domingo, 26 de outubro de 2008

Última Parada 174

Manipulação

Um antigo comercial (quem está na casa dos 30 já tem condições de lembrar dele) comparava o produto do anúncio com aqueles que tentavam copiá-lo. Seu bordão acabou se tornando imediatamente reconhecido, caindo na boca do povo: “parece, mas não é”. Todos usavam essa frase no dia a dia, sempre que surgia alguma situação em que o cidadão se deparava diante de algo que parecia ser verdade, mas não era.

E não é que esse bordão publicitário cai como uma luva para “Última Parara 174”, o novo longa do diretor Bruno Barreto? Ao longo de toda a projeção, fiquei sempre com aquela sensação de estar vendo algo que deseja ser realidade, mas que, todavia, não consegue. A impressão que fica é a de estarmos vendo um episódio televisivo de “Cidade dos Homens”, a conhecida série exibida pela Rede Globo, apenas um pouco mais violento do que o habitualmente exibido na TV dos Marinho. Infelizmente, a minha previsão (feita há algumas semanas, aqui mesmo neste blog) de que veria na tela uma ficção querendo se passar por realidade acabou se confirmando.

E isso porque toda trajetória do personagem Sandro do Nascimento (interpretado de forma vacilante pelo estreante Michel Gomes) tal como retratada nas telas não pode ser tratada por outro nome além de ficção. Como é sabido de todos, Sandro foi o principal personagem da famosa tragédia do ônibus da linha 174 do Rio de Janeiro. Todos acompanharam, ao vivo e em rede nacional, o desenrolar daqueles acontecimentos sombrios que culminaram na morte da professora Geíza, vítima não apenas de Sandro, mas também da incompetência da operação policial. Posteriormente, o país veio a saber que Sandro havia sido menor de rua, um dos sobreviventes da chacina da Candelária, o que acabou por reacender o debate sobre a responsabilidade do Estado e da sociedade diante do surgimento de criminosos como este. Claro que Sandro não poderia ser tratado apenas como uma vítima da sociedade, mas é inegável que esta lhe deu pouquíssimas oportunidades e caminhos a escolher.

Naturalmente, claro que uma história como essa seria um prato cheio para abordagens no cinema. Contudo, o seu resultado sempre estará condicionado ao talento e intenções daquele que está por trás das câmeras. Intenções, sim, porque Bruno Barreto, passando distante de tentar entender os fatos que conduziram àquele desfecho que tão bem retratou o Brasil contemporâneo, parece apenas querer “emocionar” o público, manipulando-o, fazendo-o o tempo todo sentir pena de um personagem que não precisa de manipulações para que tenhamos pena dele. A história de Sandro fala por si só. Não necessita de adornos.

O roteiro, escrito por Bráulio Mantovani (de “Cidade de Deus”) tem seus méritos. Mas estes méritos residem exatamente nos encadeamento de fatos destinados a fazer o público sair dolorido da sala de projeção. Ou seja, Mantovani fez muito bem o que pretendia o diretor. O problema está no que este pretendia ao criar fatos e personagens irreais para acentuar o melodrama ou para fazer com que o público crie laços com o protagonista. Torna-se muito desagradável assistir a um filme em que você simplesmente não sabe o que é verdade ou é simplesmente invenção dos seus mentores para lhe fazer chorar ou sair revoltado após duas horas de exibição.

Interessante que, através de um documentário, gênero que justamente relega as emoções e romantizações para um segundo plano, já que em primeiro está a busca da realidade de um fato ou pessoa objeto do estudo, José Padilha (diretor de Tropa de Elite) tenha alcançado estes dois efeitos, levando o espectador, com seu “Ônibus 174” (um dos melhores documentários a que já assisti) a se emocionar e refletir apenas tentando mostrar os fatos tal como eles realmente aconteceram. E Barreto, mesmo com toda sua manipulação, deixa muito a desejar em ambos os quesitos. Talvez tenha ainda algum sucesso na reflexão social. As seqüências que mostram os menores dormindo nas ruas logo nos fazem lembrar que uma sociedade que permite crianças e adolescentes vivendo sem eira nem beira não pode ser levada a sério. Será que alguém que cresce desta forma pode ter um destino realmente diferente daquele de Sandro do Nascimento?

Com relação aos aspectos técnicos, nada a reclamar. Boa fotografia acompanhada de um bom som, o qual não fará os espectadores reclamarem de não terem entendido o que os personagens falavam. Afinal, um filme que já nasceu com projeto de Oscar no seu DNA não poderia pecar em seus aspectos técnicos. E aqui chegamos a mais um ponto nevrálgico deste longa. A comissão que selecionou “Última Parada 174” como o concorrente brasileiro à premiação da Academia em 2009 estava pensando exatamente em suas qualidades quando assim decidiu? Ou estaria atendendo ao lobby mais poderoso da cinematografia brasileira, o dos Barreto? Os questionamentos são pertinentes, já que “Tropa de Elite” não foi o escolhido no ano passado por se tratar de um filme “mundo cão”, bastante violento, características que não contam com a simpatia dos eleitores do Oscar na categoria filme estrangeiro. Todavia, o filme em análise compartilha com “Tropa de Elite” esses elementos “mundo-cão-violento” e nem por isso ele deixou de ser escolhido. O que resta claro é a impressionante influência da família Barreto em nosso meio cinematográfico, já que ela conseguiu emplacar até o medíocre “O Quatrilho” (e que, é bom lembrar, acabou ficando com uma das 5 indicações finais).

Dia desses, estava lendo uma matéria em uma revista semanal sobre a ausência de público para os filmes nacionais. Ora, como se pode exigir presença de espectadores nas salas com filmes dessa qualidade? “Se o filme brasileiro que concorre ao Oscar é apenas isso”, pensa o incauto assistente ao sair da sala, “que dirá o resto”. E assim, o som das pás enterrando um caixão, que se ouvem ao fim de “Ùltima Parada 174”, poderia ser o som do enterro do cinema brasileiro, um eterno morto-vivo que se levanta da cova de tempos em tempos.

Cotação: **1/2
Nota: 6,0 (estou querendo ter pelo menos um pouquinho de boa vontade com o nosso “indicado”).
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