico. Pela mesma razão premiaram Jessica Chastain como atriz coadjuvante por "A Árvore da Vida", "The Help" e "Take Shelter". O melhor ator coadjuvante foi Albert Brooks, por "Drive". Já Meryl Streep parece ter mais uma indicação ao Oscar garantida com a interpretação de Margaret Thatcher em "The Iron Lady", já levando seu primeiro prêmio por esse trabalho. Aaron Sorkin (de "A Rede Social") levou mais uma vez na categoria melhor roteiro por "Moneyball", enquanto "A Árvore da Vida" confirmou seu favoritismo como a melhor fotografia. No mais, Werner Herzog volta à cena com a premiação pelo documentário "Caverna dos Sonhos Esquecidos".


Já temos um bom termômetro para a festa da Academia que acontecerá no dia 26 de fevereiro, mas nada de sair fazendo apostas tão cedo. É bom lembrar que no ano passado "A Rede Social" ganhou como melhor filme entre os críticos de Nova York e não levou a estatueta no Oscar. Muita água ainda vai rolar até lá...

sábado, 26 de novembro de 2011

Eu Quero Esse Pôster #17


Eu estava vagando pela net em busca de um pôster interessante quando encontrei este bastante peculiar de "Indiana Jones e A Última Cruzada", último episódio da trilogia original de um dos meus personagens favoritos das telas. Nunca tinha visto antes! Trata-se de um trabalho do designer Olly Moss, um dos "tampas de Crush" na área atualmente. Abaixo, seguem mais dois exemplos da capacidade desse artista, com seu material para "Sindicato de Ladrões" e "Robocop". Genial!


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Para Ver Em Um Dia de Chuva


Quase Deuses
(Something The Lord Made, 2004)


Quase lá...


Não nego que tenho um certo preconceito com filmes feitos para a televisão. Aliás, não só filmes. As atualmente tão enaltecidas séries de TV também não contam com a minha simpatia. Por razões comerciais, geradas pelo público médio que acompanha as produções televisivas, jamais veremos um produção feita para TV atingir o nível artístico de um filme de Fellini ou Antonioni, de um Bergman ou Kubrick. Sei que “jamais” talvez seja um termo muito forte e claro que muitos vão citar o “Decálogo” de Kieslowski como exemplo de que isso é possível, mas esta é uma rara exceção e as exceções confirmam a regra. E isso por um simples motivo: mesmo uma empresa como a HBO, famosa por supostamente ter produtos diferenciados, mais “refinados” ou “adultos”, tem de estar adstrita ao gosto do seu espectador, mormente o norte-americano, o que pode até terminar resultando em um entretenimento inteligente, mas nunca em uma autêntica obra de arte. Dito isto, resolvi assistir neste domingo a um filme que minha noiva me deu de presente há algum tempo, longa-metragem que ela havia gostado muito e que sempre me cobrava: “você ainda não viu aquele?” *. Trata-se de “Quase Deuses” (Something The Lord Made, 2004), filme produzido pela citada HBO e dirigido por Joseph Sargent. A verdade é que o longa representa o que talvez se possa fazer de melhor dentro da perspectiva comercial do meio televisivo, ou seja, uma obra correta, que prende a atenção do espectador, toca em assuntos sobremaneira relevantes, mas que não consegue alcançar patamares artísticos mais elevados, permanecendo na área do entretenimento inteligente ou mesmo comovente.

A trama, como normalmente sucede em produções para a televisão (e como isso me faz lembrar o Supercine, nossa...), trata da história real dos médicos Alfred Blalock (interpretado aqui por Alan Rickman) e Vivien Theodore Thomas (Mos Def), responsáveis por importantíssimos avanços na área de cirurgia cardíaca, precursores na técnica que leva à cura de bebês de aparência cianótica, os chamados “bebês azuis”. Blalock era um pesquisador ousado, realizando suas experiências com cachorros, embora também, como geralmente sucede com cientistas, um tanto arrogante e por vezes prepotente. Para cuidar do canil das cobaias, ele contrata o recém desempregado Vivien Thomas, um carpinteiro vítima da crise econômica mundial dos anos 30 que, além de ficar sem trabalho, perdera todas as economias que havia feito para cursar a faculdade de medicina, uma vez que o banco depositário faliu (qualquer semelhança com fatos recentes ou atuais do capitalismo globalizado mão é mera coincidência). Destarte, Blalock vai percebendo que Vivien tem uma enorme facilidade em aprender os conceitos médicos e, além disso, usa o instrumental cirúrgico com grande desenvoltura. A parceria entre os dois gera grandes frutos, mas há um detalhe muito relevante a ser apontado, além da ausência de formação acadêmica de Vivien: ele é negro, isso em uma época em que os afro-americanos sequer podiam sentar perto de um branco dentro de um ônibus. Ou seja, além das limitações impostas pela ausência de formação, ele ainda sofre extremo preconceito, principalmente quando ele e Blalock passam a trabalhar no conceituado hospital universitário Johns Hopkins, onde acaba vítima de ridículas discriminações, como receber o mesmo salário de uma faxineiro devido à cor da sua pele.


