segunda-feira, 30 de abril de 2012

Filmes Para Ver Antes de Morrer

 

Bem, leitores, este é o primeiro texto do "Cinema Com Pimenta" após o seu recesso. É possível que ainda não seja um retorno definitivo, mas aos poucos vamos tentando retomar o ritmo. Também não sei se este é realmente um bom texto, mas é o que o blogueiro conseguiu produzir em meio aos dias cheios que está levando. De qualquer forma, uma coisa é certa: é muito bom estar de volta! Grande abraço a todos os que acompanham este espaço e obrigado, muito obrigado pelos comentários de felicitações e incentivos postados nos últimos dias. Li todos eles e fiquei feliz e motivado com todos. Agora, segue a resenha de um filme pra lá de bom que vi alguns dias antes do recesso. Até o próximo post!

A Primeira Noite de Tranquilidade 

(La Prima Notte di Quiete, 1972)


Existencialismo cinematográfico

É possível que nenhum outro cineasta tenha tratado de questões existenciais de uma forma tão própria quanto o diretor italiano Valerio Zurlini (opa, Ingmar Bergman também alcançou o mesmo nível neste quesito, mas são estilos bem distintos). E talvez nenhum dos seus filmes resuma de maneira tão abrangente o seu cinema quanto “A Primeira Noite de Tranquilidade”, o seu penúltimo longa-metragem, realizado em 1972. Anteriormente, quando tratamos, aqui no “Cinema Com Pimenta”, de “A Moça com a Valise” (La Ragazza Con La Valigia), sua obra de 1961, sublinhamos o quanto o seu diretor foi subestimado em seu tempo, passando por um processo de revalorização apenas recentemente, já na primeira década dos anos 2000. Ao terminar de assistir a “A Primeira Noite de Tranquilidade” é possível que você fique estupefato(a) por dois motivos: o primeiro é a constatação de que esta é uma obra impecável, um verdadeiro conto existencialista que até mesmo Jean-Paul Sartre ou Albert Camus invejariam; o segundo motivo é tentar compreender o porquê de um filme tão belo encontrar-se quase relegado ao esquecimento, sendo que até mesmo entre os cinéfilos normalmente não é fácil encontrar alguém que já o tenha visto.

Para tornar a questão ainda mais difícil, é importante frisar que o filme tem como seu protagonista ninguém menos que Alain Delon, simplesmente um dos grandes astros da história do cinema e que encontra aqui uma de suas maiores performances (alguns afirmam que este é seu melhor trabalho, mas aí podemos acabar irritando o fãs de Jean-Pierre Melville para quem Delon fez, entre outros, “O Samurai”). Delon encarna o professor Danielle Dominici, um homem que já parece desenganado com a vida, mas que, no fundo, ainda almeja encontrar algo ou alguém que o faça se sentir vivo. Chegando à cidade italiana de Rimini (a cidade natal de Fellini retratada em “Amacord”, lembram?) ele passa a ensinar no liceu local onde conhece a estudante Vanina Abati (encarnada pela lindíssima atriz Sonia Petrova), uma garota ao mesmo tempo instigante e misteriosa que, a despeito de sua beleza e juventude, exala infelicidade em sua face. Aliás, como bem define uma das personagens a certa altura, trata-se de uma mulher de “muito passado, pouco presente e nenhum futuro”. Ela é a namorada do homem mais rico da cidade, um playboy que a trata como um troféu para enfeitar a prateleira, mas pouco interessado na sua alma. Um de seus amigos é Giorgio Mosca, conhecido pelos mais próximos como “Spider” (papel de Giancarlo Giannini), o qual por sua vez percebe que Dominici é um homem que talvez mereça ter o seu passado investigado.

