Meu Ódio Será Sua Herança
(The Wild Bunch)
Quando os brutos se tornam heróis
“Meu Ódio Será Sua Herança” possui uma sequência de créditos iniciais das mais marcantes que já tive a oportunidade de ver. Nela, um grupo de foras-da-lei, disfarçados com uniformes do exército norte-americano, avança calmamente a cavalo pelas ruas de um lugarejo poeirento próximo à fronteira dos EUA com o México. A imagem da cavalgada dos bandidos é entrecortada por outra, mostrando um grupo de crianças em uma rua próxima rindo com uma brincadeira cruel: elas assistem a escorpiões sendo devorados em um ninho de formigas vermelhas. A imagem, que foi sugerida por um dos integrantes do elenco, o ator mexicano Emilio Fernández, apresenta uma perfeita similaridade com o roteiro desenvolvido, constituindo uma metáfora interessantíssima para o desfecho deste impactante filme dirigido por Sam Peckinpah.
Peckinpah foi uma espécie de precursor da hiperviolência nas telas de cinema, um ancestral de Quentin Tarantino que estourou no final dos anos 60, quando todo o cinema americano, vale dizer, passava por transformações significativas. É possível, inclusive, que ele tenha sido o primeiro diretor a filmar a morte em câmera lenta, mostrando toda a dor dos personagens no momento em que são alvejados, em cenas dignas de tragédias operísticas. Contudo, tanto uma parte do público quanto a crítica não entenderam o seu cinema. Muitos consideravam gratuita e sensacionalista a violência de suas obras, com jorros de sangue voando para todos os lados. Roger Ebert, o famoso crítico norte-americano, afirma que a reação causada por “The Wild Bunch” foi similar àquela provocada, décadas depois, por “O Clube da Luta”, longa de David Fincher também muito criticado por adotar a hiperviolência como sustentáculo da obra. Entretanto, se é verdade que o filme de Fincher é muitíssimo violento, não se pode negar o seu valor enquanto obra vanguardista e questionadora, bem como representativa de um contexto sociocultural perfeitamente retratado em suas entrelinhas. E, do mesmo modo, pode-se afirmar que o filme de Peckinpah apresenta tais características.
“Meu Ódio...” é um faroeste crepuscular, narrando a saga de um grupo de assaltantes que se encontra próximo do fim. Seu líder, Pike Bishop (o astro William Holden) já está avançando na idade e cansado demais para continuar em uma vida repleta de perigos. Ademais, ele percebe que os tempos estão mudando. O ano é o de 1913, quando o automóvel começa aos poucos a fazer parte da paisagem ianque e o Estado já está se fazendo presente mesmo em rincões afastados do Oeste. Empresários e banqueiros, por seu turno, dispõem cada vez mais de recursos para proteger seus bens, tornando ainda mais perigosa e difícil a vida de assaltantes com ele. Pike, então, juntamente com seus companheiros Dutch Engstrom (Ernest Borgnine, recentemente homenageado no SAG), o velho e espirituoso Freddie Sykes (Edmond O’brien), o índio passional Angel (Jaime Sanchez), além dos irmãos crianças-grandes Lyle e Tector Gorch (Warren Oates e Bem Johnson, respectivamente), decide realizar um último golpe antes da aposentadoria: roubar uma carga de armas do exército americano, a mando do general paramilitar Mapache (Emilio Fernández, já mencionado mais acima). Por sua vez, o caçador de recompensas Deke Thornton (Robert Ryan) lidera um outro grupo que persegue o bando de Pike, grupo este formado por homens que se comportam como urubus ou hienas, se apropriando dos despojos dos mortos. Pike e Thornton, vale salientar, já foram amigos no passado, fazendo parte do mesmo bando.
