A guerra é mal-cheirosa
Nesses tempos de verão norte-americano, em que os blockbusters começam a se apinhar nas salas de cinema do mundo inteiro, costumo procurar alguma obra que fuja desse padrão. A tarefa muitas vezes se torna árdua, mas, com paciência e um pouco de informação, é possível se deparar com algumas pérolas até surpreendentes em uma cidade de salas escassas como Natal. Foi exatamente isso que aconteceu esta semana quando, ao verificar a programação das salas de cinema, constatei um tanto surpreso que o Moviecom Praia Shopping (e faço aqui a publicidade gratuita, pois iniciativas assim sempre são bem-vindas) iria exibir “Alexandra”, o mais recente produto do mestre russo Alexander Sokurov (de “Arca Russa”). Entre assistir a “Anjos e Demônios”, mais um da safra hollywoodiana de veraneio, e este exemplar de uma das melhores escolas de cinema do globo, embora pouco vista, não hesitei em optar pela segunda alternativa e passar por um processo para me livrar da intoxicação decorrente da excessiva exposição ao cinemão pipoca.
Assim, saiu o ritmo dos carros de F1 típico das películas USA e entraram os tempos lentos do cineasta russo. Algo que, para aqueles dopados pela frivolidade reinante nos nossos dias, deve soar chato e entediante. O filme também contrasta com a mania da juventude eterna da sociedade século XXI ao nos apresentar uma protagonista idosa, no mínimo septuagenária, que transita em uma base militar russa na Chechênia com seus passos titubeantes, sua dificuldade para se levantar de uma cadeira ou subir e descer degraus mais altos. O contraste entre a simpática, mas também ranzinza, velhinha Alexandra Nikolaevna (interpretada por Galina Vishnevskaya) em meio àquele campo de jovens soldados é uma das ideias mais peculiares do cinema recente. E Sokurov acentua ainda mais a situação através de close-ups alternados entre o rosto de Alexandra e dos militares, alguns deles recrutas com apenas 20 anos. Visitando o neto que é oficial do exército russo e não vê há 7 anos, a imagem de uma vovó naquele ambiente rústico, frio e mecânico é marcante , e o filme já valeria à pena somente por esse registro imagético.
Todavia, Sokurov não se limita a expor esse contraste. O seu longa também soa antagônico ao gênero “guerra” popularizado por Hollywood, a qual costuma glamourizar e espetacularizar as cenas de batalha, numa constante explosão de sangue pingando na tela, principalmente nesses tempos pós 30-minutos-iniciais-de- O Resgate do Soldado Ryan. Não que esta forma de mostrar a guerra não tenha seus méritos (o próprio “Ryan” é um bom filme), mas a fórmula já se tornou cansativa e meramente comercial, e esse costume de pensar que o público é uma eterna criança que quer sempre ver mais do mesmo irrita qualquer cidadão com um mínimo de bom senso. Assim, o diretor russo nos mostra que nem só de tiros e bombas vivem as guerras. A guerra pode ser algo mal-cheiroso, como o tanque em que Alexandra entra acompanhada de Denis, seu neto; ou pode ser algo rotineiro, como quando Denis narra como são levadas as roupas na base militar. Ou seja, um ofício repetitivo como qualquer outro, com a diferença apenas de que os solados deveriam receber um adicional de periculosidade pelo seu trabalho.
Mas Sokurov não para por aí. Ele parece querer nos mostrar que guerra também pode resultar em convívio. Em dado momento, Alexandra deixa a base para comprar mantimentos no mercado da cidade chechena vizinha. Lá não é vista como invasora, mas antes de tudo como uma visitante, muito embora tal atitude seja mais destacada entre os mais idosos. Os jovens chechenos parecem nutrir uma relação de desconfiança diante da “intrusa”, muito embora alguns não a rejeitem totalmente. Mas nada de discursos inflamados ou discussões acaloradas. A rejeição é mostrada por meio de silêncios, olhares atravessados ou palavras diretas, embora respeitosas, com quando um dos rapazes que a acompanha até a base questiona: “por que vocês de São Petersburgo não nos dão a liberdade?”. Questionamento simples, mas eficaz.
