Sonhos (Akira Kurosawa's Dreams)
As pinturas de Kurosawa
As pinturas de Kurosawa
Eu costumo dizer que o tempo é o melhor crítico de arte que existe. Espero estar certo e ver algumas injustiças serem corrigidas e ter a satisfação de ver alguns filmes não muito lembrados serem devidamente valorizados. É o caso de “Sonhos”, obra do gênio Akira Kurosawa, que não costuma freqüentar listas de melhores de todos os tempos (foi esquecido até no popular livro “1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer"). Um fato bastante estranho, deveras. Um daqueles esquecimentos por parte dos críticos que incomodam e servem apenas para o público soltar frases como “críticos são muito chatos”, para não lembrar de adjetivos como “cretinos” ou “idiotas”.
Se você não conhece, Akira Kurosawa é o cineasta japonês que mais influência exerceu sobre o cinema ocidental. Autor de obras-primas como “Os Sete Samurais”, sua sombra é principalmente sentida nos diretores integrantes do movimento denominado “Nova Hollywood”, a geração sexo-drogas-rock’n roll que mudou a face do cinema americano a partir do fim da década de 60. Entre os declaradamente fãs do diretor japonês estão Steven Spielberg, Francis Ford Copolla, Martin Scorsese e George Lucas. Este último, inclusive, teve nos filmes de Kurosawa muito de sua inspiração para compor o universo da saga “Star Wars”. O genial cineasta, contudo, não é, até hoje, visto com muitos bons olhos em sua terra natal, onde é acusado de ser “ocidentalizado”, afirmação esta um tanto injusta. É verdade que Kurosawa trouxe para o cinema oriental elementos caros à produção ocidental, marcadamente a norte-americana. E isso se deve ao fato de que o mesmo era um grande admirador de diretores como John Ford (e quem não é?), com suas belíssimas e minuciosas composições imagéticas, com planos arrebatadores, onde aquilo que se mostrava na tela também traduzia o interior dos personagens. Entretanto, afirmar que isto é “ocidentalizar-se” é uma atitude um tanto obtusa. O amor de Kurosawa pelas imagens fortes e minuciosamente planejadas decorre, muito provavelmente, de seu enorme apreço pela pintura. É sabido que antes de decidir-se pela carreira do cinema, Kurosawa foi pintor, chegando a cogitar fortemente em seguir essa carreira. Ou seja, nada mais natural que procurasse colocar nas telas um pouco (ou muito) deste seu outro lado artístico. Além disso, a arte sempre será construída a partir de influências mútuas. Se Kurosawa soube aproveitar muito do cinema americano, este último, como dito acima, também soube aproveitar, posteriormente, muitas das lições do mestre japonês. Vaticinar que isso é “ocidentalizar-se” ou “orientalizar-se” soa provinciano e tacanho.
Uma das maiores provas de que Kurosawa soube utilizar muito bem os elementos do cinema ocidental, mas mostrando uma essência e conteúdo extremamente japoneses, é precisamente “Sonhos”. É bom, neste passo, lembrar que esse é um longa de 1990, um dos últimos na carreira do diretor, realizado a partir da ajuda dos citados cineastas estadunidenses. Durante um bom tempo, Kurosawa ficou relegado ao ostracismo, chegando a tentar o suicídio por não conseguir mais financiar os seus projetos. Mas, se, nesta fase, as imagens ganharam muito do cinema de Hollywood, com sua qualidade técnica impecável, a obra do velho diretor talvez tenha adquirido contornos ainda mais orientais. Os oito “sonhos” (supostamente baseados em sonhos do próprio cineasta) que compõem o longa-metragem, além de trazerem questões próprias ao diretor, abordam aspectos culturais profundamente japoneses, além de temores e valores típicos do povo da terra do sol nascente.
O próprio número de “sonhos” – na realidade verdadeiros contos independentes entre si – qual seja, oito, já traz um forte significado. Na cultura nipônica o oito (“hachi”) é o número da perfeição, representação da ligação entre as esferas espiritual e terrena. E vários são os aspectos caros aos japoneses representados ao longo de toda a projeção. O seu folclore é abordado, por exemplo, no primeiro sonho, onde um garoto é obrigado a deixar um punhal no fim do arco-íris para procurar acalmar a ira da raposa, animal que possui significados místicos na cultura local, sendo portadora de dotes ilusionistas e cujo acasalamento se dá, segundo a tradição nipônica, em dias em que chuva e sol se encontram. O horror nuclear, por sua vez, ganha representatividade no 6º e 7º sonhos, onde as conseqüências da radioatividade ganham cores vivas e fortes, com imagens possivelmente inspiradas em Dante e sua “Divina Comédia”. Da mesma forma, a comunhão e harmonia com a natureza ganham defesa no 2º e último contos, sendo este último, sobre a aldeia dos moinhos de água, onde um simpático velhinho de 103 anos ministra verdadeiras aulas de sabedoria, possivelmente a mais apaixonante das oito narrativas. Todavia, alguns irão se recordar com mais vivacidade ainda do sonho em que o protagonista conversa com o gênio Vincent Van Gogh (aqui interpretado por Martin Scorsese) para em seguida passear por entre várias de suas telas. É neste ponto de Kurosawa deixa falar mais alto o seu lado pintor, muito embora não se reduza apenas a ele. Uma das características mais marcantes do longa é sua paleta de cores fortes e vivas, de uma beleza memorável. Verdadeiras pinturas se sucedem a cada fotograma, gerando imagens que realmente impressionam (a fotografia, por sinal, acabou recebendo uma indicação ao Oscar).
