domingo, 15 de agosto de 2010

O Segredo dos Seus Olhos



Razão e sensibilidade


Este ano, com a vitória do cinema argentino no Oscar, recebendo o prêmio de melhor filme estrangeiro, levantou-se a questão na Terra Brasilis sobre a competência dos hermanos em realizar obras e cinematográficas em contraposição à nossa incapacidade genética para tanto. Sem querer adentrar no mérito desta discussão (até porque ela acaba revelando pouca memória com relação aos nossos méritos), é importante lembrar que um dos motivos para atacar a produção brasileira seria sua obsessão com alguns temas, os repetidos pobreza-favela-violência, seca-miséria-Nordeste ou ainda ditadura-violência-memória. Se há parcela de verdade nesta afirmação, ela esconde, por outro lado, o quanto os argentinos também são apegados a certas temáticas. A ditadura militar é um osso que definitivamente eles não largam e “O Segredo dos Seus Olhos”, o tal vencedor do careca dourado este ano, é mais um da extensa lista de filmes portenhos dedicados ao assunto.

Dirigido por Juan José Campanella e protagonizado por Ricardo Darín (a mesma dupla de “O Filho da Noiva”), o filme, em essência, trata da possibilidade de punição aos responsáveis pelos horrores do regime militar, jamais esquecidos pelo povo hermano, possibilidade esta aprovada pela Suprema Corte argentina e que vai em sentido contrário à recente decisão do nosso Supremo Tribunal Federal vedando tal objetivo (alguém já disse que a nossa elite é a pior do mundo, o que parece mesmo ser verdade). A diferença das escolas argentina e brasileira de cinema reside, antes de tudo, na forma de abordagem, uma vez que nossos amigos parecem ter o bom senso de não transformar seus longas em panfletos, preferindo formas metafóricas para atingir o mesmo objetivo.

Aqui, o roteiro (escrito por Campanella e Eduardo Sacheri, baseado no livro deste último), mostra o policial Benjamín Espósito (Darín) buscando elucidar o assassinato bárbaro de uma bela mulher, depois de ser estuprada. Para tanto, ele tem a ajuda de seu amigo alcoólatra Pablo Sandoval (Guillermo Francella), além da bela promotora de justiça Irene (Soledad Villamil), pela qual nutre um amor nunca revelado. A investigação do crime acaba se transformando em verdadeira obsessão, principalmente depois que Espósito se aproxima do viúvo (Pablo Rago), um homem que nutria um amor invejável pela esposa e que agora vê sua vida transformada em um imenso vazio. Ou seja, o roteiro substitui o crime político pelo crime comum, mas o questionamento realizado é o da necessidade de se punir crimes impunes. E, claro, sempre é muito inteligente falar de política sem aparentemente fazê-lo, mesmo que o público argentino seja bem mais politizado que o brasileiro (provavelmente o mais despolitizado do planeta Terra). Nesse intuito, a inclusão do subtexto amoroso é muito feliz. As cenas que envolvem Espósito e Irene são marcantes, donas de uma sensibilidade de fazer inveja a muito filme romântico por aí. E se em minha crítica sobre “A Origem” mencionei que o filme investe excessivamente em nosso lado lógico-racional, fazendo com que as cenas mais emocionais acabem perdendo força, Campanella sabe perfeitamente equilibrar as duas vertentes, levando o espectador à reflexão ao mesmo tempo em que pode fazê-lo até mesmo chorar.

Além de uma direção de arte primorosa, o longa é belissimamente fotografado. Mesmo que muitas das cenas se passem em ambientes burocráticos, há um plano-sequência em um estádio de futebol que atesta a nossa incapacidade de filmar com presteza o esporte que é uma das grandes paixões do nosso povo. Memorável, consegue traduzir em imagens toda a paixão argentina em poucos minutos e de forma extremamente elegante. Por sinal, e falando em paixão, o filme nos coloca diante da ideia de que jamais podemos fugir de nossas paixões, premissa inteligente, verdadeira e que é muito bem utilizada pela narrativa. A sua conclusão, ademais, evoca este mote, inserindo-o no contexto político de forma impecável, talvez apontando que o povo argentino, tal como não pode fugir de sua paixão futebolística, tão pouco poderá fugir do desejo e necessidade de que os fantasmas de seu passado sejam expurgados, da mesma forma que um homem não pode fugir do amor que sente por uma mulher. Campanella parece afirmar que o Estado precisa fazer o seu papel para que finalmente o povo argentino possa enterrar seus mortos e seguir em frente. Uma sofisticada alegoria que realmente nos faz concluir que o Oscar ficou em boas mãos. E que talvez o grande problema do cinema brasileiro não seja sua obsessão com certos temas, mas a forma como os mostra para o espectador. Afinal, inteligência e sensibilidade, ingredientes que transbordam neste “O Segredo dos Seus Olhos”, sempre serão bem-vindas.


Cotação:

Nota: 10,0
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3 comentários:

Yuri Dias disse...

É um filme que sabe emocionar, nos deixar tensos, usa uma linguagem universal de cinema, com ótimas atuações e Campanella acerta muito mais que erra em seus filmes. 5/5

Robson Saldanha disse...

Achei um filme brilhante e envolvente. Fiquei muito empolgado conferindo. Os Hermanos sabem fazer um belíssimo cinema. Fato!

Fábio Henrique Carmo disse...

Acho que os argentinos são mais regulares nas boas produções, várias delas ótimas, como esta. Mas é interessante como o Brasil causa mais impacto quando realiza filmes acima da média. Nenhum filme argentino causou o impacto de um "Cidade de Deus", por exemplo, ou de um "Deus e O Diabo Na Terra do Sol".