Aborto é, de fato, um dos temas mais complexos em debate nos dias que correm. Longe de ser apenas uma questão religiosa (quem afirma isso está sendo extremamente simplório) o tema mexe com aspectos também filosóficos, morais, éticos, jurídicos e mesmo científicos, já que a ciência até hoje não conseguiu resolver o centro dessa discussão: quando começa a vida de um ser humano? Será a partir da fecundação? Ou seria partir da nidação (fixação do óvulo fecundado no útero)? Alguns afirmam que seria a partir do início da formação do sistema nervoso central, entre outras hipóteses. Até mesmo a formação cultural de cada indivíduo acaba por influenciá-lo em sua posição relativa ao tema, um verdadeiro vespeiro, não há como negar. E é nesse vespeiro que Cristian Mungiu resolveu se meter com seu “4 meses, 3 semanas e 2 dias”.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2007, o filme é mais um dos grandes representantes do cinema romeno atual. Mas, ao contrário de outras produções do país de Nadia Comaneci, geralmente com um tom leve e bem-humorado (como “A Morte do Senhor Lazarescu”, de Cristi Puiu), Mungiu nos oferece uma obra pesada, áspera, tanto quanto o tema que pretendeu abordar. Assim, de antemão os espectadores devem estar avisados que não estão diante de uma versão romena de “Juno”, a famosa produção com Ellen Page que concorreu a vários Oscars este ano. O longa sequer possui trilha sonora e toda ação transcorre ao longo de um único dia nas vidas de Otilia (interpretada por Anamaria Marinca) e Gabriela (Laura Vasiliu), amigas que dividem o mesmo quarto na república estudantil onde moram.
A primeira cena já nos mostra um despertador em cima de uma mesa, elemento que faz o espectador perceber que o tempo terá uma influência significativa ao longo da projeção. As duas amigas planejam realizar algo que não pode ser dito abertamente, isso fica claro desde o início. Com uma câmera nervosa, que acompanha os passos das protagonistas em longos planos-seqüência (e também quase sempre fixada em seus rostos, estejam elas sentadas ou em pé), Mungiu nos mostra o caminho tormentoso das jovens numa Romênia (o ano é o de 1987), que ainda se vê às voltas com a carência de itens de consumo típicos do mundo capitalista. Não é necessário ser muito inteligente para entender que caminho tormentoso estou mencionando. Gabriela está grávida e procura fazer um aborto, sendo ajudada por Otilia. Falar mais do que isso sobre o roteiro do longa se torna perigoso, pois posso acabar revelando elementos da narrativa que, preferencialmente, não devem ser conhecidos por aqueles que ainda não a viram. O que posso mencionar é que o roteiro fará com que a platéia repense constantemente seus julgamentos, sejam eles “conservadores” ou “liberais”.
Alguns afirmam que a posição do diretor romeno resulta contra a uma Romênia antiquada, não apenas com relação ao sistema político-econômico, mas também com relação aos seus valores. Essa visão me parece extremamente simplista. Mungiu, em nenhum momento parece agir apaixonadamente. E as circunstâncias passadas pelas mulheres ao longo da trama, até mesmo no seu final (bastante irônico e sutil), poderiam resultar críveis em várias sociedades, seja a brasileira, americana, sueca, francesa, japonesa...
