O Mensageiro do Diabo
(The Night Of The Hunter, 1955)
O Bem, o Mal e o Bicho-papão
“O Mensageiro do Diabo” (The Night Of The Hunter), o único filme dirigido pelo respeitado ator Charles Laughton, é uma daquelas obras que fazem parte de um rol especial: as que não foram reconhecidas no seu tempo, ganhando respeitabilidade e sendo descobertas anos depois de seus lançamentos. Isso acontece com uma certa frequência no mundo artístico – não apenas no cinema – bastando lembrar de casos como o do gênio da pintura Vincent Van Gogh ou da obra literária de Franz Kafka. E é uma pena que, tal como estes famosos exemplos, Laughton não tenha vivido o suficiente para ver sua obra alcançar os elogios que sempre mereceu. Contrariamente, viu sua carreira como diretor ser interrompida devido ao fracasso financeiro da produção, não conseguindo mais levar adiante nenhum projeto. Levado à depressão, transformou-se em coadjuvante de luxo dali em diante, em papeis que não lhe exigiam grande esforço. Uma tremenda injustiça histórica com este longa-metragem impressionante, uma espécie de fábula que transmuda para a tela os mais assustadores pesadelos infantis e que nos apresenta um dos mais inesquecíveis vilões da história da Sétima Arte, interpretado por um Robert Mitchum no melhor momento de sua carreira.
Estruturado como uma alegórica batalha entre o Bem e o Mal, o roteiro se baseia em um romance de Davis Grubb adaptado para as telas por James Agee, responsável pelo script de “Uma Aventura Na África” (The African Queen, 1951) e então no auge da fama e respeito em Hollywood. A trama se concentra na figura do falso pastor Harry Powell (Mitchum), um psicótico que já havia matado diversas viúvas que julgava pervertidas, em uma missão que considerava que lhe havia sido atribuída por Deus. Uma vez preso por outro delito de menor importância, conhece durante os dias na prisão o condenado à morte Ben Harper (Peter Graves), o qual acaba revelando ao primeiro que havia deixado escondida com sua família uma grande quantia em dinheiro fruto de um assalto a banco. Quando libertado, Powelll sai em busca do dinheiro e, para alcançá-lo, aproveita-se da fragilidade emocional da viúva de Harper, Willa (Shelley Winters), casando-se com ela e buscando ganhar a confiança dos dois filhos, o primogênito John (Ben Chapin) e a garotinha Pearl (Sally Jane). O menino, contudo, percebe as intenções nefastas do padrasto, recusando-se a colaborar e tornando os irmãos alvos da ira do falso pregador.
Um dos grandes trunfos engendrados pelo roteiro e a direção de Laughton é justamente a sensação de total desproteção enfrentada pelo personagem de John, um verdadeiro terror infantil ainda mais acentuado para o espectador porque muitos dos fatos são vistos segundo a perspectiva das crianças. John é o único que percebe o lado malévolo de Harry Powell, sofrendo a angústia de ser desacreditado pelos adultos à sua volta, a começar pela sua mãe, e não poder contar nem com a própria irmã, já que ela, menor e mais inocente, é facilmente enganada pelo “reverendo” psicopata. Nesta linha, Powell se coloca como a verdadeira encarnação da “velha-debaixo-da-cama”, do “bicho-papão” ou qualquer outro ser imaginário e nefasto que tanto perturbam a imaginação infantil. Algumas sequências, inclusive, possuem um forte tom onírico que reforçam o caráter de fábula da narrativa, tal como a belíssima e estranha sequência dos garotos fugindo pelo rio Ohio ou a aparição de Powell montado em um cavalo visto à distância por John, o que leva este a se perguntar: “ele nunca dorme?”. Como contraponto à força do Mal representada pelo personagem de Mitchum, surge a Sra. Rachel (a lendária Lilian Gish, famosa pelas atuações nos filmes de D. W. Griffith), uma mulher que acolhe crianças órfãs em sua espaçosa propriedade. É ela que protege os irmãos e irá enfrentar diretamente Harry Powell em uma sequência memorável em que impede a entrada do psicopata enquanto este ronda a residência tal como uma raposa espreita um galinheiro.