Em verdade, mesmo que seja um longa multifacetado em que vários temas são apresentados, acredito que o foco central de “Quase Deuses” é mesmo a questão racial. Afinal, muito mais do que sua condição social, é a circunstância racial que acaba se colocando como maior obstáculo ao pleno desenvolvimento das faculdades de Thomas. Entretanto, o filme também se mostra ótimo ao delinear a amizade entre os dois, frequentemente colocada à prova diante dos obstáculos e, em igual medida, em razão dos ataques de vaidade e arrogância de Blalock, que em alguns momentos custa a admitir o quanto Thomas lhe é importante não apenas do ponto de vista profissional, como também emocional. Para tanto, a atuação dos atores é essencial e, se Alan Rickman se mostra competente na caracterização de Alfred (muito embora escorregue em alguns momentos com suas tradicionais caretas), Mos Def entrega uma grande atuação como Vivien, emprestando a força e carisma necessários ao personagem. Em outro sentido, o longa deve entusiasmar estudantes da áreas médicas ao detalhar os procedimentos cirúrgicos e as ideias que levaram ao sucesso das experiências, mostrando-se também como um libelo em defesa do progresso da ciência, mesmo que em diversas situações esta possa se apresentar fria e indiferente, mormente no que diz respeito à utilização de cobaias nos estudos (os apaixonados por cachorros poderão sentir especiais calafrios em algumas sequências).


Interessante como Sargent exibe uma direção segura, sem acelerar ou alongar a narrativa, que se estende através de enxutos 109 minutos sempre despertando o interesse do espectador, muito embora algumas cenas específicas, onde há um uso acentuado de termos técnicos, possam se tornar entediantes para o público leigo. A reconstituição de época também é muito bem feita, principalmente se pensarmos nos detalhes que uma produção assim exige, uma vez que apresentar instrumentos médicos antigos requer um enorme trabalho de pesquisa. Contudo, há algumas derrapadas típicas de um produto que procura, antes de tudo, agradar, como a utilização equivocada de uma trilha sonora que parece sempre querer dizer ao espectador quais os momentos emocionantes, como se este não tivesse inteligência suficiente para tanto. Ademais, sua conclusão é repleta de momentos catárticos, realizados de forma a enaltecer a mensagem de superação e dignidade que é o cerne do filme.

De qualquer forma, é importantíssimo destacar: funciona. À parte as limitações geradas por suas pretensões comerciais, “Quase Deuses” tem passagens realmente comoventes e a história da dupla de médicos, principalmente do prático Vivien Thomas, é indubitavelmente inspiradora. Há uma passagem, inclusive, em que o pai de Thomas, relembrando que seu avô era escravo e que o rapaz agora tinha a oportunidade de estudar em uma universidade, profere uma frase sábia ao afirmar que “as coisas mudam, devagar, mas mudam”. Hoje, ao vermos que um negro é presidente do Estados Unidos, percebe-se o quanto há de verdade em dita afirmação. Pois é, as coisas mudam, e quem sabe um dia a televisão deixa de lado os aspectos mercadológicos para se concentrar apenas no valor artístico que suas obras possam ter? Aqui, ela quase chegou lá.


Cotação:

Nota: 8,5

* Te amo, minha Linda :=)

sábado, 19 de novembro de 2011

Para Ver Em Um Dia de Chuva



A Canção de Bernadette
(The Song Of Bernadette, 1943)


Para os que creem e os que não creem



É bastante complicado abordar uma temática religiosa em uma obra cinematográfica. A religião é terreno fértil para polêmicas e radicalismos, não apenas por parte daqueles que creem, como também por aqueles que não acreditam (digo até por experiência própria, pois que já vi ateus bastante radicais e mesmo intolerantes). Exemplo já clássico e recente desta afirmativa é o longa-metragem “ A Paixão de Cristo” (The Passion Of The Christ, 2004), a super-violenta visão de Mel Gibson acerca do martírio de Jesus Cristo, filme este que foi acusado de antisemitismo e muito criticado pelo excesso de sangue na tela. De qualquer forma, para Gibson, um católico fervoroso adepto de uma da vertentes mais radicais da Igreja, não foi difícil estabelecer um tom para a narrativa, já que ele realizou uma obra extremamente pessoal onde quis e teve o direito de extravasar toda a sua religiosidade, por mais que ela soe distorcida aos olhos da maioria. Já Martin Scorsese sofreu o pão que o diabo amassou devido à sua visão pouco ortodoxa da vida de Jesus em “A Última Tentação de Cristo” (The Last Temptation Of Christ, 1988), obra que apresenta uma visão consideravelmente humana de um Salvador que se mostra o tempo inteiro suscetível aos desejos e falhas típicos dos homens. Contudo, para um cineasta que não deseje realizar um manifesto religioso ou questionar abertamente alguns dogmas, mas tão somente narrar um fato com significados místicos e sem cair em qualquer forma de proselitismo, encontrar o tom e forma corretos é um caminho deveras difícil.