Enganam-se aqueles que possam pensar que o longa se limita a um bangue-bangue bem encenado. Os personagens de Pike e Thornton são muito bem interpretados tanto por Holden quanto por Ryan, os quais conferem às suas interpretações uma forte carga interna. São homens que demonstram ciência de que seu tempo já passou, de que o fim está próximo, carregando nas costas o peso de uma vida errática e repleta de remorsos. Neste ponto, são ancestrais de Bill Munny, personagem de Clint Eastwood no seu antológico “Os Imperdoáveis”. É ainda importante salientar que o maniqueísmo passa longe da abordagem de Peckinpah. Se, por um lado, não deixamos de enxergar a crueldade dos membros do bando em certos momentos, em outros percebemos que os mesmos possuem uma ética própria, um senso de companheirismo que os leva a um desfecho trágico e, porque não dizer, também heróico. Até mesmo os piores facínoras podem ter um momento de redenção, parece nos dizer o diretor. Em outra vertente, porém, é de se lamentar uma certa misoginia na película, vez que as mulheres são sempre mostradas ora como prostitutas, ora tendo caráter duvidoso, o que pode acabar por trazer um certa rejeição do público feminino.
Extremamente bem fotografado e editado, esse western faz jus aos filmes de Sergio Leone no trato imagético. Uma profusão de sequências impressionantes é vista na tela, como a do tiroteio no centro da cidade em meio a uma passeata contra o uso de álcool, logo no início do filme (cena que tem um gosto peculiar para o alcoólatra Peckinpah), ou ainda a do assalto ao trem com a carga de armas. E isso pra não falar da mítica imagem em que os quatro integrantes restantes do grupo adentram um vilarejo com a altivez e consciência de que, na realidade, devem estar se dirigindo ao encontro da morte.
É intrigante como “Meu Ódio Será Sua Herança”, ao tratar do fim da era histórica do Velho Oeste, acabou também por simbolizar o fim de uma era no cinema, aquela controlada pelos estúdios (o “studio system”), e substituída pelo novo mundo dos diretores, surgido com os artífices da Nova Hollywood. Enfim, um filme que acabou se tornando o marco de uma transição. Curioso que, daí em diante, Sam Peckinpah tenha alternado sucessos e fracassos também em gêneros distintos, mas hoje seja lembrado principalmente pelos seus westerns. Ou seja, acabou desenvolvendo sua carreira tendo como base um gênero moribundo, tal como eram moribundos os tempos retratados neste seu longa-metragem que testou limites e influenciou decisivamente a estética do cinema norte-americano posterior. Não estranharei se um dia Quentin Tarantino acabar realizando um remake deste longa. Fará bastante sentido.
Cotação:
Nota: 9,5
Quando os brutos se tornam heróis
“Meu Ódio Será Sua Herança” possui uma sequência de créditos iniciais das mais marcantes que já tive a oportunidade de ver. Nela, um grupo de foras-da-lei, disfarçados com uniformes do exército norte-americano, avança calmamente a cavalo pelas ruas de um lugarejo poeirento próximo à fronteira dos EUA com o México. A imagem da cavalgada dos bandidos é entrecortada por outra, mostrando um grupo de crianças em uma rua próxima rindo com uma brincadeira cruel: elas assistem a escorpiões sendo devorados em um ninho de formigas vermelhas. A imagem, que foi sugerida por um dos integrantes do elenco, o ator mexicano Emilio Fernández, apresenta uma perfeita similaridade com o roteiro desenvolvido, constituindo uma metáfora interessantíssima para o desfecho deste impactante filme dirigido por Sam Peckinpah.
Peckinpah foi uma espécie de precursor da hiperviolência nas telas de cinema, um ancestral de Quentin Tarantino que estourou no final dos anos 60, quando todo o cinema americano, vale dizer, passava por transformações significativas. É possível, inclusive, que ele tenha sido o primeiro diretor a filmar a morte em câmera lenta, mostrando toda a dor dos personagens no momento em que são alvejados, em cenas dignas de tragédias operísticas. Contudo, tanto uma parte do público quanto a crítica não entenderam o seu cinema. Muitos consideravam gratuita e sensacionalista a violência de suas obras, com jorros de sangue voando para todos os lados. Roger Ebert, o famoso crítico norte-americano, afirma que a reação causada por “The Wild Bunch” foi similar àquela provocada, décadas depois, por “O Clube da Luta”, longa de David Fincher também muito criticado por adotar a hiperviolência como sustentáculo da obra. Entretanto, se é verdade que o filme de Fincher é muitíssimo violento, não se pode negar o seu valor enquanto obra vanguardista e questionadora, bem como representativa de um contexto sociocultural perfeitamente retratado em suas entrelinhas. E, do mesmo modo, pode-se afirmar que o filme de Peckinpah apresenta tais características.
