Há alguns meses, levantei o questionamento de que “Avatar” seria uma verdadeira revolução na sétima arte, como foi alardeado quando do seu lançamento. Na época, respondi que só o tempo diria. Bem, o tempo passou e, cada vez mais, percebemos que o filme de James Cameron não operou “revolução” nenhuma. Apesar de seus efeitos visuais e sua novidadeira tecnologia 3D, o filme dos elfos azuis, com seu roteiro destituído de originalidade e inteligência, mostra-se cada vez mais banal e esquecível (acredito que hoje que não atribuiria a nota 9, a qual atribuí então). Não é uma mera novidade tecnológica que fará um filme tornar-se bom ou não. Fosse assim, “O Cantor de Jazz”, primeiro longa-metragem falado, poderia entrar no top 10 de todos os tempos. Uma verdadeira revolução se empreende antes de tudo com ideias, e não com fogos de artifício.
Talvez a grande “revolução”, se é que podemos definir desta forma, levada a cabo em Hollywood nos últimos anos venha sendo empreendida por Christopher Nolan, um diretor que transforma enredos aparentemente banais em algo mais complexo. Foi assim com a desconstrução realizada em “Amnésia”, provando a tese de Jean-Luc Godard de que um filme precisa ter “começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem”. Fosse narrado na ordem cronológica, o longa cairia na banalidade. Bastou alterar esse elemento, a cronologia narrativa, para a trama assumir novos contornos (embora o longa seja criticado por muitos por, segundo eles, resumir-se a uma experiência meramente formalista). Algum tempo depois, Nolan nos presenteou com “O Cavaleiro da Trevas”, mostrando que um filme de super-herói poderia ir muito além de uma mera encenação de mocinhos contra vilões, e isso conseguindo agradar plenamente aos fãs do Morcego, já que permaneceu bastante fiel ao material que lhe deu origem. O diretor colocou explícita a tese de que heróis e vilões em muito se assemelham, em diversos momentos diferindo apenas na maneira de reagir diante das circunstâncias. Batman e Coringa (que falta faz Heath Ledger) são duas faces da mesma moeda, faces estas encarnadas até mesmo por um mesmo personagem no longa, o Duas-Caras, ótima representação deste conflito em uma figura cinematográfica.
E, agora, eis que surge novamente Nolan com este seu “A Origem”, consolidando-se definitivamente como um diretor-autor. Interessante notar como aqui ele parece querer realizar uma nova “desconstrução”. Mas não uma desconstrução na ordem dos acontecimentos mostrados, como no mencionado “Amnésia”. O que se pretende aqui é operar uma revisão da veracidade do que é visto na tela. Afinal, sabe-se que o cinema procura vender como verdade aquilo que fotografa. Daí ser necessário realizar o que se costuma chamar de “suspensão da descrença”, ou seja, fazer com que o espectador, por mais inverossímeis que sejam os fatos filmados, acredite que os mesmos possam realmente acontecer, pelo menos durante os minutos da exibição (o que nem sempre é fácil). “A Origem” trabalha justamente na contramão desta ideia. Sabe-se, desde o início, que as circunstâncias exibidas não são reais porque se passam em sonhos. Paradoxalmente, contudo, continuamos a temer pelo destino dos personagens.
