quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Para Ver Em Um Dia de Chuva



Gilda
(Gilda, 1946)


Nunca houve um estigma como Gilda


Neste último domingo, eu estava acompanhando um certo programa esportivo apenas por um motivo: seria exibida uma matéria acerca do filme que está sendo produzido sobre a vida de Heleno de Freitas, jogador de futebol que fez fama nos anos 40 e início dos 50 atuando pelo Botafogo, meu clube do coração. Dentre o vários detalhes que foram exibidos sobre a vida do referido futebolista, comentou-se que lhe foi atribuído o apelido de “Gilda”, numa alusão à personagem de Rita Hayworth no filme homônimo de 1946. Nesse momento, lembrei de um detalhe importantíssimo: eu possuía este clássico na minha coleção pessoal, mas não havia assistido, e olha que tinha muita curiosidade de vê-lo há um bom tempo. Bem, então resolvi sanar este problema quase de imediato: vi o longa-metragem na tarde deste último domingo (antes do jogo do meu Botafogo, claro...).

Na verdade, eu tinha poucas referências sobre esta obra de Charles Vidor, mais um diretor de origem judia e europeia (no caso, húngara) que emigrou para os EUA na primeira metade do século XX. Sabia apenas que se tratava do filme mais lembrado da estrela Hayworth; já havia visto várias vezes na TV a cena em que ela dança enquanto retira as luvas dos braços e que a frase que sempre emoldurou o poster da produção é “nunca houve uma mulher como Gilda”. Ou seja, conhecimentos bastante superficiais. A película, entretanto, foi revelando várias surpresas ao longo de seus 110 minutos. A primeira, que na realidade não é tão surpresa assim, é a de que “Gilda” é um típico filme noir. Estão lá presentes todos os seus elementos. Um protagonista de caráter dúbio (interpretado por Glenn Ford), envolvido com outras pessoas de caráter mais reprovável ainda (criminosos, para ser mais exato), além da inevitável femme fatale, no caso a personagem que dá o título ao longa-metragem e as indefectíveis fumaças de cigarro que sobem durante quase todo o filme. Além disso, Rita Hayworth se mostra mesmo uma mulher muito bonita e dotada de uma sensualidade ainda provocante até para os padrões de hoje. E isso ainda ressalvando que sua atuação não se pauta na vulgaridade. Pelo contrário. Gilda por vezes instiga muito mais por seus olhares e frases de efeito do que por apelar a dotes físicos ou sexualidade verbal explícita. Contudo, o que mais pode surpreender o espectador é a presença de um esguio subtexto homoerótico, principalmente se lembrarmos que a produção é da década de 40.


A relação entre o personagem de Glenn Ford, de nome Johnny Farrell, um aventureiro perdido na Argentina durante os anos da Segunda Guerra, e o de George Macready, o dono de cassino Ballin Mundson, é mesmo cheia de situações e nuances nubladas. A começar pela forma como rapidamente Ballin “apadrinha” Johnny. Este último estava sendo vítima de um assalto quando Ballin o salva usando de suas habilidades no uso de uma bengala que esconde uma espécie de punhal em sua extremidade. Após esse encontro, Johnny passa a trabalhar para Ballin e, em pouco tempo, já se torna seu braço direito. Usando uma frase constante do longa, o qual possui uma narrativa em off do personagem de Johnny: “tudo ia muito bem, parecia que seria sempre apenas nós dois, quando Ballin viajou e retornou com algo inesperado”. Parece mesmo que há algo a mais entre os dois e os mistérios só crescem quando Johnny descobre que a tal surpresa de Ballin é Gilda, uma paixão do passado do protagonista, mas que Ballin ignora. Aliás, ele já está casado com a femme fatale e pede a Johnny que ele a vigie de perto para evitar que o traia. Interessante frisar que Johnny acaba não se importando se Gilda dá as sua saídas com estranhos, desde que Ballin não saiba e venha a ficar magoado. Esse roteiro cheio de meios-termos foi escrito por duas mulheres (algo incomum para a época), Jo Eisinger e Marion Parsonet (baseadas em romance de E. A. Ellington), além de contar com outra representante feminina na produção, Virginia Van Upp (então esposa do todo-poderoso da Columbia, Henry Cohn). É provável que este encontro de mulheres na criação tenha rendido uma brincadeira com os tipos masculinos, uma piada com a misoginia comum a muitos filmes noir. Destarte, não deixa de ser curioso observar essa dubiedade na produção de uma Hollywood extremamente conservadora - ainda o é até hoje, quem dirá nos idos de 40...


Entretanto, o que há de mais rico na narrativa são os diálogos afiadíssimos - responsáveis por frases memoráveis – além do desenvolvimento da personagem de Gilda. A princípio, podemos entendê-la como uma mulher dominadora, mas o transcorrer do enredo mostra exatamente o contrário. Ela se mostra muito frágil ao realizar todas as suas ações tendo como único norte a sua indisfarçável paixão por Johnny. Todas as suas atitudes buscam perturbá-lo de alguma forma, provocando ciúmes ou causando desentendimentos com o seu benfeitor. Ademais, um aspecto interessante da narrativa é que nunca ficamos sabendo o que separou Johnny e Gilda no passado, deixando a trama ainda mais intrigante. Por outro lado, a direção de Vidor deixa a desejar em alguns momentos, com uma montagem um tanto atropelada – principalmente quando próximo do desfecho - além da inexistência de cenas externas. O filme se passa em Buenos Aires, mas jamais vemos qualquer imagem da cidade. O único indício de que se trata de uma país latino são as falas em espanhol (meio tosco, diga-se de passagem) de alguns personagens. Tudo bem que a produção tivesse orçamento limitado, mas havia formas de driblar essa limitação, como usar imagens projetadas da localidade, artifício utilizado por Alfred Hitchcock em “Interlúdio” (Notorious), lançado também no mesmo ano.