Aliás, cenas marcantes em “O Mensageiro do Diabo” são mesmo uma constante, dado o brilhantismo da fotografia do veterano Stanley Cortez (que já havia trabalhado, por exemplo, com Orson Welles em “Soberba”) e seus enquadramentos inusitados que remontam ao Expressionismo alemão, por sinal uma das influências assumidas de Laughton, resultando em uma experiência imagética inesquecível. Laughton, inclusive, estabeleceu uma iconografia inimitável na concepção de Powell com suas roupas pretas e brancas, além do uso de tatuagens com as palavras “Amor” e “Ódio” nos dedos das mãos. A queda de braço realizada pelo personagem em uma cena em que explica o embate atemporal entre o Bem e o Mal, cena esta em que as duas mãos com as referidas palavras se abraçam, é simplesmente memorável e brilhante. Uma maneira simples, direta e inteligentíssima de resumir toda a temática do longa. Vale destacar, também, o ritmo de suspense com leves pitadas de humor, onde Laughton parece revelar influências de Hitchcock.
Outro ponto altíssimo é o elenco. Todos os atores entregam grandes performances, incluindo o elenco infantil. Curioso que havia um mito de que Laughton não gostava de trabalhar com crianças e que teria sido Mitchum o responsável por orientá-las nas filmagens. Essa teoria caiu por terra depois que foram descobertos negativos escondidos na velha casa de Laughton nos quais há imagens do mesmo orientando o elenco e que, ao contrário do que se falava, ele dedicava especial atenção aos pequenos. Talvez o maior trabalho para Laughton tenha se dado com Shelley Winters, pois que a mesma teve dificuldades em incorporar o necessário sotaque sulista de Willa Harper e também de encontrar o tom certo para a sua fragilidade. Lilian Gish, como era de se esperar, está perfeita como a citada Sra. Rachel, personagem muito carismática e que, como dito mais acima, representa a grande antagonista de Harry Powell. Um belo retorno após alguns anos de afastamento das câmeras. Entretanto, é mesmo Robert Mitchum, um dos atores mais injustiçados de Hollywood, quem domina as atenções. Em uma composição impecável, ele empresta um ar a só tempo misterioso, ameaçador e sedutor a Powell, criando um vilão perturbador e único. Ademais, jamais sabemos o quanto ele acredita ou não nas palavras religiosas que profere, nunca ficando exposto o quanto há de hipocrisia em seu comportamento. Laurence Olivier havia sido convidado para o papel, mas a escolha final por Mitchum não poderia ser mais acertada.
Contando com várias citações bíblicas que só enriquecem as metáforas e analogias propostas ao longo de sua projeção (é bom lembrar que Laughton era famoso por suas declamações das Escrituras), “The Night Of The Hunter” é uma experiência singular que com certeza se coloca entre aquelas que você tem de ver antes de morrer. Um filme que não parece com nada que você já viu, talvez até porque ele tenha ficado esquecido por vários anos e Charles Laughton não tenha tido oportunidade de continuar como cineasta. Uma pena. De qualquer forma, você cinéfilo tem a obrigação de reparar este erro histórico e fazer com que este longa-metragem recupere cada vez mais o status que lhe é próprio dentro da Sétima Arte, qual seja, o de autêntica obra-prima.
Cotação e nota: Obra-prima.
(The Night Of The Hunter, 1955)
O Bem, o Mal e o Bicho-papão
“O Mensageiro do Diabo” (The Night Of The Hunter), o único filme dirigido pelo respeitado ator Charles Laughton, é uma daquelas obras que fazem parte de um rol especial: as que não foram reconhecidas no seu tempo, ganhando respeitabilidade e sendo descobertas anos depois de seus lançamentos. Isso acontece com uma certa frequência no mundo artístico – não apenas no cinema – bastando lembrar de casos como o do gênio da pintura Vincent Van Gogh ou da obra literária de Franz Kafka. E é uma pena que, tal como estes famosos exemplos, Laughton não tenha vivido o suficiente para ver sua obra alcançar os elogios que sempre mereceu. Contrariamente, viu sua carreira como diretor ser interrompida devido ao fracasso financeiro da produção, não conseguindo mais levar adiante nenhum projeto. Levado à depressão, transformou-se em coadjuvante de luxo dali em diante, em papeis que não lhe exigiam grande esforço. Uma tremenda injustiça histórica com este longa-metragem impressionante, uma espécie de fábula que transmuda para a tela os mais assustadores pesadelos infantis e que nos apresenta um dos mais inesquecíveis vilões da história da Sétima Arte, interpretado por um Robert Mitchum no melhor momento de sua carreira.