Tal feito foi alcançado em boa parte com “A Canção de Bernadette” (The Song Of Bernadette) pelo diretor Henry King, cineasta de filmes como “Almas em Chamas” (Twelve O'Clock High, 1949) e o cultuado “Suplício de Uma Saudade” (Love Is A Many Splendored Thing, 1955), neste último dirigindo a mesma Jennifer Jones que alçou ao estrelato com esse trabalho de 1943. King não possui a mesma estatura de outros nomes da Hollywood clássica, como John Huston, Howard Hawks ou o genial John Ford, mas era um bom diretor que, neste caso, acertou em cheio na adaptação da história da aparição da Virgem Maria em Lourdes, cidade da França que até hoje é destino de peregrinação de católicos do mundo inteiro devido aos eventos lá ocorridos. Para tanto, ele utilizou de um tom refinado, sem cair em uma indesejável solenidade que acabaria por afastar emocionalmente o espectador e, ademais, na maior parte do filme, sem apelar para excessos melodramáticos, tentação fácil diante de um mote tão propício.


Talvez King tenha atingido esse resultado por focar a abordagem não nos fatos inusitados que levaram à crença nos milagres de Lourdes, mas nos personagens que vivenciaram a história. E, nesta aspecto, fez-se essencial encontrar em Jennifer Jones a atriz ideal para desempenhar o papel da jovem e frágil Bernadette Soubirous, uma menina de origem bastante humilde e com vários problemas de saúde que limitam, inclusive, o seu desenvolvimento escolar. Por outro lado, é uma pessoa de alma pura, pobre em espírito na melhor acepção da expressão e que, provavelmente devido a isso, é supostamente escolhida para servir como o canal de comunicação entre a Virgem e os moradores de Lourdes. Pertinente ressaltar que Bernadette em nenhum momento se considera santa ou pretende sê-lo. Pelo contrário, ambiciona apenas ter uma vida comum e simples como as moças de sua idade. Só que, obviamente, se nem Cristo agradou a todos não será ela que irá agradar, e a jovem passar a ser alvo não apenas das naturais dúvidas a respeito da veracidade de suas visões, como também da inveja e maledicência alheias, pois que muitos a julgam como uma aproveitadora que quer aparecer às custas da credulidade da comunidade.

Ao redor da protagonista, outros personagens são muito bem construídos, como o promotor Vital Dutour (Vincent Price), um dos líderes aristocratas da região que a princípio se sentem incomodados com a afluência de fiéis à gruta de Massabielle (local das aparições), mas que depois tentam auferir vantagens financeiras dos acontecimentos. Dutour, no entanto, parece ir além nas suas tentativas de desmascarar Bernadette, revelando uma faceta ateia ou agnóstica que não consegue admitir como milagres os fatos fora da normalidade que se verificam na pequena cidade. Ele é contraposto pelo deão da aldeia, o padre Peyramale (Charles Bickford), o qual, depois de sentir a veracidade nas palavras e ações de Bernadette, torna-se seu protetor e defensor. É em um dos diálogos entre o padre e os incrédulos que surge uma frase que se tornaria famosa: “para os que creem, nenhuma explicação é necessária; para os que não creem, nenhuma explicação servirá” - certamente retirada do livro de Franz Werfel no qual se baseou o roteiro de George Seaton.


Falando em bons personagens, não se pode deixar de lembrar algumas curiosidades que rodeiam a produção. O papel de Bernadette rendeu o Oscar a Jennifer Jones, realizando aqui sua primeira protagonista no cinema. Antes ela havia feito apenas algumas participações em filmes de menor orçamento ainda com seu nome verdadeiro, Phylis Isley (o nome com o qual se tornou famosa foi criado por David O. Selznick, produtor com que se casaria alguns anos mais tarde). Ela disputou a personagem com centenas de outras concorrentes, mas Henry King adorou o viés contido, doce e humilde que atribuiu a Bernadette. Todavia, se Jennifer aparece incontestável como protagonista, o mesmo não se deu com a seleção da atriz para encarnar a Virgem Maria. A escolha recaiu em Linda Darnell, atriz de péssima reputação (apesar de ironicamente costumar interpretar mulheres ingênuas nas telas) e que quase fazia o autor Werfel pedir a exclusão de seu nome nos créditos da película. Mas a verdade é que sua participação se limita quase que a pontas, pois que a Senhora (tratamento usado por Bernadette para a aparição) tem pouco tempo de cena.

Dono de uma fotografia excelente, que rendeu ainda o prêmio da Academia a Arthur Miller, além de uma bela trilha sonora do mestre Alfred Newman (que renderia a primeira versão em disco de uma trilha de filme a ser comercializada), “The Song Of Bernadette” apenas titubeia na sua conclusão, onde King acaba cedendo a alguns arroubos melodramáticos, além de parecer querer a chancela da Igreja ao incluir, sem mais nem menos, uma imagem da Basílica de São Pedro na última cena. Entretanto, são pequenos defeitos em uma obra ao mesmo tempo sóbria e comovente, certamente capaz até de sensibilizar mesmo os mais céticos. Afinal, para além da crença, Bernadette Soubirous foi um ser humano notável, um exemplo de humildade e plena convicção naquilo que acreditava. É de pessoas de coração puro como o dela que o mundo está carecendo, e nisso qualquer um há de concordar, seja ou não cristão, seja um fundamentalista como Mel Gibson ou um questionador como Scorsese, acreditando ou não em Deus.