Descontados os percalços, “Gilda” se sustenta como um bom filme noir, com algumas reviravoltas e diálogos, como já dito mais acima, bastante saborosos. Mas a verdade é que ele entrou mesmo para a história como o ápice da carreira da estrela Rita e também como sua maldição. Ao cantar “Put The Blame On Mame” na famosa cena do quase strip-tease com as luvas, Hayworth se transformou para sempre em Gilda, jamais conseguindo desligar sua imagem do papel que interpretou. A famosa frase da atriz, “os homens dormem com Gilda e acordam com Rita” é o exato reflexo dos sentimentos de uma mulher condenada a ser para sempre uma fantasia, uma ficção. Afinal, ao se falar em Rita Hayworth qual a primeira imagem que lhe vem à mente? Olhando por este ângulo, talvez nunca realmente tenha havido uma personagem como Gilda, um estigma que acompanhará sua intérprete enquanto existir cinema.


Cotação:

Nota: 8,5

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Filmes Para Ver Antes de Morrer


Vá e Veja
(Idi i Smotri, 1985)


Triste e verídico pesadelo


O cinema norte-americano, ao longo das últimas décadas, costumou impregnar nossas mentes com uma visão romântico-heroica da Segunda Guerra Mundial. Mesmo obras ditas realistas, como “A Lista de Schindler” (Shindler's List, 1993) e “O Resgate do Soldado Ryan” (Saving Private Ryan, 1998), ambas de Steven Spielberg (cineasta que, por sua origem judia, é sempre levado a sério nas suas abordagens sobre o tema), acabam enveredando por esse caminho ao focar personagens que terminam por abraçar sentimentos idealistas ou de sacrifício em prol do coletivo. Hollywood nunca deixa de ser uma fábrica de fantasias, mesmo ao tratar de temas extremamente sérios, o que acaba levando a nós, ocidentais embebedados em sua cultura, a vermos o conflito mais marcante da história da humanidade com um certo ar infantilmente “nostálgico”, como se viver nos anos 40 fosse experimentar um romance como o de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em “Casablanca” (sem querer desmerecer ou atacar esse lindo clássico do cinema) ou tomar atitudes hercúleas no campo de combate que garantissem ao sobrevivente as láureas quando do regresso ao lar. Dentro desta perspectiva, “Vá e Veja”, obra do cineasta bielo-russo Elem Klimov (1933 – 2003), pode ser posicionado como o filme de guerra mais anti-Hollywood já concebido. Nesta obra de extremo impacto para o espectador, realizada durante o declínio da antiga URSS, sobra verdade, realidade e brutalidade em cores e sons que jamais o cinema norte-americano poderia retratar.

Primeiramente, é importante ressaltar que este longa-metragem é uma espécie de sessão de análise do diretor Klimov, cuja infância foi marcada pelos horrores da invasão nazista no Leste Europeu durante o mencionado conflito. A guerra no lado oriental da Europa costuma ser, inclusive, bastante ignorada pela sua parcela ocidental, fato que se deve notoriamente a décadas de Guerra Fria. Lá morreram cerca de 20 milhões de russos, mais 5 milhões de ucranianos e mais alguns milhões de bielo-russos, um outro holocausto de proporções ainda mais aviltantes do que o ocorrido com os judeus. Assim, a visão apresentada do conflito é extremamente pessoal, sendo que o personagem que nos guia na narrativa, o adolescente Florya (o ator se chama Aleksei Kravchenko, responsável por uma interpretação meio que transcendental), funciona como o alter-ego do cineasta diante dos horrores que desfilam um após o outro.


Praticamente não há estória em “Vá e Veja”. O protagonista Florya se junta aos partisans, grupo de resistência aos invasores nazistas e, após ser deixado em uma floresta antes de uma batalha por ser muito novo para combater, acaba encontrando uma outra jovem, Glasha (Olga Mironova, também em uma atuação no mínimo impressionante). Os dois retornam à aldeia de Florya apenas para descobrir que ela foi destruída pelos nazistas e sua população, incluindo a família do rapaz, quase totalmente dizimada. A partir deste ponto o que vemos é uma sucessão de cenas tão realistas que beiram paradoxalmente o surreal, tamanho o horror com que nos deparamos.


É relevante destacar que o poder imagético de “Idi i Smotri' é um dos mais impressionantes já vistos, o que potencializa ainda mais a referida barbárie na tela. Com um fantástico uso da steadycam (aquela câmera sem solavancos que acompanha um personagem em uma cena), muitas vezes usada do ponto de vista do protagonista, a sensação que temos é de estar testemunhando in loco aquela violência. Talvez só Stanley Kubrick – em “O Iluminado” - tenha usado tão bem este recurso quanto tanto Klimov o faz aqui. Desta maneira, a concepção visual do longa nos rende imagens tão fortes quanto inesquecíveis, tais como a de Florya e Glasha tentando atravessar um pântano; a dos corpos empilhados na aldeia de Florya; a impressionante sequência em que o garoto tenta se proteger de uma rajada de balas atrás do corpo de uma vaca agonizante; ou ainda a de um homem quase inteiramente queimado pelos alemães. Aliás, difícil encontrar um fotograma neste filme que não seja melancolicamente memorável.


Mas não é apenas de imagens que vive o longa de Klimov. O som, sem qualquer exagero, é um dos mais incríveis da história da Sétima Arte, complementando a experiência de imersão do espectador pretendida pelo diretor. Em certa passagem, uma bomba cai próxima de Florya e o consequente zumbido, que o deixa quase surdo, toma conta da projeção, a qual se alonga por mais de meia hora desta forma. Ficamos, assim, quase surdos como o personagem, ouvindo o perturbador barulho e quase não escutando as vozes daqueles que se dirigem a ele. Há ainda sequências em que ouvimos o barulho constante de aviões alemães, transmitindo-os a sensação de angústia em estar exposto a um possível ataque. Fosse uma produção em língua inglesa, certamente teria levado os prêmios da Academia nas categorias de som e efeitos sonoros. Mas, como sabemos, o Oscar é um prêmio voltado para promover o cinema hollywoodiano... A montagem, como frequentemente ocorre no cinema russo (vale relembrar que Sergei Eisenstein praticamente criou a edição tal como a vemos nas produções contemporâneas), é outro capítulo à parte, sendo inclusive um aspecto que gerou uma das mais lembradas sequências deste longa-metragem. Nela, Florya atira contra um cartaz com a imagem de Adolf Hitler enquanto, em rápidos cortes, vemos também passagens documentais do conflito e da ascensão do nazismo na Alemanha, uma contraposição de ficção e realidade que influenciaria o citado Steven Spielberg nas suas mencionadas obras sobre a guerra. Ou melhor, se o espectador observar com ao menos um pouco de atenção a película, perceberá o quanto Spielberg bebeu dessa fonte para a concepção de seus filmes ("Império do Sol", de 1987, parece ser uma versão “light” deste filme depois de tê-lo visto).