Por outro lado, Kurosawa não se limita a estabelecer uma ligação entre o cinema e a pintura. O teatro é outra forma de arte que, com certa frequência, encontra eco em sua carreira (como em “Ran”, sua magistral obra-prima de 1985) e ela também se faz presente aqui. Trata-se do Nô, arte teatral característica do Japão, onde se misturam música, dança e poesia, rica em simbolismos. Para o público leigo, o Nô surge em tintas claras no segundo sonho, em que os espíritos da natureza realizam uma ritual para tentar fazer renascer um pomar de pessegueiros. Falando em música, a trilha sonora é baseada na música folclórica japonesa, o Min’yõ, com o uso de alaúdes, flautas, percussões e instrumentos de cordas típicos do Japão, soando de forma belíssima.
O resultado é um espetáculo impressionista ou mesmo surrealista, lembrando as origens artísticas de Kurosawa (pintura) e mostrando, de maneira vitoriosa, que a arte não tem pátria. Não existe arte “ocidental” ou “oriental”; o que existe são grandes artistas e artistas medíocres, provavelmente estes os criadores da falácia de o gênio fazia cinema para americanos assistirem, talvez com inveja do respeito que o mesmo adquiriu além dos limites do Japão. É interessante até mesmo observar que os cineastas ianques não têm qualquer vergonha em assumir e assimilar influências, enquanto os de outras nacionalidades parecem, muitas vezes, permeados de um provincianismo pouco produtivo. De qualquer forma, para você, fã de cinema, o que mais interessa não é essa discussão estéril, mas saber que “Sonhos” é um filme inesquecível, de beleza ímpar, o qual provavelmente permanecerá na sua mente durante um bom tempo. E também concordará que os críticos realmente se mostram muito azedos ao esquecê-lo entre os melhores filmes de Akira Kurosawa. Uma obra de arte para ser vista e revista.
Classificação e nota: Obra-prima.
Se você não conhece, Akira Kurosawa é o cineasta japonês que mais influência exerceu sobre o cinema ocidental. Autor de obras-primas como “Os Sete Samurais”, sua sombra é principalmente sentida nos diretores integrantes do movimento denominado “Nova Hollywood”, a geração sexo-drogas-rock’n roll que mudou a face do cinema americano a partir do fim da década de 60. Entre os declaradamente fãs do diretor japonês estão Steven Spielberg, Francis Ford Copolla, Martin Scorsese e George Lucas. Este último, inclusive, teve nos filmes de Kurosawa muito de sua inspiração para compor o universo da saga “Star Wars”. O genial cineasta, contudo, não é, até hoje, visto com muitos bons olhos em sua terra natal, onde é acusado de ser “ocidentalizado”, afirmação esta um tanto injusta. É verdade que Kurosawa trouxe para o cinema oriental elementos caros à produção ocidental, marcadamente a norte-americana. E isso se deve ao fato de que o mesmo era um grande admirador de diretores como John Ford (e quem não é?), com suas belíssimas e minuciosas composições imagéticas, com planos arrebatadores, onde aquilo que se mostrava na tela também traduzia o interior dos personagens. Entretanto, afirmar que isto é “ocidentalizar-se” é uma atitude um tanto obtusa. O amor de Kurosawa pelas imagens fortes e minuciosamente planejadas decorre, muito provavelmente, de seu enorme apreço pela pintura. É sabido que antes de decidir-se pela carreira do cinema, Kurosawa foi pintor, chegando a cogitar fortemente em seguir essa carreira. Ou seja, nada mais natural que procurasse colocar nas telas um pouco (ou muito) deste seu outro lado artístico. Além disso, a arte sempre será construída a partir de influências mútuas. Se Kurosawa soube aproveitar muito do cinema americano, este último, como dito acima, também soube aproveitar, posteriormente, muitas das lições do mestre japonês. Vaticinar que isso é “ocidentalizar-se” ou “orientalizar-se” soa provinciano e tacanho.
