Breno Silveira é, talvez, o melhor contador de histórias do atual cinema brasileiro. É impressionante seu talento em transformar temáticas clichês em narrativas extremamente interessantes e envolventes. O maior exemplo deste seu talento é “2 Filhos de Francisco”. Breno nos mostrou a história real dos cantores sertanejos Zezé di Camargo e Luciano de maneira excepcional, contagiando o público sem jamais descambar para o tentador e fácil caminho do piegas, o que acabou lhe rendendo também o aplauso da crítica. O longa acabou se tornando o maior sucesso do cinema brasileiro no período pós-retomada, com muitos méritos, é bom ressaltar. E olha que o diretor tinha receio de desagradar tanto à crítica quanto ao público, já que, assumidamente, não tinha nenhuma familiaridade com o universo sertanejo.
E é o talento de Breno para contar uma estória que torna “Era Uma Vez...”, seu mais recente projeto, uma experiência bastante interessante. A idéia do longa já era bastante antiga, sendo bem anterior até mesmo ao projeto dos irmãos sertanejos. Começou em 1987, quando foi o diretor de fotografia de “Santa Marta – Duas Semanas no Morro”, do cineasta Eduardo Coutinho. Trata-se de uma nova leitura da mais popular tragédia de William Shakespeare, “Romeu & Julieta”, transpondo o secular e imortal drama para o Rio de Janeiro contemporâneo. Assim, o conflito de famílias é substituído pelo embate de classes sociais, simbolizadas por Dé (Thiago Martins, ele próprio saído de uma favela carioca), o favelado do Morro do Cantagalo e vendedor de sanduíches em um quiosque na praia de Ipanema, e pela patricinha Nina (Vitória Frate, lindinha). Estabelece-se o já costumeiramente abordado confronto morro versus asfalto, tema recorrente nas recentes produções brasileiras. Todavia, a paixão adolescente dá novas cores ao mote já desgastado.
É interessante ver como o roteiro (escrito por Domingos de Oliveira e Patrícia Andrade, ela uma das co-autoras do roteiro de “2 Filhos de Francisco”) soube adaptar o romance às relações sociais e adolescentes (brasileiras, diga-se de passagem) dos anos 2000. Assim, por exemplo, as festas da nobreza são substituídas por raves à beira-mar e bailes funk (só não muda o hedonismo e vazio de ambos os eventos); os beijos e amassos acontecem rapidamente; a violência hoje é estampada através de fuzis AR-15 (em contraposição às espadas e punhais do século XVI). Da mesma forma, a oposição dos pais (Cyria Coentro, mãe de Dé e Paulo César Grande, pai de Nina) não se dá por rivalidades familiares, mas por verem a impossibilidade de sucesso numa relação estabelecida entre integrantes de classes tão distintas, além de preconceitos mútuos. Além disso, alguns outros comentários sociais são inseridos no contexto, como a discussão da vez trazida aos holofotes ano passado pelo super-sucesso “Tropa de Elite”: a promiscuidade hipócrita das classes abastadas com o tráfico reinante nos morros, uma vez que a mesma é maior consumidora do produto fornecido pelos traficantes. Ao mesmo tempo, contando com o talento dos dois jovens atores protagonistas (principalmente Thiago Martins), o lado romântico, por assim dizer, mostra-se bastante cativante. Principalmente porque o roteiro é feliz em estabelecer um passado para Dé e para o seu amor por Nina. O rapaz há muito tempo admirava sua amada através da varanda do apartamento onde ela mora, o qual se situa em frente ao mencionado quiosque onde serve sanduíches.Também muito interessante a relação de Dé com seu irmão, interpretado pelo talentosíssimo Rocco Pitanga, um personagem muito bem trabalhado. Alguns pontos soam artificiais, entretanto, como uma momentânea aceitação do pai da garota (o pouco talento de Paulo César Grande também não contribui...). Apesar dessas falhas, os fatos vão se sucedendo e envolvendo o espectador, contando com algumas reviravoltas que chegam mesmo a surpreender.
Seguro em sua direção, Silveira não deixa cair o ritmo. Os momentos mais tensos são muito bem desenvolvidos e o clímax realmente emociona, no melhor estilo shakespeariano (a cena final causa impacto). A fotografia mostra-se precisa e por vezes belíssima, como na cena em que Dé mostra a Nina a vista que se tem do alto da favela (mas também, convenhamos, seria difícil tornar o Rio de Janeiro feio). E a trilha sonora, com Marisa Monte e Luiz Melodia, é, como já deixo entrever, das mais felizes.
O que eu não entendo é como esse exemplar de bom cinema, simples, mas eficiente, não alcançou um número maior de salas de exibição. É realmente complicado entender a lógica das distribuidoras e exibidores, já que o longa tem um forte apelo ao público mais jovem, o qual, creio eu, dificilmente não será fisgado. E olha que um peso pesado da mídia, Luciano Huck, co-produtor do filme (isso mesmo), andou até fazendo marketing em um dos seus programas das tardes de sábado. Enquanto isso, comédias românticas enjoativas e previsíveis têm sempre o seu espaço garantido. Uma pena, já que “Era Uma Vez ...” nos mostra que o amor, aquele arrebatador dos tempos do bardo inglês, pode estar “démodé”, mas nunca deixará de ser belo.
Obs.1: Durante os créditos, Thiago Martins narra um pouco dos percalços de sua vida (ao som de Luiz Melodia). Percalços bastante similares aos do seu personagem na trama. Não seja apressadinho(a) e confira.
Obs.2: O filme será exibido no Festival de Toronto, na mostra "Cinema Mundial Contemporâneo", juntamente com "Linha de Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas.
Cotação: ***1/2 (três estrelas e meia).
Nota: 8,0.
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