A trama do longa, entretanto, não é exatamente original. Nela, Don Cobb (Leonardo DiCaprio) é o líder de um grupo que realiza “extrações”, ou seja, retiram informações importantes da mente de uma pessoa enquanto ela está sonhando, penetrando em seu inconsciente através de um sistema de compartilhamento de sonhos. É então que o empresário Saito (Ken Watanabe) o contrata para realizar não uma extração, mas a inserção de uma ideia na mente de um rival empresarial (Cillian Murphy, um contínuo colaborador de Nolan). É perceptível, assim, que alguns elementos são mesmo similares a “Matrix” e ao referido “Avatar”, como o conceito de viver em uma outra realidade a partir de conexões com aparelhos específicos. Além disso, o longa não deixa de fugir de alguns esquemas dos filmes de “assalto”, apresentando a quadrilha e as características de seus integrantes. Até mesmo a concepção de uma existência paralela dentro dos sonhos já havia em “A Hora do Pesadelo”. Pode-se afirmar, ademais, que ninguém filmou sonhos com mais propriedade do que Federico Fellini em seu clássico absoluto “8 ½”, ou ainda Akira Kurosawa, com seu soberbo “Sonhos”. Mas não se pode negar a ousadia de Nolan em realizar uma obra que praticamente se passa inteira em ambientes oníricos dentro do esquema blockbuster de Hollywood. E qualquer ousadia dentro do sistema do cinema comercial se torna ainda mais relevante. O próprio DiCaprio chegou a declarar, em entrevistas, que o elenco muitas vezes também não tinha noção do que estavam filmando, de como determinada cena iria se encaixar no todo, o que se só demonstra o quanto Nolan queria mesmo fugir do esquemão hollywoodiano de realizações.
Por outro lado, um dos aspectos mais interessantes e originais de “Inception” (“Inserção”, título original que destoa bastante do abstrato “A Origem”) está na sua concepção visual. Em outras ocasiões, já mencionei que cinema é imagem e a força imagética deste longa é mesmo estonteante. Algumas sequências estão destinadas a fazer parte da história do cinema e nem vou me deter muito neste aspecto para não correr o risco de estragar qualquer surpresa para aqueles que ainda não viram o filme. Força imagética esta muito bem amparada pelo elenco, bastante homogêneo na competência de atuação. DiCaprio, por sinal, apresenta um personagem dotado de muitas semelhanças com aquele que interpretou no recente e ótimo “Ilha do Medo”, perseguido por traumas do passado, relativos à morte de sua esposa (aqui interpretada pela bela e talentosíssima Marion Cotillard). Ainda temos o prazer de ver Ellen Page, com sua arquiteta Ariadne, fugir do seu estigma de “Juno”. Em contrapartida, a trilha do tarimbado Hans Zimmer, a despeito de inspirada e bem orquestrada, se faz tão onipresente que acaba por não diferenciar os momentos mais ou menos importantes. Parece que estamos sempre no clímax da projeção. Aliás, se outro defeito podemos por no longa é que, devido ao fato de ser muito racional, o lado emocional acaba por demais amortecido, fazendo com que algumas cenas que deveriam despertar emoções mais intensas acabam não funcionando tão bem.
Mas a grande jogada de Nolan é mesmo o seu final em aberto, coisa rara não apenas no cinema atual, mas no próprio cinema americano, sempre afeito a conclusões mastigadinhas para o público. E é isso, exatamente, que fará de “A Origem” um filme que não será facilmente esquecido. A conclusão joga o espectador para diversas possibilidades e até mesmo para a hipótese, já debatida na internet, de que a pretensão do diretor era fazer um filme dentro de um filme (o que lhe traria ainda mais semelhanças com o “8 ½” de Fellini). E é aqui que retomo a ideia de “revolução”, ao menos dentro do esquema do cinema comercial. Com suas obras, Cristopher Nolan está fazendo as massas pensarem e pensar é algo a que o público do cinema-pipoca não está acostumado. Não há nada mais salutar do que fazer as pessoas saírem da sala debatendo sobre o real significado do que viram, algo que certamente acontece com todos os que conferiram “A Origem”. Se essa tendência passar a ser adotada por outros cineastas e produtores de Hollywood, podemos estar diante de um novo tempo no cinema. Tomara que esta expectativa se confirme.