Estruturado como uma alegórica batalha entre o Bem e o Mal, o roteiro se baseia em um romance de Davis Grubb adaptado para as telas por James Agee, responsável pelo script de “Uma Aventura Na África” (The African Queen, 1951) e então no auge da fama e respeito em Hollywood. A trama se concentra na figura do falso pastor Harry Powell (Mitchum), um psicótico que já havia matado diversas viúvas que julgava pervertidas, em uma missão que considerava que lhe havia sido atribuída por Deus. Uma vez preso por outro delito de menor importância, conhece durante os dias na prisão o condenado à morte Ben Harper (Peter Graves), o qual acaba revelando ao primeiro que havia deixado escondida com sua família uma grande quantia em dinheiro fruto de um assalto a banco. Quando libertado, Powelll sai em busca do dinheiro e, para alcançá-lo, aproveita-se da fragilidade emocional da viúva de Harper, Willa (Shelley Winters), casando-se com ela e buscando ganhar a confiança dos dois filhos, o primogênito John (Ben Chapin) e a garotinha Pearl (Sally Jane). O menino, contudo, percebe as intenções nefastas do padrasto, recusando-se a colaborar e tornando os irmãos alvos da ira do falso pregador.
Um dos grandes trunfos engendrados pelo roteiro e a direção de Laughton é justamente a sensação de total desproteção enfrentada pelo personagem de John, um verdadeiro terror infantil ainda mais acentuado para o espectador porque muitos dos fatos são vistos segundo a perspectiva das crianças. John é o único que percebe o lado malévolo de Harry Powell, sofrendo a angústia de ser desacreditado pelos adultos à sua volta, a começar pela sua mãe, e não poder contar nem com a própria irmã, já que ela, menor e mais inocente, é facilmente enganada pelo “reverendo” psicopata. Nesta linha, Powell se coloca como a verdadeira encarnação da “velha-debaixo-da-cama”, do “bicho-papão” ou qualquer outro ser imaginário e nefasto que tanto perturbam a imaginação infantil. Algumas sequências, inclusive, possuem um forte tom onírico que reforçam o caráter de fábula da narrativa, tal como a belíssima e estranha sequência dos garotos fugindo pelo rio Ohio ou a aparição de Powell montado em um cavalo visto à distância por John, o que leva este a se perguntar: “ele nunca dorme?”. Como contraponto à força do Mal representada pelo personagem de Mitchum, surge a Sra. Rachel (a lendária Lilian Gish, famosa pelas atuações nos filmes de D. W. Griffith), uma mulher que acolhe crianças órfãs em sua espaçosa propriedade. É ela que protege os irmãos e irá enfrentar diretamente Harry Powell em uma sequência memorável em que impede a entrada do psicopata enquanto este ronda a residência tal como uma raposa espreita um galinheiro.
Aliás, cenas marcantes em “O Mensageiro do Diabo” são mesmo uma constante, dado o brilhantismo da fotografia do veterano Stanley Cortez (que já havia trabalhado, por exemplo, com Orson Welles em “Soberba”) e seus enquadramentos inusitados que remontam ao Expressionismo alemão, por sinal uma das influências assumidas de Laughton, resultando em uma experiência imagética inesquecível. Laughton, inclusive, estabeleceu uma iconografia inimitável na concepção de Powell com suas roupas pretas e brancas, além do uso de tatuagens com as palavras “Amor” e “Ódio” nos dedos das mãos. A queda de braço realizada pelo personagem em uma cena em que explica o embate atemporal entre o Bem e o Mal, cena esta em que as duas mãos com as referidas palavras se abraçam, é simplesmente memorável e brilhante. Uma maneira simples, direta e inteligentíssima de resumir toda a temática do longa. Vale destacar, também, o ritmo de suspense com leves pitadas de humor, onde Laughton parece revelar influências de Hitchcock.