Talvez o grande tema de “4 meses, 3 semanas e 2 dias” seja a questão da responsabilidade. Em vários momentos do filme, os personagens são levados a se defrontar com a realidade de que todos aqueles eventos e situações são resultado de suas ações, sejam elas pensadas ou não. E, sob este aspecto, a obra se mostra extremamente feliz. Por mais que muitos tentem negar, uma gravidez indesejada é resultado de nossas escolhas. Vale dizer: toda nossa vida é feita de escolhas. Até os alimentos que você consome hoje trará conseqüências, seja num futuro próximo ou distante. E é interessante ver até que ponto pode ir um ser humano buscando fugir das responsabilidades decorrentes de suas atitudes. O individualismo exacerbado acaba por admitir que possamos nos livrar de um outro ser humano, mesmo que ainda em fase de formação, apenas com o intuito de não assumir uma responsabilidade para com ele. É como nos discurso tosco das feministas: “o corpo é da mulher e ela tem o direito de fazer o que quiser com ele”. Resposta: o corpo também era dela quando foi pra cama com um homem. A não ser que ela tenha sido estuprada, ninguém a obrigou a ter relações sexuais e hoje existem inúmeras formas contraceptivas aptas a evitar uma gravidez. Transformar o aborto em mais uma dessas formas é de um egoísmo monstruoso. Você deve estar pensando: “esse aí é contra a legalização do aborto”. Sim, sou inteiramente contra, pelo mesmo motivo que sou contra a pena de morte. Não pode ser dado a um ser humano tirar a vida de outro. E minha posição não tem origem religiosa, mas filosófica, moral e ética.
Mongiu, todavia, parece não querer assumir posições. Ele nos mostra a narrativa de forma objetiva e, ao fim da sessão, todos podem tirar suas próprias conclusões pró ou contra aborto. As ações dos personagens parecem se desenvolver sem qualquer interferência do cineasta. É como se estivéssemos ali assistindo, de forma privilegiada, aos fatos vivenciados pelas garotas, sem as mesmas tenham conhecimento disso. "A vida apenas, sem mistificação", como no famoso poema de Carlos Drummond de Andrade que coloquei como epígrafe desta resenha. Muito embora, em determinada seqüência (bastante forte, diga-se de passagem) eu tenha sentido que o diretor assume uma posição, a qual entendi próxima à minha. Mas será que entendi assim devido à minha prévia posição anti-aborto? Essa é exatamente a grande riqueza da película. Não trazer respostas prontas e desenrolar situações que podem fazer o assistente tomar ou não um partido. Muitos antes de oferecer respostas, nos traz questionamentos.
Contudo, um certo aspecto, até simples de ser resolvido, acabou me incomodando durante a projeção. O corpo magrinho de Laura Vasiliu está incoerente com o tempo de gravidez de sua personagem. Parece um aspecto banal, mas a verdade é que se trata de algo que qualquer espectador médio percebe. E isso incomoda. Acaba, em certos momentos, fazendo com que percamos a credibilidade nas cenas, apesar da grande atuação das duas protagonistas. E isso acaba tirando alguns pontos na minha cotação. De qualquer forma, o prêmio em Cannes lhe caiu muito bem.
Cotação: ****1/2 (quatro estrelas e meia)
Nota: 9,5.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2007, o filme é mais um dos grandes representantes do cinema romeno atual. Mas, ao contrário de outras produções do país de Nadia Comaneci, geralmente com um tom leve e bem-humorado (como “A Morte do Senhor Lazarescu”, de Cristi Puiu), Mungiu nos oferece uma obra pesada, áspera, tanto quanto o tema que pretendeu abordar. Assim, de antemão os espectadores devem estar avisados que não estão diante de uma versão romena de “Juno”, a famosa produção com Ellen Page que concorreu a vários Oscars este ano. O longa sequer possui trilha sonora e toda ação transcorre ao longo de um único dia nas vidas de Otilia (interpretada por Anamaria Marinca) e Gabriela (Laura Vasiliu), amigas que dividem o mesmo quarto na república estudantil onde moram.
A primeira cena já nos mostra um despertador em cima de uma mesa, elemento que faz o espectador perceber que o tempo terá uma influência significativa ao longo da projeção. As duas amigas planejam realizar algo que não pode ser dito abertamente, isso fica claro desde o início. Com uma câmera nervosa, que acompanha os passos das protagonistas em longos planos-seqüência (e também quase sempre fixada em seus rostos, estejam elas sentadas ou em pé), Mungiu nos mostra o caminho tormentoso das jovens numa Romênia (o ano é o de 1987), que ainda se vê às voltas com a carência de itens de consumo típicos do mundo capitalista. Não é necessário ser muito inteligente para entender que caminho tormentoso estou mencionando. Gabriela está grávida e procura fazer um aborto, sendo ajudada por Otilia. Falar mais do que isso sobre o roteiro do longa se torna perigoso, pois posso acabar revelando elementos da narrativa que, preferencialmente, não devem ser conhecidos por aqueles que ainda não a viram. O que posso mencionar é que o roteiro fará com que a platéia repense constantemente seus julgamentos, sejam eles “conservadores” ou “liberais”.