Cotação:

Nota: 9,0

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Filmes Para Ver Antes de Morrer


O Mensageiro do Diabo
(The Night Of The Hunter, 1955)


O Bem, o Mal e o Bicho-papão


“O Mensageiro do Diabo” (The Night Of The Hunter), o único filme dirigido pelo respeitado ator Charles Laughton, é uma daquelas obras que fazem parte de um rol especial: as que não foram reconhecidas no seu tempo, ganhando respeitabilidade e sendo descobertas anos depois de seus lançamentos. Isso acontece com uma certa frequência no mundo artístico – não apenas no cinema – bastando lembrar de casos como o do gênio da pintura Vincent Van Gogh ou da obra literária de Franz Kafka. E é uma pena que, tal como estes famosos exemplos, Laughton não tenha vivido o suficiente para ver sua obra alcançar os elogios que sempre mereceu. Contrariamente, viu sua carreira como diretor ser interrompida devido ao fracasso financeiro da produção, não conseguindo mais levar adiante nenhum projeto. Levado à depressão, transformou-se em coadjuvante de luxo dali em diante, em papeis que não lhe exigiam grande esforço. Uma tremenda injustiça histórica com este longa-metragem impressionante, uma espécie de fábula que transmuda para a tela os mais assustadores pesadelos infantis e que nos apresenta um dos mais inesquecíveis vilões da história da Sétima Arte, interpretado por um Robert Mitchum no melhor momento de sua carreira.

Estruturado como uma alegórica batalha entre o Bem e o Mal, o roteiro se baseia em um romance de Davis Grubb adaptado para as telas por James Agee, responsável pelo script de “Uma Aventura Na África” (The African Queen, 1951) e então no auge da fama e respeito em Hollywood. A trama se concentra na figura do falso pastor Harry Powell (Mitchum), um psicótico que já havia matado diversas viúvas que julgava pervertidas, em uma missão que considerava que lhe havia sido atribuída por Deus. Uma vez preso por outro delito de menor importância, conhece durante os dias na prisão o condenado à morte Ben Harper (Peter Graves), o qual acaba revelando ao primeiro que havia deixado escondida com sua família uma grande quantia em dinheiro fruto de um assalto a banco. Quando libertado, Powelll sai em busca do dinheiro e, para alcançá-lo, aproveita-se da fragilidade emocional da viúva de Harper, Willa (Shelley Winters), casando-se com ela e buscando ganhar a confiança dos dois filhos, o primogênito John (Ben Chapin) e a garotinha Pearl (Sally Jane). O menino, contudo, percebe as intenções nefastas do padrasto, recusando-se a colaborar e tornando os irmãos alvos da ira do falso pregador.


Um dos grandes trunfos engendrados pelo roteiro e a direção de Laughton é justamente a sensação de total desproteção enfrentada pelo personagem de John, um verdadeiro terror infantil ainda mais acentuado para o espectador porque muitos dos fatos são vistos segundo a perspectiva das crianças. John é o único que percebe o lado malévolo de Harry Powell, sofrendo a angústia de ser desacreditado pelos adultos à sua volta, a começar pela sua mãe, e não poder contar nem com a própria irmã, já que ela, menor e mais inocente, é facilmente enganada pelo “reverendo” psicopata. Nesta linha, Powell se coloca como a verdadeira encarnação da “velha-debaixo-da-cama”, do “bicho-papão” ou qualquer outro ser imaginário e nefasto que tanto perturbam a imaginação infantil. Algumas sequências, inclusive, possuem um forte tom onírico que reforçam o caráter de fábula da narrativa, tal como a belíssima e estranha sequência dos garotos fugindo pelo rio Ohio ou a aparição de Powell montado em um cavalo visto à distância por John, o que leva este a se perguntar: “ele nunca dorme?”. Como contraponto à força do Mal representada pelo personagem de Mitchum, surge a Sra. Rachel (a lendária Lilian Gish, famosa pelas atuações nos filmes de D. W. Griffith), uma mulher que acolhe crianças órfãs em sua espaçosa propriedade. É ela que protege os irmãos e irá enfrentar diretamente Harry Powell em uma sequência memorável em que impede a entrada do psicopata enquanto este ronda a residência tal como uma raposa espreita um galinheiro.

Aliás, cenas marcantes em “O Mensageiro do Diabo” são mesmo uma constante, dado o brilhantismo da fotografia do veterano Stanley Cortez (que já havia trabalhado, por exemplo, com Orson Welles em “Soberba”) e seus enquadramentos inusitados que remontam ao Expressionismo alemão, por sinal uma das influências assumidas de Laughton, resultando em uma experiência imagética inesquecível. Laughton, inclusive, estabeleceu uma iconografia inimitável na concepção de Powell com suas roupas pretas e brancas, além do uso de tatuagens com as palavras “Amor” e “Ódio” nos dedos das mãos. A queda de braço realizada pelo personagem em uma cena em que explica o embate atemporal entre o Bem e o Mal, cena esta em que as duas mãos com as referidas palavras se abraçam, é simplesmente memorável e brilhante. Uma maneira simples, direta e inteligentíssima de resumir toda a temática do longa. Vale destacar, também, o ritmo de suspense com leves pitadas de humor, onde Laughton parece revelar influências de Hitchcock.