Com momentos simples, ternos e visualmente belos, como na cena em que o neto oficial militar faz uma trança nos longos cabelos da avó, “Alexandra” é uma ode ao cinema contido, distante da espetacularização comum dos multiplexes, ainda mais por termos sempre a sensação de que assistimos a gente de verdade na tela. Sokurov nos mostra que não precisamos ver mais filmes que nos mostrem o que já é por demais jogado em nossos olhos, todos os dias, pelas redes de televisão. Existem outras nuances, existem outros caminhos para o cinema neste tema. O diretor russo parece dizer que não é necessário mostrar corpos destroçados para dizer que a guerra fede. Retratar seres humanos carentes ou mecanizados pode ser uma dessas formas.
Cotação: * * * * (quatro estrelas)
Nota: 9,0
Assim, saiu o ritmo dos carros de F1 típico das películas USA e entraram os tempos lentos do cineasta russo. Algo que, para aqueles dopados pela frivolidade reinante nos nossos dias, deve soar chato e entediante. O filme também contrasta com a mania da juventude eterna da sociedade século XXI ao nos apresentar uma protagonista idosa, no mínimo septuagenária, que transita em uma base militar russa na Chechênia com seus passos titubeantes, sua dificuldade para se levantar de uma cadeira ou subir e descer degraus mais altos. O contraste entre a simpática, mas também ranzinza, velhinha Alexandra Nikolaevna (interpretada por Galina Vishnevskaya) em meio àquele campo de jovens soldados é uma das ideias mais peculiares do cinema recente. E Sokurov acentua ainda mais a situação através de close-ups alternados entre o rosto de Alexandra e dos militares, alguns deles recrutas com apenas 20 anos. Visitando o neto que é oficial do exército russo e não vê há 7 anos, a imagem de uma vovó naquele ambiente rústico, frio e mecânico é marcante , e o filme já valeria à pena somente por esse registro imagético.
Todavia, Sokurov não se limita a expor esse contraste. O seu longa também soa antagônico ao gênero “guerra” popularizado por Hollywood, a qual costuma glamourizar e espetacularizar as cenas de batalha, numa constante explosão de sangue pingando na tela, principalmente nesses tempos pós 30-minutos-iniciais-de- O Resgate do Soldado Ryan. Não que esta forma de mostrar a guerra não tenha seus méritos (o próprio “Ryan” é um bom filme), mas a fórmula já se tornou cansativa e meramente comercial, e esse costume de pensar que o público é uma eterna criança que quer sempre ver mais do mesmo irrita qualquer cidadão com um mínimo de bom senso. Assim, o diretor russo nos mostra que nem só de tiros e bombas vivem as guerras. A guerra pode ser algo mal-cheiroso, como o tanque em que Alexandra entra acompanhada de Denis, seu neto; ou pode ser algo rotineiro, como quando Denis narra como são levadas as roupas na base militar. Ou seja, um ofício repetitivo como qualquer outro, com a diferença apenas de que os solados deveriam receber um adicional de periculosidade pelo seu trabalho.
Mas Sokurov não para por aí. Ele parece querer nos mostrar que guerra também pode resultar em convívio. Em dado momento, Alexandra deixa a base para comprar mantimentos no mercado da cidade chechena vizinha. Lá não é vista como invasora, mas antes de tudo como uma visitante, muito embora tal atitude seja mais destacada entre os mais idosos. Os jovens chechenos parecem nutrir uma relação de desconfiança diante da “intrusa”, muito embora alguns não a rejeitem totalmente. Mas nada de discursos inflamados ou discussões acaloradas. A rejeição é mostrada por meio de silêncios, olhares atravessados ou palavras diretas, embora respeitosas, com quando um dos rapazes que a acompanha até a base questiona: “por que vocês de São Petersburgo não nos dão a liberdade?”. Questionamento simples, mas eficaz.
Com momentos simples, ternos e visualmente belos, como na cena em que o neto oficial militar faz uma trança nos longos cabelos da avó, “Alexandra” é uma ode ao cinema contido, distante da espetacularização comum dos multiplexes, ainda mais por termos sempre a sensação de que assistimos a gente de verdade na tela. Sokurov nos mostra que não precisamos ver mais filmes que nos mostrem o que já é por demais jogado em nossos olhos, todos os dias, pelas redes de televisão. Existem outras nuances, existem outros caminhos para o cinema neste tema. O diretor russo parece dizer que não é necessário mostrar corpos destroçados para dizer que a guerra fede. Retratar seres humanos carentes ou mecanizados pode ser uma dessas formas.
Cotação: * * * * (quatro estrelas)
Nota: 9,0
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