O perfeccionismo de Klimov em retratar o horror foi tamanho que ele se valeu de um especialista para hipnotizar o jovem Kravchenko e assim extrair do ator o seu máximo interpretativo sem que este corresse o risco de ficar com traumas psicológicos. Até mesmo a maquiagem sobre o garoto nas últimas cenas nos dá a impressão de que ele envelheceu décadas em alguns dias. Obsessão? Exagero? É possível que muitos enxerguem desta forma, mas o resultado alcançado foi mesmo assombroso. Não foi por acaso que o título escolhido para a produção é um trecho do livro bíblico do Apocalipse. Nada mais adequado para sintetizar uma experiência ímpar que, indubitavelmente, se coloca entre os melhores filmes do gênero já realizados, mostrando em imagens que na guerra não há heróis, apenas sobreviventes. Um retrato de um pesadelo tristemente verídico.


Cotação e nota: obra-prima.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Brasil no Oscar e um Rei de volta ao topo


Como vocês já devem estar sabendo, "Tropa de Elite 2" foi escolhido para entrar na briga pelo melhor filme em língua não-inglesa no Oscar 2012. Olha, é justo. Os outros concorrentes não teriam qualquer chance, como "Assalto ao Banco Central" e "As Mães de Chico Xavier". Não há dúvidas que "Tropa 2" é o melhor filme e já teria merecido a indicação no ano passado no lugar de "Lula - O Filho do Brasil". Mas a verdade é: não vai levar. Filmes violentos costumam ser rejeitados nesse prêmio (lembram de "Cidade de Deus"?) e o longa possui um tom muito voltado para o nosso público. Não é coisa para "americano ver".


Outra notícia importante dos últimos dias é a de que a versão em 3D de "O Rei Leão" atingiu o topo das bilheterias ianques no último fim de semana e disso tiro 3 conclusões:

1) A criatividade do cinema hollywoodiano está mesmo chegando ao fundo do poço;

2) "O Rei Leão" é mesmo uma das obras-primas da Disney. Um filme que os pais estão fazendo questão de levar seus filhos para conferir no cinema (eu mesmo vou fazer questão de garantir o blu-ray em breve). Quem foi rei nunca perder a majestade;

3) Em um prazo muito, muito breve vamos nos deparar com a notícia do próximo "clássico da animação" a ser convertido para o 3D e relançado nos cinemas. Pode apostar, é bem mais fácil que acertar os números da Megasena.

domingo, 18 de setembro de 2011

Restaurando a Película




Amar Foi Minha Ruína
(Leave Her To Heaven, 1945)



As cores de um melodrama-noir


É comum associarmos o cinema noir à fotografia em preto e branco, algo perfeitamente natural, já que este gênero surgiu a partir da influência do expressionismo alemão e seus diretores que imigraram para os EUA fugindo do nazismo. Além disso, o noir era composto de produções de baixo orçamento, o que geralmente impossibilitava o uso do ainda caro technicolor, sendo este usado com mais frequência em grandes produções como “...E o Vento Levou” ou “O Mágico de Oz”. Assim, é com uma certa estranheza que ao vermos “Amar Foi Minha Ruína” nos deparamos com um resplandecente uso de cores, utilizadas não apenas como adorno fotográfico, mas também possuindo simbologias que enriquecem a adaptação para a tela grande do livro homônimo escrito por Ben Ames Williams. O impacto das cores se faz sentir ainda em uma das primeiras sequências, quando vemos a impressionante beleza de Gene Tierney, com o seu rosto que mais parece de um anjo moldado por algum escultor grego. Deve ter sido um enorme encanto, para o público de 1945, assistir a cenas com aqueles incríveis olhos azuis em uma tela de cinema, ainda mais se lembrarmos que seu maior sucesso havia sido no papel de Laura, personagem central do filme homônimo (de 1944 e um dos grandes clássicos do noir) produzido no ano anterior e rodado em p&b.

A escolha de Tierney para protagonista (que se deu depois da recusa de Rita Hayworth) foi mais do que feliz, uma vez que sua beleza contrasta, tais como as cores branca e preta, com o interior sinistro de Ellen Berent, sua personagem. O “preto e branco” existente na projeção ocorre nesta contraposição entre uma criatura tão bela exteriormente e tão horrível no seu íntimo. Palmas para o cineasta John M. Stahl, conhecido diretor de melodramas como “Imitação da Vida” (Imitation Of Life, 1934) e que aqui nos entrega o melhor trabalho de sua carreira, fugindo do tom sentimental da maior parte de sua obra para promover uma autêntica investigação sobre o lado mais pérfido que pode brotar de um ser humano.


O roteiro, construído com paciência e narrado em flashback, vai revelando lentamente o perfil da citada Ellen, uma mulher de família abastada que perdeu o pai recentemente. Somos apresentados a ela quando Richard Harland (Cornel Wilde), um escritor em férias, acaba se encontrando com a mesma em uma viagem de trem para o Novo México. A atração entre os dois surge quase imediatamente, principalmente da parte de Ellen, a qual vê muitas semelhanças entre Richard e seu falecido pai. Ela está noiva de um promotor de justiça, Russel Quinton (Vincent Price), mas não hesita em terminar rapidamente a relação com o mesmo e contrair um casamento relâmpago com Richard. Este, porém, vai percebendo gradualmente que Ellen tem um relacionamento difícil com as pessoas que a cercam, seja com a irmã Ruth (Jeanne Crain) ou a mãe (Mary Philips). E não tarda que a verdadeira personalidade de Ellen, possessiva e paranoica, comece a interferir no relacionamento do casal, já que a esposa repele a aproximação de qualquer outra pessoa que possa “se colocar” entre os dois, até mesmo de Danny, o irmão mais novo e paraplégico do marido.