Cotação:
Nota: 9,5
Talvez a grande “revolução”, se é que podemos definir desta forma, levada a cabo em Hollywood nos últimos anos venha sendo empreendida por Christopher Nolan, um diretor que transforma enredos aparentemente banais em algo mais complexo. Foi assim com a desconstrução realizada em “Amnésia”, provando a tese de Jean-Luc Godard de que um filme precisa ter “começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem”. Fosse narrado na ordem cronológica, o longa cairia na banalidade. Bastou alterar esse elemento, a cronologia narrativa, para a trama assumir novos contornos (embora o longa seja criticado por muitos por, segundo eles, resumir-se a uma experiência meramente formalista). Algum tempo depois, Nolan nos presenteou com “O Cavaleiro da Trevas”, mostrando que um filme de super-herói poderia ir muito além de uma mera encenação de mocinhos contra vilões, e isso conseguindo agradar plenamente aos fãs do Morcego, já que permaneceu bastante fiel ao material que lhe deu origem. O diretor colocou explícita a tese de que heróis e vilões em muito se assemelham, em diversos momentos diferindo apenas na maneira de reagir diante das circunstâncias. Batman e Coringa (que falta faz Heath Ledger) são duas faces da mesma moeda, faces estas encarnadas até mesmo por um mesmo personagem no longa, o Duas-Caras, ótima representação deste conflito em uma figura cinematográfica.
E, agora, eis que surge novamente Nolan com este seu “A Origem”, consolidando-se definitivamente como um diretor-autor. Interessante notar como aqui ele parece querer realizar uma nova “desconstrução”. Mas não uma desconstrução na ordem dos acontecimentos mostrados, como no mencionado “Amnésia”. O que se pretende aqui é operar uma revisão da veracidade do que é visto na tela. Afinal, sabe-se que o cinema procura vender como verdade aquilo que fotografa. Daí ser necessário realizar o que se costuma chamar de “suspensão da descrença”, ou seja, fazer com que o espectador, por mais inverossímeis que sejam os fatos filmados, acredite que os mesmos possam realmente acontecer, pelo menos durante os minutos da exibição (o que nem sempre é fácil). “A Origem” trabalha justamente na contramão desta ideia. Sabe-se, desde o início, que as circunstâncias exibidas não são reais porque se passam em sonhos. Paradoxalmente, contudo, continuamos a temer pelo destino dos personagens.
A trama do longa, entretanto, não é exatamente original. Nela, Don Cobb (Leonardo DiCaprio) é o líder de um grupo que realiza “extrações”, ou seja, retiram informações importantes da mente de uma pessoa enquanto ela está sonhando, penetrando em seu inconsciente através de um sistema de compartilhamento de sonhos. É então que o empresário Saito (Ken Watanabe) o contrata para realizar não uma extração, mas a inserção de uma ideia na mente de um rival empresarial (Cillian Murphy, um contínuo colaborador de Nolan). É perceptível, assim, que alguns elementos são mesmo similares a “Matrix” e ao referido “Avatar”, como o conceito de viver em uma outra realidade a partir de conexões com aparelhos específicos. Além disso, o longa não deixa de fugir de alguns esquemas dos filmes de “assalto”, apresentando a quadrilha e as características de seus integrantes. Até mesmo a concepção de uma existência paralela dentro dos sonhos já havia em “A Hora do Pesadelo”. Pode-se afirmar, ademais, que ninguém filmou sonhos com mais propriedade do que Federico Fellini em seu clássico absoluto “8 ½”, ou ainda Akira Kurosawa, com seu soberbo “Sonhos”. Mas não se pode negar a ousadia de Nolan em realizar uma obra que praticamente se passa inteira em ambientes oníricos dentro do esquema blockbuster de Hollywood. E qualquer ousadia dentro do sistema do cinema comercial se torna ainda mais relevante. O próprio DiCaprio chegou a declarar, em entrevistas, que o elenco muitas vezes também não tinha noção do que estavam filmando, de como determinada cena iria se encaixar no todo, o que se só demonstra o quanto Nolan queria mesmo fugir do esquemão hollywoodiano de realizações.