Outro ponto altíssimo é o elenco. Todos os atores entregam grandes performances, incluindo o elenco infantil. Curioso que havia um mito de que Laughton não gostava de trabalhar com crianças e que teria sido Mitchum o responsável por orientá-las nas filmagens. Essa teoria caiu por terra depois que foram descobertos negativos escondidos na velha casa de Laughton nos quais há imagens do mesmo orientando o elenco e que, ao contrário do que se falava, ele dedicava especial atenção aos pequenos. Talvez o maior trabalho para Laughton tenha se dado com Shelley Winters, pois que a mesma teve dificuldades em incorporar o necessário sotaque sulista de Willa Harper e também de encontrar o tom certo para a sua fragilidade. Lilian Gish, como era de se esperar, está perfeita como a citada Sra. Rachel, personagem muito carismática e que, como dito mais acima, representa a grande antagonista de Harry Powell. Um belo retorno após alguns anos de afastamento das câmeras. Entretanto, é mesmo Robert Mitchum, um dos atores mais injustiçados de Hollywood, quem domina as atenções. Em uma composição impecável, ele empresta um ar a só tempo misterioso, ameaçador e sedutor a Powell, criando um vilão perturbador e único. Ademais, jamais sabemos o quanto ele acredita ou não nas palavras religiosas que profere, nunca ficando exposto o quanto há de hipocrisia em seu comportamento. Laurence Olivier havia sido convidado para o papel, mas a escolha final por Mitchum não poderia ser mais acertada.

Contando com várias citações bíblicas que só enriquecem as metáforas e analogias propostas ao longo de sua projeção (é bom lembrar que Laughton era famoso por suas declamações das Escrituras), “The Night Of The Hunter” é uma experiência singular que com certeza se coloca entre aquelas que você tem de ver antes de morrer. Um filme que não parece com nada que você já viu, talvez até porque ele tenha ficado esquecido por vários anos e Charles Laughton não tenha tido oportunidade de continuar como cineasta. Uma pena. De qualquer forma, você cinéfilo tem a obrigação de reparar este erro histórico e fazer com que este longa-metragem recupere cada vez mais o status que lhe é próprio dentro da Sétima Arte, qual seja, o de autêntica obra-prima.


Cotação e nota: Obra-prima.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A volta de Billy Crystal


Pois é. Depois de Brett Ratner ter sido convidado a se demitir - mais ou menos como os ministros envolvidos em casos de corrupção em Brasília - da função de produtor do Oscar 2012 depois de comentários homofóbicos, dando lugar a Brian Grazer (produtor de filmes como "Uma Mente Brilhante" e "O Código da Vinci"), a academia agora convida Billy Crystal para retomar o posto que nunca deveria ter deixado: o de apresentador da festa anual de entrega do prêmio mais famoso do mundo. Com a saída de Ratner, Eddie Murphy também abandonou o barco e o mais coerente seria mesmo trocar o incerto pelo certo. Até a tuitada de Crystal comentando sua volta ao Oscar já demonstra que a escolha foi certeira: "vou fazer novamente o Oscar para que a moça da farmácia pare de perguntar 'qual é meu nome mesmo?' quando vou pegar remédios". Ainda acho que o Oscar seria bem melhor se apenas se preocupasse em entregar as estatuetas sem gracinhas ou embromações (como opinei em outra ocasião), mas, já que é para ter piadas, que pelo menos possam contar com o sempre acertado Billy. Ainda bem que Deus iluminou a cabeça desses executivos que já estavam até pensando em colocar os Muppets como apresentadores...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Contágio



Thriller hipocondríaco televisivo



Em “Traffic” (2000), Steven Soderbergh usou do recurso das narrativas paralelas que apresentam pontos de interseção para tentar dissecar o porquê da quase impossibilidade de erradicação do tráfico de drogas internacional. Contando com elenco estelar e competente, o qual incluiu Michael Douglas, Catherine Zeta-Jones, Benício Del Toro e Don Cheadle, “Traffic” impressionou não apenas por mostrar os meandros da máfia das drogas, como também por conseguir construir sólidos dramas através de personagens muito bem desenvolvidos mesmo dentro de um mosaico de narrativas. A experiência foi tão bem sucedida que rendeu a Sodebergh o Oscar de melhor diretor naquele ano e, diga-se de passagem, com bastante justiça.

Aparentemente, foi procurando repetir o êxito do citado longa-metragem que Soderbergh concebeu este “Contágio” (Contagion), usando dos mesmos recursos de narrativas paralelas que se interligam e elenco de astros tarimbados para situações de forte apelo dramático – além de capazes de levar o público às salas apenas por sua presença na tela. Estão lá Matt Damon, Jude Law, Laurence Fishburne, além das oscarizadas Kate Winslet, Marion Cotillard e Gwyneth Paltrow, cuja morte da respectiva personagem revelada ainda no trailer chegou a causar uma certa polêmica. Afinal, como um material promocional poderia trazer um spoiler dessa magnitude? A verdade é que não se tratou de um spoiler, uma vez que a personagem de Gwyneth, Beth Emhoff, morre logo no início da trama, vítima de um vírus misterioso e altamente contagioso que poderá levar à morte milhões de pessoas ao redor do planeta. Já se percebe, desta forma, que Gwyneth não tem muito tempo em cena, sendo sua participação quase que reduzida a pontas.

