domingo, 6 de fevereiro de 2011

Cisne Negro


Assistir é preciso


Quando observada com atenção, a carreira de um cineasta pode revelar algumas de suas obsessões, manias ou simplesmente temas que gosta de abordar. Interessante que uma das primeiras impressões que tive de “Cisne Negro” foi a de que seu diretor, Darren Aronofsky, possui uma certa cisma com autoflagelação. A personagem central, a bailarina Nina Sayers (Natalie Portman), é adepta inconsciente desta prática, assim como o protagonista Randy, de “O Lutador” (filme anterior do diretor), também era adepto da mesma, só que neste caso de forma consciente. Além disso, Nina pratica, ao longo de toda a projeção do longa indicado a 5 Oscars, uma espécie de autoflagelação psicológica ao se determinar a incorporar uma personagem distante de sua própria essência. Sua tortura, ademais, é complementada pelo controle da mãe super-protetora (Barbara Hershey) e consequentemente opressora, a qual também foi bailarina e vê na filha uma chance de sucesso que não conseguiu obter, e as imposições tirânicas e cínicas do diretor e produtor do balé, Thomas Leroy (Vincent Cassel).

É aqui, por outro lado, que reside o cerne deste trabalho perturbador de Aronofsky. Nina ambiciona o papel central da nova montagem de “O Lago dos Cisnes”, o clássico de Tchaikovsky que narra a estória de uma princesa transformada por um encanto em um cisne branco. Para libertá-la do feitiço, é necessário que um príncipe se case com ela. Entretanto, o príncipe acaba seduzido e casando com o cisne negro, irmã do cisne branco, levando esta última, em um ato de desespero, ao suicídio, atirando-se do penhasco. Só que, na montagem planejada pelo diretor Leroy, cisne branco e negro serão interpretados pela mesma bailarina. Para conseguir o papel de protagonista (após a aposentadoria forçada da principal integrante da companhia, interpretada por Wynona Rider-ressurgindo-das-cinzas), Nina então terá de despertar em si aspectos humanos que parecem não lhe pertencer ou estarem reprimidos ao longo dos anos.

Muitos podem atirar pedras na comparação que farei agora, mas essa temática do despertar do “lado negro” já se tornou um tanto cansada no cinema depois de toda a longa série “Star Wars”, que é por muitos vista apenas como filmes rasos que proporcionam uma boa diversão. A saga de Anakin Skywalker trata exatamente deste embate entre o bem e o mal que existe em cada ser humano, conflito este que, ademais, está na base de todas as religiões. Talvez a diferença entre Nina e Anakin esteja no fato de que a primeira deseja ardentemente despertar este seu lado adormecido, enquanto Anakin luta para dominá-lo, mas, eventualmente, acaba sendo vencido pelas circunstâncias que insuflam a sua vertente perversa.


Vale dizer, ademais, que Aronofsky flerta perigosamente com um certo conservadorismo ao deixar nítida a relação entre o lado obscuro e a sexualidade. Nina, possivelmente virgem, é recatada e infantilizada pela mãe (basta observar os detalhes de seu quarto rosa) e sua maior dificuldade em interpretar o cisne negro reside justamente em transmitir uma sensualidade necessária à sua interpretação na dança. A ideia de que sensualidade e maldade estão necessariamente ligadas parece percorrer toda a trama, como se não fosse possível Nina desenvolver melhor sua sexualidade sem despertar aspectos “nefastos” do seu ser. Essa posição de Aronofsky se torna ainda mais nítida com a inclusão da personagem Lilly (Mila Kunis), a rival na disputa pelo papel de cisne branco/negro. Ela se mostra como o natural “cisne negro” da narrativa, com uma sensualidade espontânea, mas também com um caráter dúbio e escorregadio, induzindo Nina, por vezes, a um hedonismo permeado por excessos. Aliás, se à primeira vista a narrativa se mostra confusa e quase indecifrável, com um olhar mais detido percebe-se que estamos diante de uma alegoria em que Leroy, o diretor da montagem, é o príncipe que irá retirar Nina se sua condição de “cisne”, uma bailarina de menor destaque, para a condição de “princesa”, ou seja, a estrela da companhia. Ela então se vê ameaçada por Lilly (teria alguma relação com Lilith, a primeira mulher de Adão?), “o cisne negro” que também quer a condição de princesa e usa suas armas de sedução par atingir tal objetivo. Ou seja, pode soar até como um paradoxo, mas Aronofsky resvala no maniqueísmo ao querer investigar as forças obscuras que existem nas entranhas de cada um.

À parte a existência de um determinado cansaço da temática e da abordagem dotada talvez de um rígido conservadorismo, Darren demonstra mais uma vez ser dotado de um talento ímpar para dirigir filmes. O longa-metragem é tecnicamente perfeito. A forma com a qual o roteiro é desenvolvido (escrito por Mark Heyman, Andres Heinz e John J. McLaughlin), auxiliado por suas fotografia e edição, imprime ao filme um ritmo e clima oníricos, fazendo o público muitas vezes ter dúvidas sobre o que está realmente acontecendo e estabelecendo um horror psicológico cujas raízes remontam a “O Bebê de Rosemary”, clássico de Roman Polansky. O aspecto fotográfico, de autoria de Matthew Libatique, talvez seja, deveras, o mais brilhante. Com alguns closes nos pés da bailarina durante a dança, além de seu rosto durante a execução da mesma, podemos ter a ideia, mesmo que limitada, do enorme grau de dificuldade de uma arte que exige precisão técnica nos passos ao mesmo tempo em que demanda um grande poder performático. Aliás, uma leitura alternativa possível pode levar o espectador a intuir que toda a trama de “Cisne Negro” é uma boa metáfora para a profissão de ator, a qual muitas vezes exige que seus profissionais lidem com emoções e sentimentos estranhos às suas próprias naturezas.