Por outro lado, um dos aspectos mais interessantes e originais de “Inception” (“Inserção”, título original que destoa bastante do abstrato “A Origem”) está na sua concepção visual. Em outras ocasiões, já mencionei que cinema é imagem e a força imagética deste longa é mesmo estonteante. Algumas sequências estão destinadas a fazer parte da história do cinema e nem vou me deter muito neste aspecto para não correr o risco de estragar qualquer surpresa para aqueles que ainda não viram o filme. Força imagética esta muito bem amparada pelo elenco, bastante homogêneo na competência de atuação. DiCaprio, por sinal, apresenta um personagem dotado de muitas semelhanças com aquele que interpretou no recente e ótimo “Ilha do Medo”, perseguido por traumas do passado, relativos à morte de sua esposa (aqui interpretada pela bela e talentosíssima Marion Cotillard). Ainda temos o prazer de ver Ellen Page, com sua arquiteta Ariadne, fugir do seu estigma de “Juno”. Em contrapartida, a trilha do tarimbado Hans Zimmer, a despeito de inspirada e bem orquestrada, se faz tão onipresente que acaba por não diferenciar os momentos mais ou menos importantes. Parece que estamos sempre no clímax da projeção. Aliás, se outro defeito podemos por no longa é que, devido ao fato de ser muito racional, o lado emocional acaba por demais amortecido, fazendo com que algumas cenas que deveriam despertar emoções mais intensas acabam não funcionando tão bem.
Mas a grande jogada de Nolan é mesmo o seu final em aberto, coisa rara não apenas no cinema atual, mas no próprio cinema americano, sempre afeito a conclusões mastigadinhas para o público. E é isso, exatamente, que fará de “A Origem” um filme que não será facilmente esquecido. A conclusão joga o espectador para diversas possibilidades e até mesmo para a hipótese, já debatida na internet, de que a pretensão do diretor era fazer um filme dentro de um filme (o que lhe traria ainda mais semelhanças com o “8 ½” de Fellini). E é aqui que retomo a ideia de “revolução”, ao menos dentro do esquema do cinema comercial. Com suas obras, Cristopher Nolan está fazendo as massas pensarem e pensar é algo a que o público do cinema-pipoca não está acostumado. Não há nada mais salutar do que fazer as pessoas saírem da sala debatendo sobre o real significado do que viram, algo que certamente acontece com todos os que conferiram “A Origem”. Se essa tendência passar a ser adotada por outros cineastas e produtores de Hollywood, podemos estar diante de um novo tempo no cinema. Tomara que esta expectativa se confirme.
Cotação:
Nota: 9,5
4 comentários:
Ah...vi...
Ainda estou num misto de êxtase e incredulidade...realmente, é do tipo de filme que tem toda uma subjetividade e simbolismo que se tornam mais impressionantes que as próprias cenas de efeitos visuais ou de ação.
Confesso que tive que pensar muito em diversas cenas - ainda mais no segundo ato do filme, quando um sonho se submete ao outro(os estágios das camadas do subconsciente)...
por isso, me perdia constantemente...deixei passar certos diálogos e contextos...é, as primeiras impressões não bastam e preciso rever o filme, creio que vá ainda hoje...ontem a sala lotou...
Achei DiCaprio merecedor de uma certa estatueta dourada, mas acho difícil...mais fácil Marion Cotillard ter indicação. Page, além de graciosa, teve momentos de pura inspiração na atuação. O elenco funcionou muito bem, de fato...e concordo que há cenas que são impactantes, mas pra mim o psicológico falou mais alto e o simbolismo, enfim.
Bem, o filme mexeu comigo e muito...sem palavras!
Abraço
Muito bom o seu texto! Acho que concordamos em quase tudo sobre o filme. Principalmente por ser uma experiência extraordinária para qualquer cinéfilo.
Abs!
Cristiano, acredito que DiCaprio vai ser indicado em 2011. Ele está com a bola toda esse ano!
Otávio, realmente uma bela experiência. Principalmente porque o filme continua passando em nossas mentes um bom tempo depois da sessão. Obrigado pelo elogio e pela visita ao blog!
Esse filme é tão bom que nem o DiCaprio e a insuportável Ellen Page conseguem estragá-lo.
É um blockbuster que não tem herói, nem vilão e nem romancezinho meia boca.
Em resumo, é fantástico.
Até mais.
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