Talvez o maior problema de “Contágio” seja o fato de que não apenas a personagem da esposa de Chris Martin tenha um tempo reduzido na tela, mas que praticamente todos os papeis quase se limitam a isso. Tantos são os personagens e ações distintas que não há tempo na projeção nem profundidade no roteiro para que o espectador nutra interesse ou empatia por alguns ou mesmo apenas um deles. Isso acaba resultando, inclusive, em atuações apagadas de todos os envolvidos e acredito que não por culpa dos mesmos, mas, como dito, do roteiro (escrito por Scott Z. Burns, que já havia trabalhado com Soderbergh em “O Desinformante”) excessivamente fragmentado e dispersivo, induzindo o próprio público à dispersão. Tamanho é o emaranhado engendrado que algumas pontas da narrativa ficam simplesmente sem desfecho, como no caso da personagem de Cottilard, a qual some a certa altura da película e depois resta simplesmente esquecida. Sucede que apenas um personagem tem começo, meio e fim, o marido da citada Beth, Mitch Emhoff, mas mesmo este, interpretado por um Matt Damon no piloto automático, é caracterizado com incoerências graves. Ele é aparentemente imune ao novo e letal vírus, mas mesmo assim ninguém se preocupa em estudar seu DNA ou qualquer coisa que o valha. Entretanto, vale dizer que nele se concentra o único núcleo que traz algum interesse dramático, possuindo uma filha adolescente que não pode se relacionar com os rapazes de sua idade devido ao perigo de transmissão da doença. Um outro que ainda aparece com um certo destaque é Jude Law ao interpretar um blogueiro que desafia as autoridades - personagem este que lembra Julian Assange e o seu Wikileaks. Aliás, se ainda sentimos alguma empatia pelos tipos na tela é porque já conhecemos seus intérpretes de longa data, o que facilita bastante uma maior aproximação com o público.


Por outro lado, em um aspecto o filme se mostra bastante eficiente: o de gerar a paranoia na plateia. Com closes em mãos e rostos, além de um roteiro que faz questão de ser didático em esclarecer as formas de transmissão de doenças viróticas, “Contágio” se coloca como um verdadeiro thriller da hipocondria, fazendo cada um da sair da sala de cinema com medo até de passar as mãos no rosto ou apertar a mão de um conhecido (principalmente diante do desfecho que realça à enésima potência a nossa fragilidade). Neste ponto termina lembrando bastante “Epidemia” (Outbreak), longa de Wolfgang Petersen lançado em 1995 (que também contou com astros como Dustin Hoffman e Morgan Freeman) realizado na esteira do pânico gerado pelo Ebola, um outro vírus letal e ainda mais agressivo que o H1N1 que inspirou o trabalho de Soderbergh, não sendo por acaso que o vírus do enredo é denominado MEV-1. Ou seja, parece que essas epidemias cíclicas e inevitáveis acabam gerando sempre algum correspondente cinematográfico disposto a explorar a neurose mundial que sempre vem com elas.

E é também na análise das consequências de uma pandemia desenfreada que reside um dos trunfos do longa, sendo Soderbergh muito feliz em mostrar que certos vícios da sociedade, como o egoísmo e a corrupção, são ainda mais acentuados em situações limite como as apresentadas. E que, mesmo diante do caos, ainda há aqueles que conseguem manter a sanidade e doar seus esforços para a coletividade. Claro, está longe da profundidade de um “Ensaio Sobre a Cegueira” (principalmente da obra literária de José Saramago), mas não se pode negar que há interesse nos conflitos e ideias presentes na narrativa, mesmo que às vezes um tanto rarefeitas.

Muitos afirmam hoje que Steven Soderbergh é um diretor superestimado e que esse seu novo trabalho seria mais um exemplo disso. Não chego a tanto. É inegável que Soderbergh é realmente um ótimo cineasta (seu passado que o diga). Porém, talvez devido ao seu caráter prolífico, acaba por denotar uma visível irregularidade e este “Contágio” faz parte de um dos pontos baixos do eletrocardiograma que se tornou sua carreira. Um produto com uma premissa que poderia render bem mais que o resultado mediano que se vê na tela, o qual, mesmo que não chegue a ser chato, por vezes faz lembrar um filme produzido para a TV. E, sim, tal afirmação significa que não precisa pagar caro para vê-lo no cinema, a menos que você faça o gênero hipocondríaco que sinta prazer em ver suas neuras radiografadas na telona.


Cotação:

Nota: 7,0

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Trilha Sonora #20


Não gostei muito da adaptação de "Watchmen" para o cinema, pois a considero bastante inferior à HQ que lhe deu origem. Todavia, não posso negar o brilhantismo de sua sequência inicial de créditos, uma da melhores que já vi. Talvez porque Zack Snyder seja oriundo dos videoclipes, ele soube casar à perfeição as imagens com a famosa música de Bob Dylan "The Times They Are A-Changin' ". Acompanhe no video abaixo a canção e as imagens (o que acaba tornando este post uma mescla com a série "Quero Ver Novamente"). De arrepiar!