Neste ponto, é importante destacar que o filme não seria absolutamente nada sem a força das atuações. Todo o elenco está impecável (mesmo Vincent Cassel acaba deixando de lado sua tradicional canastrice). Entretanto, este é mesmo o papel da vida de Natalie Portman (pelo menos até agora, pois que ainda é bastante jovem), um daqueles trabalhos que serão lembrados mesmo após décadas. Imagino que ela deve ter-se sentido exaurida após um trabalho que exigiu uma dedicação gigantesca, não apenas no aspecto técnico (já que ela se dedicou verdadeiramente ao balé, emagrecendo vários quilos, mesmo que algumas cenas sejam realizadas por dublês), mas fundamentalmente no emocional. Caso venha de fato a receber o prêmio da Academia, será tão justo quanto foi a premiação de Marion Cotillard em “Piaf – Um Hino ao Amor”. Ela só terá que tomar muito cuidado de agora em diante, pois nem todo mundo é um Marlon Brando capaz de interpretar ao menos uns cinco papéis inesquecíveis ao longo da carreira. As comparações com ela própria serão inevitáveis a partir deste ponto. Aliás, Aronofsky parece mesmo ser um mestre em conceber longas que possibilitem aos atores estas “epifanias”, tal como também ocorreu com Mickey Rourke no citado “O Lutador”.

Com tantos aspectos primorosos, é inevitável que o espectador embarque na trama, deixando-se levar pelos transtornos de Nina, mesmo que não seja uma experiência fácil ou agradável. Afinal, várias são as sequências fortes e impactantes (como a já polêmica cena de lesbianismo), o que pode levar muitos a rejeitarem o filme, principalmente o público feminino. Se, por um lado, Darren Aronofsky parece apresentar um desgastado tema apenas sob uma nova roupagem (mais “cabeça”, digamos assim) e surgindo até simplório em alguns momentos (ao associar sensualidade com desvios de caráter), por outro não se pode negar a força do resultado desta obra que se mostra singular em muitos aspectos. A verdade é que impossível acompanhar a projeção e restar indiferente a ela. Interessante perceber as reações da plateia ao fim da sessão, quando observei que muitos na sala em que assisti saíram com sorrisos nervosos aliados a um grande burburinho que demonstravam que não sabiam dizer exatamente o que tinham visto e se haviam gostado ou não da experiência. Confesso que sou um deles e, desta vez, vou me abster de atribuir uma cotação ou uma nota a este longa peculiar. Há filmes que apenas necessitam ser vistos, mesmo que você venha a gostar deles ou não.


Cotação e nota: abstenção.
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7 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Ótimo texto.

Eu ainda estou sem palavras pra esse filme! Achei um trabalho grandioso, desde já meu favorito do Oscar. O filme é todo perfeito em suas esferas técnicas e, principalmente, interpretativa.

Natalie Portman é deusa aqui, expressa uma interpretação única. A maneira como sua personagem se desnuda, aos nossos olhos, é algo revelador...e a mão cuidadosa de Aronofsky ajuda, ao colocar a personagem aos nossos olhos e sentidos, com todas suas fragilidades e anseios, é assombroso.

O filme pulsa, é todo psicológico. Me arrepiei bastante. A cena em que Nina explode, visualmente e metaforicamente, seu "Cisne Negro" desde já é um momento clássico do cinema moderno.

Belo filme mesmo!
E eu ainda vou ruminá-lo bastante, só assim conseguirei escrever algo sobre ele...

Abs

Fábio Henrique Carmo disse...

É, decididamente, um filme impactante. Mas já li textos interessante desancando, como o de Cid Nader, do Cinequanon. Mas é bom lembrar que ele mesmo admite ter implicância com Aronofsky...

Jaqueline - terapeuta floral disse...

Com certeza tem relação com a Lilith,cheguei até seu blog procurando isso na net.
Leia O LIVRO DE LILITH ,ROBERTO SICUTERI.Na constelar também tem uma belissima interpretaçao astrologica.Lilith é o proprio buraco negro (o surto da personagem),Lilith sao as mulheres castradoras,agressivas e violentas,e seu arquetipo está em varias mulheres (mulheres fálicas).

Fábio Henrique Carmo disse...

Obrigado pelas sugestões, Jaqueline. Interessantes as análises que sugeriu!

Rato disse...

Ainda não vi e acho que não vou ver tão cedo, apesar de ter lido várias críticas a remeter este filme para os universos de Polanski e Cronenberg (dois dos meus cineastas do peito). O que acontece é que Aronofsky me marcou muito negativamente por causa do filme "Requiem For a Dream" (que achei execrável, pelas razões expostas no comentário que fiz no blog do Rato).
Por isso, quando vejo esse nome a minha primeira reação é fugir para bem longe...

O Rato Cinéfilo

Fábio Henrique Carmo disse...

Rato, acredito que, tal como afirmei no texto, esse é um filme que precisa ser visto, mesmo que você não venha a gostar dele. Com certeza, indiferente você não vai ficar.

Heron Xavier disse...

Que filmásso!