A “apuração” promovida por Spider revela uma das melhores facetas de Zurlini. Em suas obras, vamos descobrindo os personagens aos poucos, tal como conhecemos alguém na vida real, conferindo uma quase inigualável tridimensionalidade aos tipos que elabora. Desta forma, o misterioso Dominici, uma espécie de homem-lugar-nenhum que surge na tela logo na primeira cena, caminhando em um promontório a lado da arrebentação das ondas em uma Rimini invernal, vai sendo revelado em cada novo fotograma, como quando descobrimos que ele é casado com uma mulher adúltera (Lea Massari, a mulher que desaparece em “A Aventura”, de Michelangelo Antonioni), vivendo um matrimônio que só se mantém devido às constantes ameaças de suicídio proferidas pela esposa, até sabermos o que o professor define como “a primeira noite de tranquilidade” do título. Da mesma maneira, vamos descobrindo porque Vanina é uma mulher “de muito passado”. Tudo isso levado a cabo por meio de um roteiro brilhante, com ares verdadeiramente literários (várias são as frases memoráveis ditas ao logo da projeção), o qual vai assumindo contornos deveras trágicos à medida em que Dominici se envolve de forma cada vez mais irremediável com Vanina.

Por outro lado, mais uma vez a mise-en-scéne de Zurlini é algo fascinante. A cena da boate, na qual percebe-se que Dominici encontra-se perdidamente enfeitiçado pela jovem aluna é um autêntico espetáculo imagético. Vale dizer, inclusive, que ela lembra muito uma outra sequência filmada pelo diretor no citado a “A Moça Com A Valise”, onde Jacques Perrin, tomado de ciúmes, observa Claudia Clardinale dançando com um homem endinheirado e estúpido. Antes que se avente que o diretor incorreu em repetição, é importante frisar que o personagem de Delon no longa de 1972 parece uma versão madura do adolescente interpretado por Perrin no filme de 1961. É como se o primeiro fosse a representação desiludida deste último, depois de anos de decepções e dissabores. Nesta ótica, seria até leviano afirmar que Zurlini se repetiu ou aventar uma suposta falta de criatividade do diretor. Vista isoladamente, a mencionada sequência é um deslumbre e, quando colocada diante da cena semelhante vista no longa sessentista, ela cresce ainda mais.


Além das imagens marcantes, o elenco também é outro fator que contribui sobremaneira para transformar “A Primeira Noite de Tranquilidade” em uma obra que vai muito além de meras duas horas de frente para uma tela. Sonia Petrova, como Vanina (o nome foi pinçado por Zurlini a partir de um livro de Stendhal), além da já mencionada beleza incomum, demonstra talento em várias passagens dramáticas e é até estranho que ela não tenha realizado uma carreira com maior destaque (ela também trabalhou com outros diretores famosos, como Luchino Visconti, mas misteriosamente nunca despontou como grande estrela). Já Giancarlo Giannini chega a roubar cenas na pele de “Spider”, principalmente durante alguns diálogos memoráveis com Dominici, conseguindo fazer do seu personagem algo além de um mero coadjuvante. Contudo, é mesmo Alain Delon o monstro em tela que que acaba por catalisar as atenções. É como se ele tivesse nascido para o papel e note-se que este foi o seu único trabalho com o cineasta em questão (ao contrário de sua parceria constante com o citado Melville). Delon foi (e ainda é) um homem muito bonito e, talvez até por isso, sempre procurou papéis que retirassem da sua figura um possível estigma de galã. Aqui ele se encontra com a barba por fazer, vestindo um sobretudo surrado e externando, a cada gesto e olhar, a agustiada alma de um homem que ainda busca a felicidade mesmo contra todas as evidências de insucesso.

Alguns afirmam que para gostar dos filmes de Zurlini, especialmente deste, é necessário estar triste. Nada mais superficial. Caso tomássemos tal frase como verdadeira teríamos que afirmar que para gostar dos filmes de um Woody Allen, por exemplo, é necessário estar com vontade de rir. A obra de Valerio Zurlini vai muito além de simplificações e hoje considero um dever de cada cinéfilo conhecer e fazer com que outros conheçam sua filmografia. Afinal, uma obra-prima como "La Prima Notte di Quiete", a qual resume sua carreira de uma forma magnífica, merece ser conhecida e admirada. Assista e descubra o quanto antes qual é a primeira noite de tranquilidade na visão deste mestre da Sétima Arte.