Elaborado com inúmeras sutilezas, o enredo, por meio de diálogos muito bem escritos, evolui deixando pistas do que pode acontecer, como ao sugerir em alguns momentos a relação edipiana de Ellen com o seu genitor ou quando ela rejeita a sugestão de Richard de contratar uma empregada, já que seria a única pessoa que poderia lhe servir ou agradá-lo. Desta forma, ocorre um crescente dramático e mesmo de suspense que surpreende o espectador até chegarmos a cenas que se tornariam muitos imitadas posteriormente, [SPOILER] como aquela em que Ellen se atira escada abaixo para provocar um aborto ou ainda quando assiste impassível ao afogamento do jovem cunhado [FIM DE SPOILER]. Entretanto, nada disso funcionaria sem que a personagem central tivesse uma intérprete à altura. E Tierney, hoje uma atriz estranhamente pouco lembrada pelo grande público, se mostrou a escolha ideal não apenas pela sua supramencionada beleza, mas também por nos presentear aqui com aquela que pode ser considerada a melhor atuação de sua carreira, a qual acabou lhe rendendo uma indicação ao Oscar de melhor atriz (perdeu para Joan Crawford com “Alma Em Suplício”). Outro destaque entre as atuações fica com Jeanne Crain, na pele da irmã de Ellen, mostrando talento dramático, além de ser também muito bonita. Já Cornel Wilde deixa a desejar com uma interpretação apenas competente de seu Richard, sem maior brilho.


Como já destacado acima, em “Amar Foi Minha Ruína” a fotografia é um caso à parte, mas não apenas por destacar a beleza da atriz principal. Leon Shamroy, vencedor do Oscar por este trabalho, captou com extraordinária beleza as paisagens desérticas do Novo México, assim como os lagos e florestas do Maine. Algumas tomadas mais parecem verdadeiras pinturas de tão bonitas. Ademais, Shamroy soube destacar os figurinos usados por Ellen no decorrer da trama, pensados para surgirem de forma antagônica aos demais, pois que somente ela usa cores vivas como o vermelho, o azul e o verde, enquanto aos demais são reservadas cores neutras. Tão belas imagens são ainda sublinhadas pela ótima trilha de Alfred Newman, muito bem utilizada para marcar os momentos de tensão da narrativa. Alguns erros de continuidade, entretanto, se fazem notar, como em algumas sequências que se iniciam à noite e, em seguida, vemos o sol brilhando na imagem. Lapsos de Stahl que talvez tenham lhe custado o esquecimento por parte da Academia de Hollywood.

Forte e muito bem realizada, o excelente título original da produção, “Leave Her To Heaven”, possivelmente traduz o pensamento que perpassa a mente do espectador ao fim da experiência. A frase foi retirada do “Hamlet” de William Shakespeare e se refere à Rainha Gertrude, a qual se casou com o assassino do seu marido, podendo ser traduzida como “deixe-a para o céu julgar”. Nada mais adequado para uma mulher que transformou o amor que sentia em algo destrutivo não somente para ela, como também para o objeto do seu sentimento. Tendo envelhecido muito bem, é intrigante que este melodrama-noir, apesar de muito copiado, não seja muito lembrado pelos admiradores da Sétima Arte. Uma obra que merece ser mais conhecida.


Cotação:

Nota: 9,5

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Trilha Sonora #19


"Feitiço Havaiano" (Blue Hawaii, 1961) foi um dos filmes realizados logo após a volta do Rei do Rock, Elvis Presley, depois de prestar dois anos de serviço militar. Não é por acaso que seu personagem no filme também chega ao Havaí depois de dois anos no Exército. Obviamente, a trama do filme é daquelas típicas do cinema moldado para o astro: enredos bobinhos, com garotas bonitas, namoricos, alguma aventura e, claro, a música do Rei. E esta é de primeira qualidade, como demonstra "Can't Help Falling in Love", canção da trilha de "Feitiço Havaiano" que se transformou em enorme sucesso. Não seria para menos, já que a música é mesmo ótima. Som na caixa! Elvis não morreu!


terça-feira, 13 de setembro de 2011

O Homem do Futuro



Para além da nostalgia


A música é uma forma de arte capaz de despertar reminiscências de momentos bastante específicos de nossas vidas. Uma determinada canção pode nos remeter ao primeiro encontro com uma namorada, a uma viagem, a uma festa, a fases mais tristes ou alegres da existência. Eu acreditava, entretanto, que só a música tinha esse poder de fazer com que nos lembremos até mesmo dos cheiros e iluminação de um ambiente onde ocorreu algo de significativo na história de cada um. Estava equivocado. Ao assistir a “O Homem do Futuro”, neste último fim de semana, percebi que o cinema, quando bem realizado, também pode ter esse dom.

Foi impressionante como este longa-metragem de Cláudio Torres (parece que o talento é mesmo genético em sua família) conseguiu me transportar para os tempos da faculdade, trazendo-me ótimas recordações das festas em que empunhava o microfone para cantar as músicas da Legião Urbana, tal como os dois personagens centrais da narrativa, João “Zero” (Wagner Moura) e Helena (Alinne Moraes), o fazem no evento crucial que trará todos os desdobramentos do interessante roteiro escrito pelo próprio diretor. É devido aos fatos que ali ocorreram que o físico João levou a tal alcunha de “Zero”. Agora, vinte anos depois do acontecido, ele está desenvolvendo uma pesquisa sobre uma nova forma revolucionária de energia, mas é também um homem muito amargurado, ressentido com o passado e que continua obsessivo por Helena. Em uma das experiências para provar que a forma de energia que pesquisa não causa riscos, João acaba sendo transportado para o passado, mais exatamente para o exato dia da festa que lhe trouxe tantos dissabores. Então, ele resolve tentar modificar o curso dos acontecimentos, o que levará a realidades alternativas também não muito felizes.