Alguns afirmam que a posição do diretor romeno resulta contra a uma Romênia antiquada, não apenas com relação ao sistema político-econômico, mas também com relação aos seus valores. Essa visão me parece extremamente simplista. Mungiu, em nenhum momento parece agir apaixonadamente. E as circunstâncias passadas pelas mulheres ao longo da trama, até mesmo no seu final (bastante irônico e sutil), poderiam resultar críveis em várias sociedades, seja a brasileira, americana, sueca, francesa, japonesa...
Talvez o grande tema de “4 meses, 3 semanas e 2 dias” seja a questão da responsabilidade. Em vários momentos do filme, os personagens são levados a se defrontar com a realidade de que todos aqueles eventos e situações são resultado de suas ações, sejam elas pensadas ou não. E, sob este aspecto, a obra se mostra extremamente feliz. Por mais que muitos tentem negar, uma gravidez indesejada é resultado de nossas escolhas. Vale dizer: toda nossa vida é feita de escolhas. Até os alimentos que você consome hoje trará conseqüências, seja num futuro próximo ou distante. E é interessante ver até que ponto pode ir um ser humano buscando fugir das responsabilidades decorrentes de suas atitudes. O individualismo exacerbado acaba por admitir que possamos nos livrar de um outro ser humano, mesmo que ainda em fase de formação, apenas com o intuito de não assumir uma responsabilidade para com ele. É como nos discurso tosco das feministas: “o corpo é da mulher e ela tem o direito de fazer o que quiser com ele”. Resposta: o corpo também era dela quando foi pra cama com um homem. A não ser que ela tenha sido estuprada, ninguém a obrigou a ter relações sexuais e hoje existem inúmeras formas contraceptivas aptas a evitar uma gravidez. Transformar o aborto em mais uma dessas formas é de um egoísmo monstruoso. Você deve estar pensando: “esse aí é contra a legalização do aborto”. Sim, sou inteiramente contra, pelo mesmo motivo que sou contra a pena de morte. Não pode ser dado a um ser humano tirar a vida de outro. E minha posição não tem origem religiosa, mas filosófica, moral e ética.
Mongiu, todavia, parece não querer assumir posições. Ele nos mostra a narrativa de forma objetiva e, ao fim da sessão, todos podem tirar suas próprias conclusões pró ou contra aborto. As ações dos personagens parecem se desenvolver sem qualquer interferência do cineasta. É como se estivéssemos ali assistindo, de forma privilegiada, aos fatos vivenciados pelas garotas, sem as mesmas tenham conhecimento disso. "A vida apenas, sem mistificação", como no famoso poema de Carlos Drummond de Andrade que coloquei como epígrafe desta resenha. Muito embora, em determinada seqüência (bastante forte, diga-se de passagem) eu tenha sentido que o diretor assume uma posição, a qual entendi próxima à minha. Mas será que entendi assim devido à minha prévia posição anti-aborto? Essa é exatamente a grande riqueza da película. Não trazer respostas prontas e desenrolar situações que podem fazer o assistente tomar ou não um partido. Muitos antes de oferecer respostas, nos traz questionamentos.
Contudo, um certo aspecto, até simples de ser resolvido, acabou me incomodando durante a projeção. O corpo magrinho de Laura Vasiliu está incoerente com o tempo de gravidez de sua personagem. Parece um aspecto banal, mas a verdade é que se trata de algo que qualquer espectador médio percebe. E isso incomoda. Acaba, em certos momentos, fazendo com que percamos a credibilidade nas cenas, apesar da grande atuação das duas protagonistas. E isso acaba tirando alguns pontos na minha cotação. De qualquer forma, o prêmio em Cannes lhe caiu muito bem.
Cotação: ****1/2 (quatro estrelas e meia)
Nota: 9,5.
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