Uma das maiores provas de que Kurosawa soube utilizar muito bem os elementos do cinema ocidental, mas mostrando uma essência e conteúdo extremamente japoneses, é precisamente “Sonhos”. É bom, neste passo, lembrar que esse é um longa de 1990, um dos últimos na carreira do diretor, realizado a partir da ajuda dos citados cineastas estadunidenses. Durante um bom tempo, Kurosawa ficou relegado ao ostracismo, chegando a tentar o suicídio por não conseguir mais financiar os seus projetos. Mas, se, nesta fase, as imagens ganharam muito do cinema de Hollywood, com sua qualidade técnica impecável, a obra do velho diretor talvez tenha adquirido contornos ainda mais orientais. Os oito “sonhos” (supostamente baseados em sonhos do próprio cineasta) que compõem o longa-metragem, além de trazerem questões próprias ao diretor, abordam aspectos culturais profundamente japoneses, além de temores e valores típicos do povo da terra do sol nascente.
O próprio número de “sonhos” – na realidade verdadeiros contos independentes entre si – qual seja, oito, já traz um forte significado. Na cultura nipônica o oito (“hachi”) é o número da perfeição, representação da ligação entre as esferas espiritual e terrena. E vários são os aspectos caros aos japoneses representados ao longo de toda a projeção. O seu folclore é abordado, por exemplo, no primeiro sonho, onde um garoto é obrigado a deixar um punhal no fim do arco-íris para procurar acalmar a ira da raposa, animal que possui significados místicos na cultura local, sendo portadora de dotes ilusionistas e cujo acasalamento se dá, segundo a tradição nipônica, em dias em que chuva e sol se encontram. O horror nuclear, por sua vez, ganha representatividade no 6º e 7º sonhos, onde as conseqüências da radioatividade ganham cores vivas e fortes, com imagens possivelmente inspiradas em Dante e sua “Divina Comédia”. Da mesma forma, a comunhão e harmonia com a natureza ganham defesa no 2º e último contos, sendo este último, sobre a aldeia dos moinhos de água, onde um simpático velhinho de 103 anos ministra verdadeiras aulas de sabedoria, possivelmente a mais apaixonante das oito narrativas. Todavia, alguns irão se recordar com mais vivacidade ainda do sonho em que o protagonista conversa com o gênio Vincent Van Gogh (aqui interpretado por Martin Scorsese) para em seguida passear por entre várias de suas telas. É neste ponto de Kurosawa deixa falar mais alto o seu lado pintor, muito embora não se reduza apenas a ele. Uma das características mais marcantes do longa é sua paleta de cores fortes e vivas, de uma beleza memorável. Verdadeiras pinturas se sucedem a cada fotograma, gerando imagens que realmente impressionam (a fotografia, por sinal, acabou recebendo uma indicação ao Oscar).
Por outro lado, Kurosawa não se limita a estabelecer uma ligação entre o cinema e a pintura. O teatro é outra forma de arte que, com certa frequência, encontra eco em sua carreira (como em “Ran”, sua magistral obra-prima de 1985) e ela também se faz presente aqui. Trata-se do Nô, arte teatral característica do Japão, onde se misturam música, dança e poesia, rica em simbolismos. Para o público leigo, o Nô surge em tintas claras no segundo sonho, em que os espíritos da natureza realizam uma ritual para tentar fazer renascer um pomar de pessegueiros. Falando em música, a trilha sonora é baseada na música folclórica japonesa, o Min’yõ, com o uso de alaúdes, flautas, percussões e instrumentos de cordas típicos do Japão, soando de forma belíssima.
O resultado é um espetáculo impressionista ou mesmo surrealista, lembrando as origens artísticas de Kurosawa (pintura) e mostrando, de maneira vitoriosa, que a arte não tem pátria. Não existe arte “ocidental” ou “oriental”; o que existe são grandes artistas e artistas medíocres, provavelmente estes os criadores da falácia de o gênio fazia cinema para americanos assistirem, talvez com inveja do respeito que o mesmo adquiriu além dos limites do Japão. É interessante até mesmo observar que os cineastas ianques não têm qualquer vergonha em assumir e assimilar influências, enquanto os de outras nacionalidades parecem, muitas vezes, permeados de um provincianismo pouco produtivo. De qualquer forma, para você, fã de cinema, o que mais interessa não é essa discussão estéril, mas saber que “Sonhos” é um filme inesquecível, de beleza ímpar, o qual provavelmente permanecerá na sua mente durante um bom tempo. E também concordará que os críticos realmente se mostram muito azedos ao esquecê-lo entre os melhores filmes de Akira Kurosawa. Uma obra de arte para ser vista e revista.
Classificação e nota: Obra-prima.
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