The Times They Are A-Changin Watchmen Intro 2009 from Simon Morgenstern on Vimeo.

domingo, 30 de outubro de 2011

O Palhaço



Risos e intimismo


Há poucos dias, em uma entrevista na TV, Selton Mello disse que há 30 anos nutre a dúvida de realmente ter feito a escolha certa ao seguir a carreira de ator, sentimento que até já o levou a momentos de depressão. Tendo conhecimento dessa circunstância podemos perceber que “O Palhaço”, o seu segundo filme na direção (o primeiro foi “Feliz Natal”, em 2008), possui linhas extremamente autorais. Afinal, Benjamim/Pangaré, o palhaço sem carteira de identidade e CPF que o ator e diretor interpreta no longa que teve sua estreia nacional na última sexta-feira, é um artista circense que se vê desmotivado com a vida que escolheu. Ou, pior ainda, que talvez não tenha escolhido, mas apenas herdado, dado que seu pai Valdemar (Paulo José), o dono do circo Esperança, também encarna o palhaço Puro Sangue, fazendo dupla com o filho no picadeiro. Destarte, tal sentimento de “destino imposto” é apenas mais um dos que fazem Benjamim oscilar. As limitações financeiras da vida mambembe, que chegam a transformar a compra de um mero ventilador em um “sonho de consumo”, também lhe fazem desejar seguir outro rumo, assim como a sensação de que o circo também prejudica muito a sua vida afetiva, impedindo-o de constituir laços sólidos com uma mulher.

Desta forma, vê-se que Selton soube levar o drama de Benjamim para além de uma questão unidimensional, assim como o são realmente as nossas escolhas e indecisões. O próprio fato de não possuir uma carteira de identidade serve como metáfora direta de que o referido palhaço ainda não sabe exatamente quem é e que quer ser. Da mesma maneira, o diretor teve a sabedoria de não transformar o enredo (com roteiro escrito pelo próprio Selton em parceria com Marcelo Vindicato) em um dramalhão acentuado, algo que poderia facilmente acontecer em mãos menos talentosas. Pelo contrário. A despeito do tom circunspecto que imprimiu a Pangaré, o longa, na maior parte do tempo, leva o espectador ao riso, sempre contrapondo o drama do protagonista a situações inusitadas e engraçadas, o que, por vezes, realça ainda mais o sentimento de solidão do mesmo. Dar ao riso efeitos intimistas é coisa para poucas obras e esta se destaca justamente por conseguir tal resultado.


Interessante observar que boa parte da narrativa se desenvolve de forma bastante visual. As inquietações de Benjamim são principalmente percebidas através de imagens, como, para citar um exemplo, os constantes olhares deste para os ventiladores, denotando o seu enorme desejo de possuir o aparelho. Além disso, as próprias apresentações circenses da trupe do Esperança funcionam como um elemento narrativo importante, servindo para contar a estória ao mesmo tempo que se colocam como marcos na psique do protagonista e ainda como revelação de conflitos latentes entre os personagens, como a insatisfação de Benjamim a respeito do relacionamento de seu pai com uma mulher bem mais jovem e atraente (Giselle Motta), mas de caráter bastante duvidoso. Interessante que os conflitos praticamente não são verbalizados, mas acabam percebidos pelo público sem que seja empreendido muito esforço, mais uma vez demonstrando que acreditar na inteligência do espectador é sempre uma atitude extremamente bem-vinda em uma obra cinematográfica.

Para contar uma narrativa de maneira tão visual e eficiente, a fotografia de Adrian Teijido dá uma enorme contribuição, sempre captando à perfeição as expressões dos personagens, com enquadramentos inteligentes e inusitados e sabendo utilizar muito bem os close-ups – algo raro no cinema brasileiro, que costuma exagerar nesse quesito por influência da televisão. A fotografia e a edição (do próprio Selton em parceria com Marília Moraes), ademais, nos dão por diversas vezes a sensação de estarmos realmente em um circo, uma impressão interessantíssima que me fez relembrar imediatamente as oportunidades em que de fato estive sob uma lona de picadeiro, fazendo-me rir como um garoto ao ver as palhaçadas de Pangaré e Puro Sangue. Aliada às ótimas montagem e fotografia está a trilha sonora, belíssima e sem cair em qualquer pieguice, culminando com a inserção de uma canção famosa na voz de Moacyr Franco, cantor hoje um tanto esquecido e que por sinal faz uma breve, embora bastante marcante e divertida, participação no longa.


E Moacyr não é o único artista esquecido a ser resgatado por Selton na produção. Revelando aqui as influências de Quentin Tarantino (cineasta que declaradamente é uma de suas maiores referências), Selton convidou figuras queridas e pouco lembradas como Ferrugem e Jorge Loredo (o Zé Bonitinho, lembram?) para também fazerem curtas e bem-humoradas pontas, ideia que deu ainda mais brilho ao competente elenco, mesmo que formado essencialmente por atores pouco conhecidos do grande público (uma das poucas exceções é a do seu irmão Danton). O show, entretanto, fica mesmo por conta da dupla Selton e Paulo José. Curioso que o diretor não pensava para si mesmo o papel de Benjamim/Pangaré, tendo primeiramente convidado Wagner Moura e Rodrigo Santoro para assumi-lo. Contudo, como ambos estavam já envolvidos em outros projetos que coincidiam com os prazos de “O Palhaço”, impossibilitando suas participações, sugeriram que o próprio diretor interpretasse o papel central. E este demonstra mais uma vez ser um dos melhores atores de sua geração, mesmo que esteja hoje querendo se dedicar mais à direção. Já Paulo José (amigo pessoal de Selton), além de sua ótima e contida atuação, nos entrega um verdadeiro exemplo de superação e amor à arte tendo em vista as dificuldades que hoje passa devido à doença de Parkinson que o acomete há anos e que o levou a implantar um eletrodo no cérebro para voltar a controlar os movimentos, muito embora ainda apresente hoje acentuada dificuldade na fala (não percebida na projeção).

