Laura
(Laura)
Clássico do Noir
Você sabe o que foi o cinema “noir”? Ao contrário do que se pode pensar, o noir não foi um movimento de artistas ou teóricos que concebiam a criação cinematográfica de uma maneira semelhante (como aconteceu com a Nouvelle Vague francesa) ou com certas regras estilísticas predeterminadas e seguidas à risca por seus realizadores. Na realidade, os cineastas do gênero sequer sabiam que estavam fazendo cinema “noir”, já que este termo, usado pela primeira vez por um crítico francês em 1946 e adotado pelos críticos da revista Cahiérs Du Cinema (que posteriormente seriam os mestres da citada Nouvelle Vague), consolidou-se apenas anos depois que o gênero entrou em declínio. O Noir, em verdade, compreende um conjunto de filmes com características comuns que predominaram no cinema americano a partir do início dos anos 40 até meados da década de 50. Em geral, eram filmes de baixo orçamento, afinal, logo após a crise econômica dos anos 30, o mundo estava em guerra. Também eram voltados predominantemente ao entretenimento das massas, ávidas por filmes escapistas que lhes permitissem esquecer um pouco da dura realidade da época. Normalmente possuíam tramas de mistério sobre delitos ocorridos no submundo do crime e investigados por um detetive durão, com caráter não exatamente impecável, mas no fundo com um bom coração. Era comum tal protagonista envolver-se com uma mulher sedutora, de beleza estonteante, a qual frequentemente lhe trazia revezes (ou seja, o Noir praticamente criou o conceito de “mulher fatal”). Sua fotografia era invariavelmente em preto e branco de forte contraste, apta a realçar as sombras e fumaças de cigarro reinantes nos ambientes (muito do glamour do cigarro surgiu dentro desse estilo fílmico), uma influência do expressionismo alemão (“noir” significa “negro” em francês).
Embora se constitua um gênero predominantemente escapista, como dito acima, o Noir também nos revelou diretores excelentes, que souberam usar os roteiros muitas vezes esquemáticos para ir além e realizar verdadeiros estudos de personagens, revelando muito da alma humana através de suas obras. Um deles, indubitavelmente, foi Otto Preminger, um judeu austríaco que havia emigrado para os EUA após a ascensão do nazismo e que se transformou em um dos diretores mais profícuos e respeitados da Hollywood de então. Não que Preminger se dedicasse exclusivamente ao Noir, mas ele foi o responsável por um dos exemplares mais perfeitos e acabados do estilo: “Laura”, produção de 1944 protagonizada por Gene Tierney como a personagem-título.
O longa-metragem é uma adaptação do romance policial homônimo escrito por Vera Caspary e narra a investigação realizada pelo policial Mark McPherson (Dana Andrews) procurando elucidar a autoria do assassinato de Laura, morta com dois tiros de espingarda no rosto. Entre os maiores suspeitos estão o rico e influente jornalista Waldo Lydecker (o ator da Broadway Clifton Webb), o bon-vivant Shelby Carpenter (o jovem Vincent Price) e a socialite Ann Treadwell (Judith Anderson). Por meio do relato dos suspeitos, somos levados então a flashbacks (outra característica do Noir) que mostram como Laura deixou o anonimato para se tornar uma famosa designer, ao mesmo tempo em que percebemos que o detetive McPherson aos poucos vai se apaixonando pela falecida, descrita por todos como uma mulher encantadora e de beleza inigualável.
Costuma-se afirmar que filmes noir possuem enredo intrincado, mas “intrincado” talvez não seja o termo mais adequado para a trama deste magnífico “Laura”. Ele é bem elaborado e apresenta reviravoltas, mas jamais confunde ou entendia o espectador. Além disso, o trio de roteiristas responsável pela adaptação contou com o poeta Samuel Hoffenstein (além de Jay Dratler e Betty Reinhardt), o qual deu um refinamento aos diálogos todo especial, atribuindo-lhes qualidade verdadeiramente literária. Várias são as frases marcantes e memoráveis dos personagens, como a de Waldo Lydecker “nunca esquecerei o fim de semana em que Laura morreu. Eu me senti como o único ser humano que restou em Nova York”; ou ainda a de McPherson: “quando uma mulher é morta, ela não se preocupa com a aparência”. É um prazer acompanhá-los em falas tão inteligentes e instigantes, permitindo rever o filme com interesse sempre renovado.