Este é o quarto trabalho de Torres como diretor e o terceiro bom filme que ele faz, demonstrando que além de ter talento para o ofício, também possui uma queda pelo fantástico/inusitado. Essa tendência se mostra tanto em “Redentor” (2004) quanto em “A Mulher Invisível” (2009) e aqui se solidifica ainda mais, especialmente por investir em um gênero pouco explorado no cinema nacional, como é o caso da ficção científica. Mesmo tendo de lidar com um roteiro naturalmente intrincado – como normalmente sucede com filmes que tratam de viagens temporais (e que comumente têm seus furos) – Torres jamais deixa a peteca cair, estabelecendo um ótimo ritmo para a narrativa e sem que ocorra confusão na mente do espectador em meio a tantas passagens de tempo. Além disso, mesmo diante de limitações orçamentárias, como fica claro na utilização de uma construção de Oscar Niemeyer para servir de residência para João em um dos futuros alternativos, os efeitos especiais empregados são muito convincentes e não apenas nos momentos em que o personagem central viaja no tempo, havendo outros mais sutis espalhados ao longo da projeção que sequer nos damos conta. No entanto, existem alguns descuidos de produção que se fazem notar, como denominar a máquina de João em um certo momento de “acelerador de partículas” e em outro como “conversor de partículas” o que, em termos físicos, faz uma baita diferença.


Não obstante estes pequenos problemas, a escolha do elenco foi de uma felicidade ímpar e isto se faz ainda mais importante se tivermos em vista o limitado número de personagens que compõem a trama. Alinne Moraes, além de sua beleza e sensualidade, e a despeito de algumas incongruências com sua Helena no inicio da narrativa, nos dá uma boa atuação, encaixando-se perfeitamente na figura da mulher que vira o objetivo de vida do protagonista. Já Fernando Ceylão, que faz Otávio, o melhor amigo de João, está ótimo com seu tipo engraçado e camarada, levando-nos a torcer para que seu personagem também tenha um bom desfecho. Maria Luísa Mendonça também sempre aparece bem como Sandra, amiga do protagonista e responsável pelo financiamento de suas pesquisas, assim como Gabriel Braga Nunes se encaixa bem no papel do playboy antipático. Mas é mesmo Wagner Moura que, em mais uma oportunidade, nos entrega um show particular ao interpretar o mesmo personagem em três fases distintas de sua vida. Ingênuo e tímido quando jovem, nervoso e amargurado já mais velho, além de finalmente equilibrado e seguro após aceitar e entender os eventos de sua história de vida, o ator consegue atribuir características distintas a cada um deles, mas sem que pareçam ser pessoas diferentes. Já vi comentários pela internet realizando comparações com “De Volta Para O Futuro” (Back To The Future, 1985), afirmando que ele consegue fazer Marty McFly, George McFly, Doc Brown e Biff todos ao mesmo tempo. E eu ainda acrescento: faz todos estes dentro do mesmo papel e jamais caindo no ridículo. Como já considerei em outras oportunidades (vide a resenha de “Tropa de Elite 2”), acredito que Wagner Moura é não apenas o melhor ator do Brasil no momento, mas está, e por que não, entre o melhores do mundo.

Não bastasse o sucesso do elenco, a trilha sonora pop incidental foi escolhida com rara felicidade. Torres já havia demonstrado ter perspicácia para tanto em “A Mulher Invisível” e aqui não foi diferente. A escolha de “Tempo Perdido”, da Legião Urbana (no filme interpretada por Wagner e Alinne), para sublinhar com força os principais momentos da projeção, é perfeita, assim como “Creep”, do Radiohead (com vocais também de Wagner juntamente com a banda Sua Mãe, da qual fez parte) e “It's The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)”, do R.E.M, são inseridas de maneira sensacional, totalmente adequadas às cenas das quais fazem parte. O espectador acaba saindo da sala com as canções tocando na mente, com vontade de continuar ouvindo repetidas vezes.

Com tantos méritos, “O Homem do Futuro” não apenas é feliz em levar o público a uma viagem nostálgica (o que aconteceu comigo, como relatei acima). Ele é ótimo tanto como um entretenimento que nos fará dar várias risadas, como também em nos fazer compreender que os erros e fatos tristes do passado de cada um são importantes como aprendizado e amadurecimento. Não adianta querermos mudar o passado ou simplesmente esquecê-lo. O importante está em aceitá-lo e crescer com ele. Acima mencionei que a obra de Cláudio Torres tem um pendor para o fantástico. É verdade, mas também é verdade que em todos os seus filmes os personagens são obrigados a superar suas dores e aprender com elas. Na vida, evoluir é essencial.


Cotação:

Nota: 9,0

domingo, 11 de setembro de 2011

Planeta dos Macacos: A Origem



Macacos de todo o mundo: uni-vos!


Ao longo de meu período universitário, um dos trabalhos acadêmicos que mais me deixou recordações foi realizado dentro de disciplina de Ética, ainda no 3º período. Foi um seminário em que discutíamos se nós, seres humanos, temos o direito de impingir sofrimento ou mesmo matar outros seres vivos tidos como “irracionais”. Lembro-me que, um dos livros base para o trabalho, denominado “Ética Prática” (do polêmico filósofo Peter Singer), relatava uma experiência com macacos da espécie conhecida como bonobo, onde cientistas chegaram à conclusão que estes símios possuíam, na idade adulta, uma inteligência similar a uma criança de 6 anos, chegando a possuir consciência de si mesmos. Diante desta constatação, meu grupo defendeu a tese de que animais com tamanho desenvolvimento deveriam ter garantido seu direito à vida tal como nós, seres humanos, bem como não deveriam ser submetidos a tratamentos degradantes (como reclusão em jaulas ou experiências de caráter científico temerário). Mas por que estou relembrando esses fatos pessoais de minha vida estudantil nesta resenha? Bem, não é por mero saudosismo. A questão é que “Planeta dos Macacos: A Origem”, atualmente em exibição nos cinemas, tem como ponto central justamente o questionamento sobre os limites da postura da humanidade diante das outras espécies tidas como “irracionais”.


