domingo, 28 de setembro de 2008

A Culpa é do Fidel!

Infância x Comunismo

Inevitável a comparação entre este “A Culpa é do Fidel!” e “Persépolis”, do qual tratei na minha última resenha postada neste blog. Inevitável porque ambos tratam de acontecimentos políticos vistos sob a ótica de meninas nos seus 8 ou 9 anos. Se neste último temos a visão da iraniana Marjane Satrapi sobre os principais acontecimentos da história do Irã nos últimos 30 anos, no primeiro acompanhamos a trama ficcional de Anna de la Mesa , uma garotinha francesa, acostumada aos prazeres da vida burguesa, quando seus pais acabam por abraçar a causa comunista (nos tempos de Salvador Allende e guerra do Vietnã) e seu cotidiano vira de ponta-cabeça.

Dirigido por Julie Gavras (filha de Costa Gavras), com roteiro baseado na obra “Tutta Colpa di Fidel!”, da jornalista italiana Domitilla Calamai, vemos com muito bom-humor todas essas transformações na rotina de Anna (Nina Kervel-Bey, encantadora). Estudante de colégio católico, tendo o hábito de passar as férias na casa dos seus avós em Bordeaux e pouca afeita a brincadeiras de “corre-corre” com as demais crianças, imagina-se com que insatisfação ela enxerga a mudança de uma das irmãs de seu pai da Espanha franquista para a casa da família em Paris após a perda do marido vítima da bárbara ditadura então vigente no país ibérico. A crescente proximidade dos pais (interpretados por Stefano Accorsi e Julie Depardieu, filha de Gerard Depardieu) com os “comunistas” também a assusta, já que a sua babá, uma cubana que deixou a ilha desde a revolução promovida por Fidel Castro, afirma que esses “vermelhos barbudos” são o demônio, opinião compartilhada por sua avó. E a situação vai ficando cada vez mais difícil para Anna, já que sua mãe acaba deixando seu trabalho na revista Marie Claire para escrever um livro sobre a liberdade de contracepção feminina, e a família se vê obrigada a mudar para um apartamento de proporções bem mais modestas que a antiga residência. Apartamento este que passa a ser cada vez mais freqüentado pelos tais barbudos que tanto odeia, amigos de seu pai que lutam pela vitória de Salvador Allende no Chile. Ademais, sua antiga babá é substituída por várias outras que vão se sucedendo, todas refugiadas políticas.

Eu, que cresci em uma família cheia de militantes de esquerda, não pude deixar de me identificar com várias passagens do filme. Meu avô, por exemplo, é um comunista convicto e, até hoje, quando em visita aqui em casa, ao ler alguns artigos da Rolling Stone (sempre tem uma no centro da sala), não deixa de apontar os vários “maquinismos burgueses” presentes nestas publicações. Aos olhos de uma criança, tudo isso não passa de uma imensa chatice, que só existe para atrapalhar seus pequenos hábitos, já que ler um gibi de Mickey torna-se proibitivo devido ao caráter “fascista” do personagem (assim como os americanos e o napalm, como diz o irmãozinho de Anna, François, o personagem mais espirituoso do longa). E essa perspectiva, como já salientado mais acima, é mostrada de maneira muito divertida. Várias são as seqüências hilárias e com toques sempre muito inteligentes. Um verdadeiro alívio diante das piadas descerebradas que andam predominando no cinema norte-americano e isso é mais uma prova de que é possível fazer rir com conteúdo.

Ao fazer a comparação com “Persépolis” também não posso deixar de realçar o contraponto sobre um aspecto que deixei explícito no meu texto sobre o longa de Marjane. Se na animação mencionei que em muitos aspectos temos uma visão excessivamente feminina sobre os fatos políticos mostrados, fiquei satisfeito em ver que “A Culpa é do Fidel” não padece do mesmo defeito. Julie Gravas mostra-se realmente capaz de mostrar uma história a partir de uma personagem feminina, sim, mas este aspecto é deixado de lado diante de uma perspectiva sem gênero. O que vemos é o olhar de um ser humano, não de um homem ou uma mulher. E é sempre satisfatório quando um artista consegue atingir esse elevado degrau artístico. Outro aspecto é que “Persépolis” abrange um período bem mais extenso da vida da protagonista, enquanto o longa ora resenhado centra-se em um período de tempo bem mais curto, o que retira o caráter “episódico” que normalmente surge em filmes que procuram abranger um longo espaço de tempo nas vidas de seus personagens.

Entretanto, mais do que o pano de fundo político, o que interessa aqui é a nova visão de mundo que Anna adquire. Antes uma menina egoísta, uma típica “burguesinha” para utilizar o termo usado pelos “comunas”, que sequer conhecia o significado da palavra “solidariedade”, a menina passa, ao longo de tantas novas experiências, a ter uma perspectiva menos limitada, obtusa, da realidade que a cerca. E também mais contestadora. Afinal, se há algo que uma visão “marxista” pode lhe dar é exatamente uma posição mais desafiadora diante do mundo. Emblemática a brilhante cena final em que a pequena Anna parece começar a entender que a palavra “solidariedade”, antes de ser entendida, é para ser vivida. Cena simples e bela como a citada palavra.

Classificação: ***** (cinco estrelas)
Nota: 10,0
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