As atuações, por sinal, merecem um parágrafo à parte. Gene Tierney parece ter nascido para o papel de Laura. Sua beleza excepcional torna perfeitamente crível o fato de tantos homens se apaixonarem por ela. Interessante que ela foi apenas a segunda opção de Preminger, uma vez que Tierney havia deixado o cinema por um ano para ser mãe. Sua grande popularidade, ademais, também foi um dos fatores que transformaram a produção em um sucesso de bilheteria. Por outro lado, Clifton Webb, que interpreta o cínico jornalista Lydecker, dá um show de interpretação, compensando o esforço de Preminger em escalá-lo, já que o então chefão da Fox, Darryl F. Zanuck, não gostava da opção devido aos boatos sobre a homossexualidade de Webb. A verdade é que o jornalista Waldo disputa as atenções da plateia com Laura. O personagem é inesquecível e sua obsessão por Laura adquire uma dupla conotação, pois que acabamos com a impressão de que o mesmo, na realidade, não é apenas apaixonado por Laura, mas talvez queira assumir sua vida, ser a própria adorada. Possivelmente o primeiro personagem masculino do cinema que deseja ser uma mulher. Além destes, Dana Andrews, Vincent Price e Judith Anderson também estão ótimos e perfeitamente encaixados em seus respectivos papeis.
Mas a série de acertos não para por aí. A fotografia primorosa de Joseph Lashelle, vencedora do Oscar, é belíssima, assim como a trilha sonora inesquecível e famosa de David Raksin. E, claro, tudo isso não seria nada sem a direção primorosa de Preminger. É bom lembrar que Rouben Mamoulian havia iniciado a direção do longa, enquanto Preminger tinha permanecido apenas na produção devido aos seus incontáveis atritos com Zanuck. Todavia, o próprio Zanuck não gostou do trabalho de Mamoulian e aceitou que o diretor austríaco tomasse as rédeas do projeto.
Não poderia haver decisão mais acertada. Otto Preminger transformou Laura em uma obra-prima, com um suspense capaz de prender a atenção mesmo das dispersivas platéias de hoje. Se você pretende iniciar uma apreciação do cinema noir, este sem dúvida é um ótimo começo. Se já é um iniciado e ainda não viu, saiba que este é um filme obrigatório do gênero. E se já assistiu, acredito que, após estas linhas, deve ter batido aquela vontade de rever este clássico. Por sinal, “clássico” é um termo que inegavelmente se aplica à perfeição em “Laura”.
Classificação e nota: Obra-prima.
(Laura)
Clássico do Noir
Você sabe o que foi o cinema “noir”? Ao contrário do que se pode pensar, o noir não foi um movimento de artistas ou teóricos que concebiam a criação cinematográfica de uma maneira semelhante (como aconteceu com a Nouvelle Vague francesa) ou com certas regras estilísticas predeterminadas e seguidas à risca por seus realizadores. Na realidade, os cineastas do gênero sequer sabiam que estavam fazendo cinema “noir”, já que este termo, usado pela primeira vez por um crítico francês em 1946 e adotado pelos críticos da revista Cahiérs Du Cinema (que posteriormente seriam os mestres da citada Nouvelle Vague), consolidou-se apenas anos depois que o gênero entrou em declínio. O Noir, em verdade, compreende um conjunto de filmes com características comuns que predominaram no cinema americano a partir do início dos anos 40 até meados da década de 50. Em geral, eram filmes de baixo orçamento, afinal, logo após a crise econômica dos anos 30, o mundo estava em guerra. Também eram voltados predominantemente ao entretenimento das massas, ávidas por filmes escapistas que lhes permitissem esquecer um pouco da dura realidade da época. Normalmente possuíam tramas de mistério sobre delitos ocorridos no submundo do crime e investigados por um detetive durão, com caráter não exatamente impecável, mas no fundo com um bom coração. Era comum tal protagonista envolver-se com uma mulher sedutora, de beleza estonteante, a qual frequentemente lhe trazia revezes (ou seja, o Noir praticamente criou o conceito de “mulher fatal”). Sua fotografia era invariavelmente em preto e branco de forte contraste, apta a realçar as sombras e fumaças de cigarro reinantes nos ambientes (muito do glamour do cigarro surgiu dentro desse estilo fílmico), uma influência do expressionismo alemão (“noir” significa “negro” em francês).
Embora se constitua um gênero predominantemente escapista, como dito acima, o Noir também nos revelou diretores excelentes, que souberam usar os roteiros muitas vezes esquemáticos para ir além e realizar verdadeiros estudos de personagens, revelando muito da alma humana através de suas obras. Um deles, indubitavelmente, foi Otto Preminger, um judeu austríaco que havia emigrado para os EUA após a ascensão do nazismo e que se transformou em um dos diretores mais profícuos e respeitados da Hollywood de então. Não que Preminger se dedicasse exclusivamente ao Noir, mas ele foi o responsável por um dos exemplares mais perfeitos e acabados do estilo: “Laura”, produção de 1944 protagonizada por Gene Tierney como a personagem-título.