Cotação e nota: Obra-prima.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Cinema Com Pimenta em recesso!

(A cadeira está vazia, mas volto logo!)


Amigos do Cinema Com Pimenta,

Como é possível perceber, o número de postagens no blog caiu muito. Neste mês de abril, havia ocorrido apenas uma até a presente data (e olha que já estamos no dia 11 do mês). A verdade é que este blogueiro encontra-se em um momento pessoal em que o tempo está muito escasso. Sendo bem sincero: quase não estou vendo filmes, quem dirá conseguir escrever algo que se aproveite sobre eles. Bem, isso se deve a um fator bastante relavante: na próxima quinta-feira dia 19/04 eu irei me casar e, como devem imaginar, encontro-me em uma grande correria para dar conta dos preparativos do casório. É tanta coisa para resolver que não está sobrando tempo nem para um cineminha, nas salas ou em casa.

Diante desta circunstância, o "Cinema Com Pimenta" fará seu primeiro recesso desde sua criação, em julho de 2008. De qualquer forma, claro que não conseguirei passar muito tempo longe. Espero no fim do mês já estar de volta com toda a paixão pelo cinema que, acredito, é a marca característica deste espaço. Um grande abraço a todos os(as) leitores(as) que acompanham o "Cinema Com Pimenta". Eu só tenho a agradecer a todos vocês! Até breve!

Obs: Talvez ainda saia uma postagem antes do fim do mês, sobre um filme que vi no último domingo. Apesar de ter começado a escrever o texto, ele anda um tanto "empacado", razão pela qual já resolvi deixar o aviso de recesso. Vamos ver se consigo terminar. ;=)


sexta-feira, 6 de abril de 2012

Para Ver Em Um Dia de Chuva


Os Falsários
(Die Fälscher, 2007)


Entre a cruz e a espada


Desde que Steven Spielberg filmou, em 1993, a sua obra-prima “A Lista de Schindler” (Schindler's List), longa-metragem que estabeleceu um perfeito equilíbrio entre a brutalidade nazista e a emoção que se pode extrair de uma drama dessas proporções, o cinema se viu invadido por uma série de filmes tendo como tema central o holocausto cometido durante a Segunda Guerra Mundial. Desde então, praticamente todos os anos chegam às telas obras com este foco, seja em formato ficcional ou documental. Claro que, diante de tantas produções, inevitavelmente surgirão aquelas de maior e outras de menor qualidade, sendo necessário filtrá-las, afinal não basta que um filme tenha o massacre dos judeus como tema para que se possa afirmar que é bom cinema. Para cada “O Pianista” (The Pianist, 2002), uma das obras-primas de Roman Polanski, temos outros exemplares de qualidade duvidosa, como é o caso do nacional “Olga” (2004), de Jayme Monjardim, o qual, mesmo que não tenha o holocausto como tema central, mergulha em um sensacionalismo desnecessário, dado o caráter já naturalmente emocional da temática. A Academia de Hollywood, por seu turno, parece jamais se cansar de prestigiar longas que abordam o horror nazista e com certeza esse foi um dos principais fatores que levaram o longa-metragem austro-alemão “Os Falsários” a levar o Oscar de melhor filme em língua estrangeira em 2008. Entretanto, e felizmente, este não foi o único fator.

Poucos são os filmes que apresentam dilemas éticos e morais com tanta propriedade quanto “Os Falsários”. Na sua estrutura narrativa, as soluções, longe de fáceis ou maniqueístas, parecem, pelo contrário, sempre levar os protagonistas a um novo labirinto de interrogações e cada nova decisão tomada parece ser inevitavelmente insatisfatória, pois que destituída do poder de retirá-los do beco sem saída em que estão vivendo. Homens que não sabem se é honroso ou vergonhoso sobreviver quando lançados em uma situação em que suas vidas são pautadas pela ajuda que prestam a uma máquina de extermínio. Você, que está lendo, ajudaria o nazismo, mesmo que de uma forma indireta, em troca de ver mantida sua própria vida?