É a partir desta ideia, de que os animais devem se tratados com mais respeito pela humanidade, que os roteiristas Rick Jaffa e Amanda Silver desenvolvem um roteiro inteligente e que se conecta muito bem com o filme original de 1968, estrelado por Charlton Heston e dirigido por Franklin J,. Shaffner (grande diretor que deveria ser mais lembrado), longa-metragem que gerou várias sequências nos anos 70 e até série televisiva. A trama, que se passa em um futuro próximo, é amarrada a partir de uma pesquisa sobre o Mal de Alzheimer desenvolvida pelo cientista Will Rodman (James Franco, apenas competente). Símios de diversas espécies, de chimpanzés a orogotangos, são as cobaias usadas e alguns deles acabam desenvolvendo uma inteligência acima do comum. É o filhote de uma das fêmeas, Cesar (o fantástico Andy Serkis), que acaba sendo levado por Will para ser criado em casa, demonstrando, aos poucos, que tem uma compreensão sobre o mundo que o cerca semelhante a de um homem. Entretanto, Cesar vai aos poucos se sentindo inferiorizado por ser tratado como um bicho de estimação quando fora de casa, além de se sentir isolado em um mundo dominado por humanos, até que, como já subentendido pelo título do filme, alguns fatos que ocorrem que levarão não apenas Cesar, como também o grupo de símios por ele liderado, a uma revolta contra as condições degradantes em que vivem e pela liberdade.


Interessante perceber, ao longo da narrativa de um blockbuster concebido por Hollywood, a presença constante de concepções de cunho socialista, apresentando-se como um verdadeiro manifesto contra qualquer tipo de opressão, indo além da mera panfletagem ecológica. A cena em que Cesar dialoga com outro macaco mostrando que estes isolados são frágeis e que juntos podem ser fortes é puro marxismo. Só faltou surgir a frase “macacos de todo o mundo: uni-vos” para que pudéssemos sentir na tela a perfeita transposição do Manifesto Comunista escrito por Marx e Engels. Não é exagero dizer que Sergei Eisenstein poderia, caso fosse vivo, ter assumido a direção do projeto.

Não obstante este caráter social-libertário, o filme apresenta méritos excepcionais enquanto obra cinematográfica. Os efeitos usados para conceber Cesar, com aquela captação de movimentos e expressões que se tornou famosa desde a trilogia “O Senhor dos Anéis” (motion capture), são simplesmente incríveis. Em vários momentos, parece que estamos diante de um macaco real, esquecendo que se trata apenas de um artifício da tecnologia. À parte os méritos da técnica, Andy Serkis, que já se especializou neste tipo de trabalho, nos entrega mais uma atuação excepcional. Talvez um dia a Academia reconheça o mérito de suas performances e o premie com um Oscar. Vale dizer que não apenas Cesar é convincente, mas todos os outros símios também o são, consagrando o longa como mais um marco na evolução dos efeitos visuais. Na outra vertente, a dos humanos, se o citado James Franco não enche os olhos com sua atuação, John Lithgow, que faz o pai de Will, portador do Mal de Alzheimer, é o único dos “humanos” a nos estregar uma ótima atuação, já que Freida Pinto, como a namorada de Will e veterinária que ajuda nos cuidados com Cesar, não tem muito o que fazer (mas está bonita como sempre). Destarte, é surpreendente ver com um diretor praticamente desconhecido como Rupert Wyatt pode nos entregar um longa tão bem conduzido, sabendo dosar a tensão e contar sem pressa a narrativa. Além disso, mostra-se um grande diretor de sequências de ação, onde entendemos perfeitamente tudo que está acontecendo na tela (viu Michael Bay?).

Apesar da estória acabar por recorrer a situações inverossímeis (como um grupo de macacos poderia resistir tão bem a um enorme contingente de polícia e exército armados?), “Planeta dos Macacos: A Origem” se mostra como um libelo contra toda forma de opressão, seja no que diz respeito a classes sociais, sexo, raça ou mesmo contra outras espécies de seres vivos, como fica mais explicitado no longa. Ademais, ainda toca no tema da responsabilidade com pesquisas científicas que possam eventualmente gerar situações que fujam do controle, colocando em risco a própria existência humana. Um blockbuster que, além de levar ótimo entretenimento ao espectador, consegue também fazê-lo refletir é sempre muito bem-vindo. O sucesso que este longa-metragem vem obtendo nas bilheterias é bastante merecido e talvez ele possa ser inserido dentro daquela nova revolução que parece estar acontecendo no cinema comercial: a dos grandes lançamentos que também fazem o público pensar (como no exemplo de “A Origem”). Um filme que faz justiça ao mencionado original de 1968.


Cotação:

Nota: 9,0

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Quero Ver Novamente #14


Há poucos dias, revi "Magnólia" (1999) e pude constatar o quanto esse filme pode ser surpreendente, com seu roteiro inusitado e atuações excelentes. Todavia, à parte sua indubitável inteligência, o que mais encanta nesta obra de Paul Thomas Anderson é sua capacidade de emocionar, como nesta conhecida sequência em que todos os personagens cantam "Wise Up", uma das composições de Aimee Mann que serviram de inspiração para o filme (Anderson é amigo da cantora). Ah, e se você ainda não viu, resolva imediatamente este problema! Assista abaixo à referida cena.



terça-feira, 6 de setembro de 2011

Para Ver Em Um Dia de Chuva



Tempo de Glória
(Glory, 1989)


Bom para o cinema, importantíssimo para a memória



É curioso que o cinema norte-americano aborde tão esporadicamente um evento de importância crucial na História dos Estados Unidos como o foi a famosa Guerra de Secessão. Mesmo o clássico absoluto “...E o Vento Levou”, primeiro filme que costuma vir à mente dos cinéfilos quando se menciona dita temática, coloca o conflito apenas como um pano de fundo e ambientação histórica para as desventuras de Scarlett O'Hara, sem levar a fundo uma investigação sobre as causas e consequências da guerra. Talvez esse descaso das produções estadunidenses ocorra porque o referido evento histórico mexe com feridas ainda não cicatrizadas da formação do país, tocando em aspectos como o ódio racial, direitos civis e também o desnível econômico hoje existente entre os estados do Norte e do Sul. Dentro desse contexto, um filme como “Tempo de Glória” (Glory) se faz muito bem vindo ao não apenas abordar diretamente o conflito, mas também ao remexer em algumas dessas sujeiras que os norte-americanos fazem questão de tentar esconder embaixo do tapete.