O longa-metragem é uma adaptação do romance policial homônimo escrito por Vera Caspary e narra a investigação realizada pelo policial Mark McPherson (Dana Andrews) procurando elucidar a autoria do assassinato de Laura, morta com dois tiros de espingarda no rosto. Entre os maiores suspeitos estão o rico e influente jornalista Waldo Lydecker (o ator da Broadway Clifton Webb), o bon-vivant Shelby Carpenter (o jovem Vincent Price) e a socialite Ann Treadwell (Judith Anderson). Por meio do relato dos suspeitos, somos levados então a flashbacks (outra característica do Noir) que mostram como Laura deixou o anonimato para se tornar uma famosa designer, ao mesmo tempo em que percebemos que o detetive McPherson aos poucos vai se apaixonando pela falecida, descrita por todos como uma mulher encantadora e de beleza inigualável.
Costuma-se afirmar que filmes noir possuem enredo intrincado, mas “intrincado” talvez não seja o termo mais adequado para a trama deste magnífico “Laura”. Ele é bem elaborado e apresenta reviravoltas, mas jamais confunde ou entendia o espectador. Além disso, o trio de roteiristas responsável pela adaptação contou com o poeta Samuel Hoffenstein (além de Jay Dratler e Betty Reinhardt), o qual deu um refinamento aos diálogos todo especial, atribuindo-lhes qualidade verdadeiramente literária. Várias são as frases marcantes e memoráveis dos personagens, como a de Waldo Lydecker “nunca esquecerei o fim de semana em que Laura morreu. Eu me senti como o único ser humano que restou em Nova York”; ou ainda a de McPherson: “quando uma mulher é morta, ela não se preocupa com a aparência”. É um prazer acompanhá-los em falas tão inteligentes e instigantes, permitindo rever o filme com interesse sempre renovado.
As atuações, por sinal, merecem um parágrafo à parte. Gene Tierney parece ter nascido para o papel de Laura. Sua beleza excepcional torna perfeitamente crível o fato de tantos homens se apaixonarem por ela. Interessante que ela foi apenas a segunda opção de Preminger, uma vez que Tierney havia deixado o cinema por um ano para ser mãe. Sua grande popularidade, ademais, também foi um dos fatores que transformaram a produção em um sucesso de bilheteria. Por outro lado, Clifton Webb, que interpreta o cínico jornalista Lydecker, dá um show de interpretação, compensando o esforço de Preminger em escalá-lo, já que o então chefão da Fox, Darryl F. Zanuck, não gostava da opção devido aos boatos sobre a homossexualidade de Webb. A verdade é que o jornalista Waldo disputa as atenções da plateia com Laura. O personagem é inesquecível e sua obsessão por Laura adquire uma dupla conotação, pois que acabamos com a impressão de que o mesmo, na realidade, não é apenas apaixonado por Laura, mas talvez queira assumir sua vida, ser a própria adorada. Possivelmente o primeiro personagem masculino do cinema que deseja ser uma mulher. Além destes, Dana Andrews, Vincent Price e Judith Anderson também estão ótimos e perfeitamente encaixados em seus respectivos papeis.
Mas a série de acertos não para por aí. A fotografia primorosa de Joseph Lashelle, vencedora do Oscar, é belíssima, assim como a trilha sonora inesquecível e famosa de David Raksin. E, claro, tudo isso não seria nada sem a direção primorosa de Preminger. É bom lembrar que Rouben Mamoulian havia iniciado a direção do longa, enquanto Preminger tinha permanecido apenas na produção devido aos seus incontáveis atritos com Zanuck. Todavia, o próprio Zanuck não gostou do trabalho de Mamoulian e aceitou que o diretor austríaco tomasse as rédeas do projeto.
Não poderia haver decisão mais acertada. Otto Preminger transformou Laura em uma obra-prima, com um suspense capaz de prender a atenção mesmo das dispersivas platéias de hoje. Se você pretende iniciar uma apreciação do cinema noir, este sem dúvida é um ótimo começo. Se já é um iniciado e ainda não viu, saiba que este é um filme obrigatório do gênero. E se já assistiu, acredito que, após estas linhas, deve ter batido aquela vontade de rever este clássico. Por sinal, “clássico” é um termo que inegavelmente se aplica à perfeição em “Laura”.
Classificação e nota: Obra-prima.
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