A problemática nos é apresentada através da história real conhecida como “Operação Bernhard”, hoje considerada como responsável pelo maior derrame de moedas falsas já realizado. Em condições difíceis nos campos de batalha e com os cofres cada vez mais escassos, os nazistas partiram para a falsificação de dinheiro como uma forma tanto de “criar” recursos para custear a guerra, como também de abalar a economia do países vítimas da contrafação, no caso Inglaterra e Estados Unidos. Para perpetrar tal intento, os alemães se valeram de judeus prisioneiros em campos de concentração com talentos adequados à falsificação de cédulas. Baseado no livro “The Devil's Wokshop”, de Adolf Burger (ele próprio um dos personagens na tela), a narrativa nos mostra que um destes especialistas judeus é Salomon Sorowitsch (no filme, o papel é de Karl Markovics), ou “Sally” para o mais próximos, um falsário de enorme talentos artísticos, mas que prefere levar a vida “fazendo” o dinheiro do que suando para ganhá-lo. É ele que será o líder dos falsários e contará com a especial confiança do comandante do campo (Devid Striesow) - que por sinal foi o policial que o prendeu - o qual reserva para o grupo uma tratamento diferenciado. No entanto, a posição de Salomon de salvar a vida a qualquer custo é confrontada por Burger (interpretado por August Diehl), que não admite servir aos propósitos dos próprios algozes.


Temas como esse poderiam cair facilmente no sentimentalismo, mas o diretor Stefan Ruzowitzky soube fugir dos lugares-comuns e manteve a narrativa, em sua maior parte, distante das facilidades. Desenvolvida em estilo flashback, já sabemos de antemão que Salomon escapou da morte no campo, evitando assim que o espectador pudesse focar em um suspense desnecessário acerca do destino do protagonista, o que desviaria sua atenção do drama ético proposto. A contraposição da vida de Salomon antes e depois da guerra, regada a mulheres e boemia, com o período em que ele passa enclausurado também se mostra muito útil para entendemos sua personalidade e sua facilidade em obter benefícios dos militares da SS. A edição primorosa mostra-se, ademais, fundamental para esse intento e até mesmo a trilha sonora escolhida, repleta de tangos, contribui para lembrarmos que Salomon é, antes de tudo, um bon-vivant que sabe, mais do que qualquer outro, arranjar maneiras de obter regalias. O roteiro, também escrito pelo próprio diretor Ruzowitzky, é enxuto, fazendo com que o filme não dure mais do que 1h e 40min. Mas isso não significa dizer que o mesmo é superficial. Pelo contrário, aborda as temáticas apontadas com objetividade e profundidade. Mas tais características cairiam por terra se o elenco não correspondesse, atribuindo verossimilhança aos personagens retratados, e aqui cabe destacar a ótima atuação de Karl Markovics ao imprimir ao mesmo tempo verdade e um tom misterioso a Salomon, fazendo deste um tipo memorável.

Ver-se entre a cruz e a espada é o que resulta da experiência de assistirmos a “Os Falsários”, levando o público antes de tudo à reflexão e não tão somente a um mero derramamento de lágrimas como acontece em tantos filmes que têm a Segunda Guerra (mormente o holocausto) como tema. Nesse trabalho de separar “o joio do trigo” entre tais dramas de guerra, o longa de Ruzowitzky merece destaque e sua premiação no Oscar (ele foi o primeiro a ganhar um Oscar de filme estrangeiro pela Áustria) não foi injusta. Embora não se possa afirmar que esteja à altura dos citados trabalhos de Roman Polanski e Steven Spielberg, ou ainda de outras produções europeias, como a obra-prima “Vá e Veja” (Idi i Smotri, 1985), de Elem Klimov, “Die Fälscher” com certeza é um trabalho que foge das obviedades de um gênero já bastante maltratado e aparentemente esgotado.


Cotação:

Nota: 9,0