domingo, 19 de outubro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira


"Uma coisa sem nome, essa coisa é o que somos"

É muito difícil procurar analisar criticamente um filme que tem por base o texto de uma obra literária que você já leu. Como é sabido, já é longa e desgastante a discussão sobre se é válido adaptar obras literárias para tela do cinema. Muitos afirmam que muito da obra original irá se perder, uma vez que seria impossível transportá-la para a tela grande sem que o material seja mutilado. Além disso, a literatura é uma forma de expressão eminentemente imaginativa. Cada leitor concebe os personagens de uma determinada forma, além das situações apresentadas, o que acaba impregnando a obra literária de uma enorme subjetividade, enquanto que o cinema lança a subjetividade a partir de imagens já previamente concebidas pelo autor. Se isso limita até certo ponto a subjetividade da platéia, por outro lado atiça com mais facilidade suas reações e emoções. Ademais, a vida humana é repleta de imagens. Nossas vidas muitas vezes parecem ser um longo filme, das quais somos os protagonistas inafastáveis.

A verdade é que esse embate entre cinema e literatura me dominou por completo durante a sessão de “Ensaio Sobre a Cegueira”, a adaptação de Fernando Meirelles para a obra do prêmio Nobel de Literatura José Saramago, o único autor em língua portuguesa a receber a honraria até hoje. Eu, como um dos admiradores do romance do escritor português, aguardei ansiosamente, ao mesmo tempo que “medrosamente”, a adaptação para as telonas desde que o projeto foi anunciado. A promessa era boa, pois que Meirelles é um diretor descompromissado com os interesses do cinema de mercado, além de ser um cineasta que leu a obra em sua língua natural, e não através de traduções (as quais sempre acabam perdendo algo da obra original). O filme acabou tendo sua premiére mundial no festival de Cannes deste ano, gerando simpatias e antipatias imediatas. A versão que chega ao circuito comercial restou diferente da exibida em Cannes e também das pré-exibições de teste realizadas no Canadá, as quais levaram uma parte do público a se retirar da sala de exibição na seqüência do estupro coletivo.

Mas, voltando ao meu dilema pessoal: já faz algum tempo que resolvi estabelecer como parâmetro para classificar um filme que se baseia em uma obra literária como bom ou ruim não o apego excessivo do roteiro ao texto original, mas sim a fidelidade do primeiro aos sentimentos e idéias que o segundo tenta transmitir. A essência em detrimento da forma, portanto. Mesmo assim, a tarefa não é fácil. Ainda mais quando se trata de uma obra extremamente complexa como é “Ensaio Sobre a Cegueira”. De qualquer forma, prometo que até o fim desta resenha chegarei a uma conclusão.

Se você não leu o livro e nem acompanhou as notícias do filme ao longo dos últimos meses, “Ensaio Sobre a Cegueira” trata de uma epidemia de uma estranha cegueira branca (“um mar de leite”) que contamina toda uma cidade indefinida (ou talvez um país ou o mundo inteiro, não se sabe ao certo). Devido ao alto contágio da doença, as autoridades resolvem isolar os infectados em um antigo manicômio abandonado, surgindo ali um microcosmo da sociedade onde, com o passar do tempo, as relações vão se tornando cada vez mais animalizadas. Apenas uma mulher continua a enxergar e ela começa a se sentir responsável por todos os outros que se tornaram limitados pela incapacidade visual. Vários são os subtextos apontados ao longo dos anos para a trama engendrada por Saramago. Alguns falam de sua defesa do socialismo, da dominação por aqueles que encontram algum instrumento de poder, da relação masculino x feminino... Na realidade, mesmo com todas essas metáforas plausíveis, creio que Saramago busca encontrar o humano, este ser que se encontra perdido em meio a sentimentos daninhos como a ganância, egoísmo, cobiça, opressão. Existem até mesmo elementos bíblicos a serem observados, já que o apóstolo Paulo converteu-se ao cristianismo após uma cegueira momentânea gerada por uma forte luz.

Transpondo estas idéias para as telas, Meirelles optou, para imergir o espectador também em um ambiente repleto de uma cegueira branca, por usar uma fotografia onde o branco predomina de forma abundante, que restou cinematograficamente muito interessante, muito embora a cor branca transmita uma idéia de “limpeza” que destoa do mundo caótico e imundo que Saramago descreve no livro. Apenas na seqüência do estupro coletivo e em uma certa cena no depósito de um supermercado temos a predominância dos tons escuros na fotografia. Por sinal, a tão comentada seqüência do estupro, que teria sofrido cortes por afastar o público das salas (segundo declarações do próprio Meirelles), resultou menos prejudicada do que vinha imaginando. Creio que o que é mostrado é suficiente para traduzir a atrocidade da situação. Mais do que isso poderia se tornar desnecessário. O público é inteligente, não precisa de tudo escancarado para entender os fatos narrados.