Outro ponto altíssimo é o elenco. Todos os atores entregam grandes performances, incluindo o elenco infantil. Curioso que havia um mito de que Laughton não gostava de trabalhar com crianças e que teria sido Mitchum o responsável por orientá-las nas filmagens. Essa teoria caiu por terra depois que foram descobertos negativos escondidos na velha casa de Laughton nos quais há imagens do mesmo orientando o elenco e que, ao contrário do que se falava, ele dedicava especial atenção aos pequenos. Talvez o maior trabalho para Laughton tenha se dado com Shelley Winters, pois que a mesma teve dificuldades em incorporar o necessário sotaque sulista de Willa Harper e também de encontrar o tom certo para a sua fragilidade. Lilian Gish, como era de se esperar, está perfeita como a citada Sra. Rachel, personagem muito carismática e que, como dito mais acima, representa a grande antagonista de Harry Powell. Um belo retorno após alguns anos de afastamento das câmeras. Entretanto, é mesmo Robert Mitchum, um dos atores mais injustiçados de Hollywood, quem domina as atenções. Em uma composição impecável, ele empresta um ar a só tempo misterioso, ameaçador e sedutor a Powell, criando um vilão perturbador e único. Ademais, jamais sabemos o quanto ele acredita ou não nas palavras religiosas que profere, nunca ficando exposto o quanto há de hipocrisia em seu comportamento. Laurence Olivier havia sido convidado para o papel, mas a escolha final por Mitchum não poderia ser mais acertada.
Contando com várias citações bíblicas que só enriquecem as metáforas e analogias propostas ao longo de sua projeção (é bom lembrar que Laughton era famoso por suas declamações das Escrituras), “The Night Of The Hunter” é uma experiência singular que com certeza se coloca entre aquelas que você tem de ver antes de morrer. Um filme que não parece com nada que você já viu, talvez até porque ele tenha ficado esquecido por vários anos e Charles Laughton não tenha tido oportunidade de continuar como cineasta. Uma pena. De qualquer forma, você cinéfilo tem a obrigação de reparar este erro histórico e fazer com que este longa-metragem recupere cada vez mais o status que lhe é próprio dentro da Sétima Arte, qual seja, o de autêntica obra-prima.
Cotação e nota: Obra-prima.
9 comentários:
Grande Fábio essa semana li um artigo que falava exatamente desse filme, que irracionalmente ainda não assisti.
Vou tirar o prejuízo dessa autêntica obra-prima, como você mesmo diz.
Abraços
Renato, recomendadíssimo! Se puder, veja por meio da edição recentemente lançada da Versátil, que ficou um primor de imagem e som. Imagens lindas! Abraço!
coincidencia, acabei justamente de ver esse filme, assisti em uma copia em HD da criterion muito boa. Otima imagem, filme tambem. Abs!
Esse filme eu vi, tem tanto tempo, que não me recordo. Interessante que li uma resenha dele rápida num blog cinéfilo, mas seu texto é rico e detalhado, parabéns, sabe mesmo nos instigar a conferir a obra. Você cotou o filme como uma obra-prima, deve ser mesmo, eu tenho certeza que vou gostar mais dele na revisão. Ah, não gosto muito dos lançamentos em dvd da versátil, acho alguns muito mal remasterizados, imagens ruins mesmo, espero que este seja belo como você destaca, vou ver se encontro na Livraria Cultura.
Abraço!
É um grande thriller. Assustador! O Mitchum merecia prêmios. Sua atuação só perde para a que fez em Círculo do Medo, inclusive bastante superior a de De Niro no remake de Scorsese.
O Falcão Maltês
Celo, grande coincidência mesmo! E a Criterion é referência em qualidade no mundo inteiro!
Cristiano, reveja, vale muito à pena. Mas me causa uma estranheza sua opinião sobre a Versátil. Eu a considero uma ótima distribuidora que vem fazendo no Brasil um trabalho semelhante ao da Criterion, resgatando filmes importantes, geralmente com boa qualidade de imagem e som. Um bom exemplo disso são as edições nacionais de filmes como "Freud, Além da Alma" (uma das poucas existentes no mundo, por sinal" e de "O Boulevard do Crime", que teve um trabalho gráfico belíssimo.
Antônio, ainda não vi "Círculo do Medo" (vergonha...), mas Mitchum era um excelente ator que merecia ser mais lembrado.
Até a próxima!
Ah, legal, vou procurar então essa edição da versátil...aliás, você bem que poderia me presentear com o dvd do filme, não? meu aniversário é próximo dia 22 de novembro, rs.
Ficaria muito feliz com o presente, rs!
abraço!
Um dos grandes papéis de Robert Mitchum, assustador por sinal.
Abraço
O tom maquiavélico que Mitchum empresta à sua personagem - tipo "lobo com pele de cordeiro" - faz-me lembrar Joseph Cotten no filme "Shadow of a Doubt" do mestre Hitchcock. Nenhum deles poderá ser considerado "obra-prima" absoluta, mas enquadram-se ambos muito bem na rúbrica "Filmes Para Ver Antes de Morrer"
Saudações
O Rato Cinéfilo
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