Claro que, diante do tema circense, sempre somos levados às lembranças da obra do gênio Federico Fellini e, inevitavelmente, suas influências também se fazem sentir - alguns momentos me remeteram imediatamente a “A Estrada da Vida” (La Strada, 1954), inclusive a sua cena inicial, e a crise pela qual passa Benjamim relembra o Guido de “8 1/2”. Tal circunstância, entretanto, acaba sendo mais um elogio a esta obra de Selton, o qual se qualifica como um dos melhores diretores em atividade no Brasil já no seu segundo trabalho por trás das câmeras. Aliás, se pensarem este filme para uma possível campanha para o Oscar 2013 (já que para 2012 o nosso concorrente será “Tropa de Elite 2”) acredito que ele terá ótimas chances, pois mesmo o cinema mundial está carente de obras tão sensíveis e intimistas, filmes que fazem o público ser tocado ao mesmo tempo em que dá boas risadas na sala de exibição. Poucos autores atingiram este feito (Charles Chaplin, outro produtor-diretor-roteirista-ator, é o primeiro que me vem à mente) e Selton Mello conseguiu, qualificando-se, desta forma, como um autor de primeira linha e que parece ter um futuro brilhante pela frente.


Cotação:

Nota: 10,0

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

7 robôs marcantes do cinema

Com a estreia de “Gigantes de Aço”, longa onde robôs ocupam o lugar dos humanos nos ringues, o Cinema Com Pimenta publica uma lista (mais uma delas) destes seres artificiais responsáveis por momentos marcantes na Sétima Arte. Como sempre, a lista segue com 7 itens. Confira abaixo, sem ordem de preferência.


HAL 9000 – Sem dúvida, o personagem mais marcante de “2001 – Uma Odisseia No Espaço”. Kubrick foi um dos pioneiros na abordagem da inteligência artificial no cinema e HAL se consagrou como o ícone máximo do embate homem-máquina, mostrando que não apenas possuía inteligência, mas também sentimentos! (???). Paranoico que só ele, HAL ameaça a tripulação da nave Discovery após descobrir que será desativado. Inesquecível a sequência em que ele implora a Dave para não ser desligado, tentando se fazer de inocente e apelando para a compaixão do astronauta. Momento genial de um filme que é inteiramente genial.


R2-D2 – O robozinho querido de todo fã da série “Guerra nas Estrelas”, em contraposição ao chatíssimo C3PO. Por sinal, o que seria de Luke Skywalker sem ele?


Wall -E – Outro robô diminuto, mas inesquecível. Wall – E, habitante de um planeta Terra transformado em lixão, é mais humano que a maioria dos seres humanos. Um robô com alma de artista, protagonista do filme que leva seu nome. A Pixar atinge aqui um dos seus melhores momentos!



Rachael – A replicante interpretada por Sean Young em “Blade Runner – O Caçador de Androides” encanta Deckard (personagem de Harrison Ford) e o público com sua sensibilidade e a angústia de descobrir que é um ser artificial e não uma humana. Filosofia pura naquele que talvez seja o melhor filme de Ridley Scott! Bom, “Alien – O Oitavo Passageiro” também fica no páreo, mas “Blade Runner” é obra-prima.



David – Protagonista de “A.I. - Inteligência Artificial”, um garoto robô (papel de Haley Joel Osment) que deseja ser um menino normal e pede à Fada Azul que realize o seu sonho. O filme seria perfeito se terminasse justamente com David pedindo à Fada que o transformasse em um menino de verdade. Mas Spielberg, com sua tendência ao sentimentalismo, tratou de nos oferecer aquele final com jeito de comercial de amaciante Fofo. Uma quase obra-prima com um deslize grande no fim;



T-800 – Arnold Schwarzenegger já havia despontado para os holofotes em “Conan, o Bárbaro”, mas foi como o androide caçador de John Connors em “O Exterminador do Futuro” que ele se transformou em um grande astro. O filme teve mais três continuações, com outros robôs com a missão de destruir o futuro líder da resistência dos humanos contra as máquinas, mas nenhum foi tão carismático quanto o personificado por Arnoldão!



Maria – A precursora de todos os robôs do cinema é a imagem mais marcante e icônica de “Metrópolis”, o clássico da ficção-científica dirigido por Fritz Lang em 1927. Na verdade, a robô Maria é a contraparte malévola da personagem de mesmo nome que funciona como uma líder dos trabalhadores oprimidos pelo Mestre na cidade onde se passa a trama. Filme para ser visto e revisto e que eu estou precisando rever!

Bem, imagino que você deva ter os seus preferidos. Fique à vontade para discordar ou concordar aí nos comentários. Afinal, listas só servem para isso mesmo...