Um ponto que me trouxe incômodo foi a pressa do roteiro (escrito por Don McKellar) em chegar à situação do isolamento. O filme se beneficiaria de mais alguns minutos mostrando o contágio da população e, principalmente, apresentando os personagens que, mais tarde, exercem papel de destaque, como a Rapariga dos Óculos Escuros (interpretada por Alice Braga) e o Velho da Venda Preta (Danny Glover). Mesmo o Médico (Mark Ruffalo) tem sua vida e características apresentadas de maneira muito rápida. Ao longo do filme, a força e relação entre esses personagens acabam fazendo falta. Assim, o roteiro acaba por apresentar um lado “thriller” que talvez seja um “tique” do diretor brasileiro, já que o mesmo acostumou-se demasiadamente ao gênero. Mas, se a introdução é mais comprometida, alguns outros momentos também acabaram prejudicados, como a seqüência em que as mulheres tomam banho de chuva juntas (no livro a cena é mais longa, bela e emocionante). É bom que se diga: como um todo, uma meia hora a mais de duração cairia muito bem.

Por outro lado, não se pode negar que o cinema trouxe alguns benefícios para a obra. Meirelles é um excelente artífice de imagens. Além da “fotografia branca”, ele nos traz vários enquadramentos marcantes, que acabaram acrescentando uma maior carga emocional ou até mesmo crítica ao texto. A seqüência em que [SPOILER]o primeiro cego recupera a visão resultou belíssima (belo momento interpretativo de Yusuke Iseya, que não tinha me parecido muito convincente no restante do longa)[FIM DO SPOILER], algo que somente pode ser concebido através do cinema. E a idéia de diretor de [SPOILER] colocar as instruções apresentadas aos confinados através de uma televisão foi mesmo genial (no livro as instruções são passadas através de um sistema de som) [FIM DO SPOILER]. E, é bom ressaltar, há ocasiões em que imagens valem mais que 1000 palavras. O maior exemplo disso no longa são as cenas da cidade devastada (São Paulo como jamais alguém viu antes). Por mais que possamos imaginar ao ler o livro como é uma cidade habitada por semi-zumbis, o impacto das imagens não possui equivalente.

O filme conta ainda com boas atuações de Alice Braga, Mark Ruffalo e Gael Garcia Bernal (como o “rei” da ala 3). Mas quem rouba a cena mesmo é Julianne Moore, como a mulher do médico (até mesmo pela importância que lhe é atribuída pelo texto). Confesso que nunca fui muito fã dela (estou fugindo à regra, eu tenho consciência disso), mas Julianne realmente ficou perfeita na pele da personagem. E é interessante como sempre imaginei a personagem no livro com uma aparência semelhante à da atriz. Já Danny Glover, apesar de seu talento, acaba tendo pouca chance durante a projeção, já que o roteiro, de maneira até inexplicável, acabou diminuindo a participação do seu personagem. Uma pausa para um comentário adicional: não vi qualquer problema nas pequenas narrativas em “off” na voz de Glover em momentos específicos do longa. Alguns críticos diziam que soava “redundante” e “piegas”. Talvez por desconhecerem o livro não saibam que são trechos narrativos do mesmo. Essa implicância me pareceu coisa de “crítico chato” que, por não ter algo melhor a dizer, acabou falando bobagem (como costuma acontecer com freqüência, vale dizer).

Mas, você deve estar se perguntando, “e aí? O filme é bom ou ruim?”. Vamos à reposta que prometi algumas linhas acima: “Blindness” é um filme que tem problemas, como já salientado acima. Entretanto, antes de escrever esta resenha, conversei com algumas pessoas que viram o filme sem ter lido o livro antes. A impressão delas foi muito positiva e isso significa que o filme alcançou seu intento, qual seja, transportar o impacto e emoção do livro para a tela grande. Eu mesmo cheguei a me emocionar em algumas cenas e, se um filme consegue produzir isso mesmo em quem de antemão já conhecia todas as nuances de sua trama, ele com certeza é dotado de muitos méritos. De qualquer forma, o melhor crítico-juiz deste longa é José Saramago, sem dúvida. E é bom você saber que o Nobel de literatura chorou ao fim da sessão.

Cotação: **** (quatro estrelas).
Nota: 9,0
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4 comentários:

Unknown disse...

Oi, Fábio! Estou passando por aqui...

Sobre a resenha... Interessante. E eu nem li o livro, talvez gostasse muito do filme. Mas nem fui ver pq ultimamente estou preferindo os filmes mais "alegres".

Espero que esteja tudo bem por aí. Abraço pra vc. Saudade dos papos no msn. =)

Fábio Henrique Carmo disse...

Oi,Luciana. Eu até mandei hoje um e-mail pra vc perguntando como estão as coisas.

Bem, o filme não é exatamente "triste" pois tem um teor muito positivo em seu final. Aconselho a conferir. Um abraço e um beijo!

Rodrigo Mendes disse...

Hj eu fiquei triste.

A prova que o mundo esta ficando burro é alguém como Geisy Arruda lançar a sua biografia.

A literatura sem Saramago nunca mais será a mesma.

Bela resenha. Tenho o filme é acho explêndido.

Abs.

Fábio Henrique Carmo disse...

Rodrigo, como pode ler na resenha, considero o filme inferior ao livro, não por ser mais sintético, mas por ser menos impactante. De qualquer forma, é acima da média e vale mesmo à pena.

Abraço!