Este é, possivelmente, ao lado de “Diamante de Sangue” (Blood Diamond, 2006), o melhor filme da irregular carreira do diretor Edward Zwick, o qual também foi responsável por bombas como “Lendas da Paixão” (Legends Of The Fall, 1994), uma espécie de novelão disfarçado de cinema. É possível que este seu sucesso em “Tempo de Glória” se deva à própria natureza grandiosa dos fatos que inspiraram sua realização, aptos a deixar correr solto o tom épico grandioso que parece ser uma autêntica mania de Zwick, mas sem que isso se torne cafona. Afinal, a narrativa trata do destino do 54º Regimento do Exército de Massachusetts, o primeiro a ser formado apenas por negros durante a secessão. Menosprezado por muitos, já que composto por voluntários que, em sua maioria, não tinham qualquer noção de combate (além do preconceito com a cor da pele, claro), o 54º acabou servindo como espelho de bravura e obstinação para os demais ao tentar tomar um forte sulista praticamente intransponível.

O roteiro, escrito por Kevin Jarre, foi baseado em livros de Lincoln Kirstein e Peter Buchard, os quais, por sua vez, inspiraram-se nas cartas de Robert Gould Shaw, jovem coronel pertencente a uma abastada família de Boston, mas de caráter bastante liberal (no filme interpretado por Matthew Broderick). Alguns apontam como crítica este desenvolvimento da trama a partir do ponto de vista de um branco, mas a realidade é que tal ótica não deixa de ser a mais fiel aos fatos históricos (hoje, as cartas encontram-se arquivadas na Universidade de Harvard). Destarte, de todos os personagens da trama apenas o Coronel é comprovadamente real. Todos os soldados negros são elaborações ficcionais. Entretanto, os tipos são bem construídos, desde o revoltado Trip (Denzel Washington, no papel que o levaria ao estrelato), passando pelo sensato sargento (e ex-coveiro) John Rawlins (Morgan Freeman), até o letrado Thomas Searles (Andre Braugher), todos apresentam facetas tridimensionais, sendo mostrados não apenas seu idealismo e bravura, mas também suas dúvidas, fraquezas e inseguranças. Neste aspecto, é importante salientar a qualidade das interpretações em tela. Morgan Freeman faz aquele seu tipo característico, mas com a competência de sempre; Braugher consegue demonstrar todo o conflito de um homem idealista, mas inteiramente desconfortável e fragilizado com o duro treinamento militar. Entretanto, o show fica mesmo por conta de Denzel Washington. A cena em que o ex-escravo Trip é chicoteado devido a uma suposta tentativa de deserção é realmente memorável e só ela já faria por merecer o Oscar de ator coadjuvante que o intérprete levou. Ademais, Matthew Broderick encontra aqui o seu melhor momento no cinema ao lado do seu antológico Ferris Bueller de “Curtindo A Vida Adoidado” (Ferris Bueller's Day Off, 1986).


Por outro lado, o roteiro também é feliz ao cutucar, por meio de interessantes diálogos, as feridas raciais norte-americanas. Em dado momento, Trip questiona o Coronel Shaw: “Se vencermos, Coronel, você voltará a Boston, para sua casa e sua família. E nós, o que ganharemos?”. Ou ainda, quando Trip zomba de uma tropa de soldados brancos que voltam derrotados de uma batalha e é criticado pelo Sargento Rawlins: “não seja idiota, eles estão lutando por nós. Já enterrei muitos soldados brancos, agora é hora de nós também fazermos a nossa parte”.

Mesmo que o texto, em alguns momentos, possua algumas doses acentuadas de fatalismo, os problemas da película se encontram mesmo na direção de Zwick, sempre no limite entre o bom gosto e o sentimentalismo barato, principalmente ao fazer a trilha sonora despertar acordes épicos e emocionais a cada três minutos, mesmo que, em termos puramente musicais, as composições de James Horner sejam belíssimas. A presença de alguns momentos piegas, todavia, não impede que existam cenas de real emoção, como naquela em que os soldados - em um momento que revela as origens da música norte-americana - cantam antes da batalha que pode significar as suas mortes. De qualquer forma, a beleza da fotografia de Freddie Francis (vencedora do Oscar) , bem como a impactante e violenta sequência da batalha final no forte (uma espécie de precursora do que seria feito mais tarde em “O Resgate do Soldado Ryan”) compensam os eventuais deslizes de Zwick.

Dono de um apuro técnico que nos faz duvidar que seja uma produção de 1989, “Tempo de Glória” se coloca, hoje, como uma espécie de remédio contra o cinismo e a indiferença do século XXI, narrando com eficácia uma história real deveras inspiradora. Por outro lado, não deixa de apontar o dedo para determinados problemas da sociedade americana que ainda perduram mesmo depois de tantos anos. Um filme que se faz importante não somente por suas qualidades cinematográficas, mas, principalmente, por ser um dos poucos longas a retratar com eficiência uma momento histórico pouco abordado na produção ianque. Bom para o cinema, mais importante ainda para a memória.


Cotação:

Nota: 8,5

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Eddie Murphy no Oscar 2012?


Como muitos de vocês já devem estar sabendo, Brett Ratner (diretor de "X-Men: O Confronto Final") será o responsável pela direção da festa do Oscar em 2012. Pois bem, agora ele convidou Eddie Murphy, que no passado já teve larga experiência como humorista stand-up, para apresentar a 84ª edição do evento. A escolha se torna curiosa pelo fato de Murphy já ter feito papel de ridículo quando de sua indicação ao prêmio de ator coadjuvante por "Dreamgirls" (quando perdeu, levantou-se e foi embora) e também não ser das figuras mais bem quistas em Hollywood. Sendo bem sincero, a verdade é que as cerimônias se tornariam bem melhores sem esses "apresentadores". Bastaria aquele(a) que vai anunciar cada prêmio entrar, relacionar os indicados e o vencedor e ponto final. Se a audiência do programa vai caindo com o passar das horas é justamente porque as pessoas perdem a paciência com tanta bobagem... A cerimônia do Oscar 2012 está prevista para o dia 26 de fevereiro.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Para Ver Em Um Dia de Chuva