“Meu Ódio...” é um faroeste crepuscular, narrando a saga de um grupo de assaltantes que se encontra próximo do fim. Seu líder, Pike Bishop (o astro William Holden) já está avançando na idade e cansado demais para continuar em uma vida repleta de perigos. Ademais, ele percebe que os tempos estão mudando. O ano é o de 1913, quando o automóvel começa aos poucos a fazer parte da paisagem ianque e o Estado já está se fazendo presente mesmo em rincões afastados do Oeste. Empresários e banqueiros, por seu turno, dispõem cada vez mais de recursos para proteger seus bens, tornando ainda mais perigosa e difícil a vida de assaltantes com ele. Pike, então, juntamente com seus companheiros Dutch Engstrom (Ernest Borgnine, recentemente homenageado no SAG), o velho e espirituoso Freddie Sykes (Edmond O’brien), o índio passional Angel (Jaime Sanchez), além dos irmãos crianças-grandes Lyle e Tector Gorch (Warren Oates e Bem Johnson, respectivamente), decide realizar um último golpe antes da aposentadoria: roubar uma carga de armas do exército americano, a mando do general paramilitar Mapache (Emilio Fernández, já mencionado mais acima). Por sua vez, o caçador de recompensas Deke Thornton (Robert Ryan) lidera um outro grupo que persegue o bando de Pike, grupo este formado por homens que se comportam como urubus ou hienas, se apropriando dos despojos dos mortos. Pike e Thornton, vale salientar, já foram amigos no passado, fazendo parte do mesmo bando.
Enganam-se aqueles que possam pensar que o longa se limita a um bangue-bangue bem encenado. Os personagens de Pike e Thornton são muito bem interpretados tanto por Holden quanto por Ryan, os quais conferem às suas interpretações uma forte carga interna. São homens que demonstram ciência de que seu tempo já passou, de que o fim está próximo, carregando nas costas o peso de uma vida errática e repleta de remorsos. Neste ponto, são ancestrais de Bill Munny, personagem de Clint Eastwood no seu antológico “Os Imperdoáveis”. É ainda importante salientar que o maniqueísmo passa longe da abordagem de Peckinpah. Se, por um lado, não deixamos de enxergar a crueldade dos membros do bando em certos momentos, em outros percebemos que os mesmos possuem uma ética própria, um senso de companheirismo que os leva a um desfecho trágico e, porque não dizer, também heróico. Até mesmo os piores facínoras podem ter um momento de redenção, parece nos dizer o diretor. Em outra vertente, porém, é de se lamentar uma certa misoginia na película, vez que as mulheres são sempre mostradas ora como prostitutas, ora tendo caráter duvidoso, o que pode acabar por trazer um certa rejeição do público feminino.
Extremamente bem fotografado e editado, esse western faz jus aos filmes de Sergio Leone no trato imagético. Uma profusão de sequências impressionantes é vista na tela, como a do tiroteio no centro da cidade em meio a uma passeata contra o uso de álcool, logo no início do filme (cena que tem um gosto peculiar para o alcoólatra Peckinpah), ou ainda a do assalto ao trem com a carga de armas. E isso pra não falar da mítica imagem em que os quatro integrantes restantes do grupo adentram um vilarejo com a altivez e consciência de que, na realidade, devem estar se dirigindo ao encontro da morte.
É intrigante como “Meu Ódio Será Sua Herança”, ao tratar do fim da era histórica do Velho Oeste, acabou também por simbolizar o fim de uma era no cinema, aquela controlada pelos estúdios (o “studio system”), e substituída pelo novo mundo dos diretores, surgido com os artífices da Nova Hollywood. Enfim, um filme que acabou se tornando o marco de uma transição. Curioso que, daí em diante, Sam Peckinpah tenha alternado sucessos e fracassos também em gêneros distintos, mas hoje seja lembrado principalmente pelos seus westerns. Ou seja, acabou desenvolvendo sua carreira tendo como base um gênero moribundo, tal como eram moribundos os tempos retratados neste seu longa-metragem que testou limites e influenciou decisivamente a estética do cinema norte-americano posterior. Não estranharei se um dia Quentin Tarantino acabar realizando um remake deste longa. Fará bastante sentido.
Cotação:
Nota: 9,5
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