É provável que você já tenha assistido a um do filmes de George A. Romero, o sensacional diretor de filmes como “A Noite dos Mortos-Vivos”, “Dia dos Mortos” e “O Despertar dos Mortos”. Romero é incrível na forma como impregna seus filmes de um enorme contexto sociológico, mesmo que muitas vezes o espectador desavisado apenas perceba um amontoado de zumbis perseguindo aqueles que ainda são “humanos”. O diretor normalmente coloca seus personagens encurralados em algum ambiente “simbólico”, como uma loja, um supermercado ou mesmo um shopping center, como que para representar os privilegiados (os que estão dentro) e os “excluídos” (os que estão fora), estes últimos sempre representando uma “ameaça” aos primeiros. O estilo de Romero se tornou clássico e imitado por muitos.
Pois bem, mesmo que não se possa afirmar que Frank Darabont seja um herdeiro ou imitador de Romero, é nítido que em seu mais recente trabalho, este “O Nevoeiro”, as marcas do cineasta dos zumbis se fazem presentes. Se não há personagens que possamos identificar como “excluídos”, há um subtexto de “ameaça” presente e essa forma mais “imprecisa” de metáfora pode trazer outras conotações. Primeiramente, falemos sobre a trama.
No roteiro, escrito pelo próprio Darabont, vemos um dia logo após uma grande tempestade em uma pequena cidade do nordeste dos EUA. De uma hora para outra, um imenso nevoeiro toma conta de toda a região. Nesse momento, David Drayton (Thomas Jane, de “O Justiceiro”), que estava no centro para comprar alguns reparos e mantimentos para sua casa, a qual sofreu avarias na noite anterior, acompanhado de seu filho Billy (Natham Gamble), encontra-se em um supermercado da localidade. Ambos, juntamente com um grupo de moradores que também faziam compras naquele momento, se vêem confinados pela súbita e espessa névoa que não parece ser um evento rotineiro da natureza. Aos poucos, o fenômeno vai revelando sua verdadeira faceta, aparentando trazer consigo criaturas assassinas. O medo se instala entre as pessoas ali presentes e muitas delas começam a revelar suas piores facetas. É como, resumidamente, é dito pelo personagem de David a certa altura: “somos civilizados desde que as máquinas funcionem e o serviço de emergência atenda”. Darabont, então, estabelece um microcosmo da sociedade, colocando personagens que se tornam representantes de suas diversas faces. Há os solidários, corajosos, egoístas, covardes, a fanática religiosa, o advogado, militares, entre outros tipos. É nesse ambiente de confinamento e com esse microcosmo social que Darabont destila uma afiada crítica a todas essas vertentes humanas. Ele parece disparar uma metralhadora giratória, sobrando tiros certeiros para todos os lados. Da mesma forma que o fanatismo religioso é alvo, o uso irresponsável e sem ética da ciência sofre ataques duros (para citarmos dois exemplos), ou mesmo acabam sobrando tiros para destemidos ou acomodados, ou para qualquer “representante” de arquétipos sociais. Ninguém é poupado. E se Romero costuma brincar com o conceito de luta de classes, como já realçado mais acima através de seus zumbis, as criaturas da névoa parecem representar toda e qualquer forma de ameaça que possam deixar uma comunidade amedrontada: você pode tanto enxergar nelas a violência urbana asfixiante que domina os grandes centros (principalmente dos países “em desenvolvimento”), como também os terroristas que se tornaram a maior preocupação dos países tidos como ricos, entre outras metáforas possíveis.
É interessante notar ainda como Darabont parece ter uma preferência por tramas que se passam em ambientes de confinamento. Os seus dois filmes mais conhecidos, “Um Sonho de Liberdade” e “À Espera de Um Milagre” tem sua ambientação em presídios e, nesta nova produção, temos uma espécie de penitenciária circunstancial. E também parece palpável que sua crença no ser humano esteja diminuindo a cada novo projeto levado às telas. Seu pessimismo com relação à humanidade é mostrado de forma escancarada neste “filme B” inteligente. Aliás, isso parece ser uma perspectiva comum também a Stephen King, o autor dos três livros em que foram baseados os dois filmes de Darabont citados e mais este que aqui se resenha. Confesso que nunca li uma obra de King, mas ele parece mesmo ser mestre nessas situações de claustrofobia. Basta lembrar que “O Iluminado” (o qual se tornaria uma obra-prima cinematográfica nas mãos de Stanley Kubrick), que se passa em um hotel durante o inverno, também estabelece clima semelhante. E King sempre mostra não acreditar muito no ser humano em suas obras cine-adaptadas.
Mas nem só de “experiências sociológicas” vive “O Nevoeiro”. O longa também é muito eficiente enquanto terror. Em vários momentos é possível ter a sensação de também estar naquele supermercado. O clima de medo, sensação de impotência e claustrofobia (ou mesmo de estranheza diante de fatos tão desnorteantes) é passado com extrema eficácia para o espectador. O suspense é angustiante em certas passagens.Com certeza muitos darão pulos da cadeira ao longo da projeção e será possível ouvir aqueles assistentes empolgados, sempre apontando como os personagens devem proceder. Para tanto, a fotografia com câmera nervosa contribui muito e os diversos closes nos rostos dos personagens são muito eficientes para captar suas expressões de temor e angústia. O elenco, obviamente, também se torna fundamental para que adentremos neste clima. Se Thomas Jane se mostra apenas competente como David (mas muito melhor que em “O Justiceiro”, nem se preocupem), aquele que de certa forma conduz a trama, Marcia Gay Harden dá um show com a Sra. Carmody, a fanática religiosa que acaba deixando a situação ainda mais insustentável. Também muito interessante a atriz que faz Amanda (Laurie Holden), personagem que faz par semi-romântico com David que, além de bela, mostra-se bastante eficiente. Um outro aspecto relevante é a quase ausência de trilha sonora, o que talvez gere uma sensação ainda maior de realidade (em dado momento, quando ela surge, até estranhamos sua presença, criando uma sensação mista de tensão e melancolia). Por outro lado, talvez devido ao fato de não contar com um orçamento gigante, alguns efeitos mostram-se não muito eficientes em alguns momentos, muito embora não cheguem a comprometer o resultado final. Prepare-se para sensações fortes. Se você for daquelas pessoas mais impressionáveis, não veja à noite, pois pode ter o seu sono comprometido.
Darabont mostra-se, inclusive, muito corajoso com o desfecho do filme, um verdadeiro risco, sem concessões para um público acostumado a soluções previsíveis ou, ainda, alentadoras. Talvez estejamos finalmente percebendo que ele, realmente, não é apenas mais um diretor de encomendas de Hollywood. Pelo contrário, deixa suas marcas em cada obra, as quais estão se fazendo cada vez mais visíveis, mesmo que por trás de um imenso nevoeiro povoado de monstros.
Cotação: **** (quatro estrelas)
Nota: 9,0.
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