O Enigma de Kaspar Hauser
(Jeder für Sich und Gott Gegen Alle, 1974)


Intolerância



Antes de tudo, convém explicar quem foi Kaspar Hauser, personagem central desta obra do cineasta alemão Werner Herzog. Trata-se de um rapaz que foi encontrado, em 1828, em uma praça, apenas com uma carta na mão, na cidade alemã de Nuremberg. Ele não sabia ler, escrever, falar ou mesmo andar. Havia passado toda a sua vida trancado em uma espécie de masmorra, desprovido de qualquer contato com outras pessoas. Até mesmo sua comida era colocada no ambiente enquanto ele dormia. Algum tempo depois de sua libertação e convívio com a sociedade, o mesmo é misteriosamente assassinado com uma facada no peito. Jamais o mistério de sua origem foi desvendado, tendo surgido diversas teorias a respeito, entre estas a de que ele seria apenas um mendigo espertalhão (que “se fez de doido para melhor passar”, para usarmos uma expressão popular) e outra de que seria neto de Napoleão Bonaparte, escondido da sociedade por questões que envolveriam sucessão e bastardia.

O personagem histórico se constitui em uma ótima matéria-prima para o citado Herzog, um diretor bastante afeito a enfocar tipos deslocados da sociedade, vivendo em uma espécie de mundo próprio à parte dos demais, tendência que ainda manteve com o passar dos anos, basta lembrarmos de “Fitzcarraldo” (1982) e o documentário “O Homem Urso” (Grizzly Man, 2005). Ele é, ao lado de Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder, um dos grandes expoentes do chamado “Novo Cinema Alemão”, expressão cunhada para designar as produções capitaneadas por jovens diretores germânicos no final dos anos 60 e início dos 70, bastante influenciados pela Nouvelle Vague e também pelo Cinema Novo brasileiro. Destarte, ao contrário de Wim Wenders, por exemplo, o qual toca em questões existenciais com marcante sensibilidade, Herzog costuma caminhar em uma vertente mais cerebral, realizando análises das interações do indivíduo com a sociedade de uma maneira menos emocional, digamos assim. “O Enigma de Kaspar Hauser”* parece ser a epítome desta característica do cineasta alemão. Com um tema que poderia facilmente descambar para o sentimentalismo barato nas mãos de outros nomes, o diretor alemão traça um verdadeiro estudo não só das interações do indivíduo com um meio que lhe é hostil, mas também da própria ideia do que constitui a natureza humana.

Na narrativa de Herzog, Kaspar Hauser, depois de libertado, tem de se adaptar a um mundo que lhe é totalmente desconhecido, entrando em contato com regras e conceitos estranhos e que, para ele, são de difícil apreensão, já que havia passado toda sua vida tendo como único “companheiro” de confinamento um cavalinho de madeira e rodinhas. Entretanto, a despeito de seu anterior confinamento, Kaspar parece ser um homem inteiramente livre, despido dos grilhões colocados pelos condicionamentos culturais, entendendo o mundo de uma forma particular perfeitamente traduzida na frase que serve como prólogo ao longa-metragem: “vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?”. Ele parece enxergar o mundo como uma criança o faz, questionando toda e qualquer possível “verdade” que lhe é posta, sejam estes conceitos religiosos, culturais ou científicos (as cenas em que Kaspar dialoga com pastores e um professor de Lógica são particularmente interessantes).


Para interpretar um personagem tão peculiar, Herzog usou de uma escolha singular. O papel coube a Bruno S., na realidade um não-ator que passou a maior parte da vida internado em centros para alienados mentais. Ou seja, ele próprio tinha muito de Kaspar Hauser, o que redunda em uma atuação marcante, mesmo que você considere que ele estava interpretando a si mesmo (ele faria apenas mais um filme, "Stroszek", também de Herzog, que tinha um imenso trabalho para fazê-lo atuar). A verdade presente na interpretação do personagem central aliada a um clima onírico concebido pelo diretor , além de certa objetividade na narração dos acontecimentos - em boa parte da projeção há um escrivão reduzindo a termo todos os fatos que observa – dão ao filme um sabor único, causando estranheza mesmo se visto por um espectador mais habituado ao cinema dito “de arte”. Tal sensação de estranheza, bem como a veia cerebral do diretor, todavia, terminam por causar um certo distanciamento que se torna o calcanhar de Aquiles do filme, resultando, até certo ponto, em uma falta de identificação do público com o personagem. Não que tenhamos antipatia por Kaspar, mas quando comparado a “O Homem Elefante” (The Elephant Man, 1980), de David Lynch - para tomarmos um outro exemplo de protagonista que vivia isolado da sociedade e depois passa a ser integrado a ela - o personagem trabalhado por Herzog empalidece. O diretor parece esquecer de recompensar o espectador com um pouco de emoção – prova disso é a quase ausência de trilha sonora ao longo dos seus 110 minutos.

Destarte este pequeno equívoco, “O Enigma de Kaspar Hauser” (vencedor do prêmio especial do Júri no Festival de Cannes) é um libelo em defesa do livre pensamento, do espírito humano e um profundo questionamento sobre o que realmente somos. Quanto do que há em nós é propriamente nosso ou foi imposto e condicionado pelo meio em que vivemos? Será que somos realmente livres? Ou, ainda, quanto de humano pode existir em alguém que viveu completamente isolado de outros seres humanos? Herzog parece nos responder tornando Kaspar Hauser o mais humano de todos os personagens vistos na tela e sugerindo que [SPOILER] o seu assassinato foi resultado de seu espírito livre, gerando intolerância e desconforto na comunidade em que vivia. A sequência final, onde um grupo de médicos disseca o seu cérebro em busca de respostas para o seu comportamento “diferente” resume perfeitamente as limitações humanas diante daquilo que não consegue explicar, ou, simplesmente, aceitar.


Cotação:

Nota: 9,5


* O título original do longa, "Jeder für Sich und Gott Gegen Alle", foi retirado por Herzog de “Macunaíma”, obra do nosso Mário de Andrade, e significa “Cada Um Por Si e Deus Contra Todos”.