terça-feira, 8 de novembro de 2011

Contágio



Thriller hipocondríaco televisivo



Em “Traffic” (2000), Steven Soderbergh usou do recurso das narrativas paralelas que apresentam pontos de interseção para tentar dissecar o porquê da quase impossibilidade de erradicação do tráfico de drogas internacional. Contando com elenco estelar e competente, o qual incluiu Michael Douglas, Catherine Zeta-Jones, Benício Del Toro e Don Cheadle, “Traffic” impressionou não apenas por mostrar os meandros da máfia das drogas, como também por conseguir construir sólidos dramas através de personagens muito bem desenvolvidos mesmo dentro de um mosaico de narrativas. A experiência foi tão bem sucedida que rendeu a Sodebergh o Oscar de melhor diretor naquele ano e, diga-se de passagem, com bastante justiça.

Aparentemente, foi procurando repetir o êxito do citado longa-metragem que Soderbergh concebeu este “Contágio” (Contagion), usando dos mesmos recursos de narrativas paralelas que se interligam e elenco de astros tarimbados para situações de forte apelo dramático – além de capazes de levar o público às salas apenas por sua presença na tela. Estão lá Matt Damon, Jude Law, Laurence Fishburne, além das oscarizadas Kate Winslet, Marion Cotillard e Gwyneth Paltrow, cuja morte da respectiva personagem revelada ainda no trailer chegou a causar uma certa polêmica. Afinal, como um material promocional poderia trazer um spoiler dessa magnitude? A verdade é que não se tratou de um spoiler, uma vez que a personagem de Gwyneth, Beth Emhoff, morre logo no início da trama, vítima de um vírus misterioso e altamente contagioso que poderá levar à morte milhões de pessoas ao redor do planeta. Já se percebe, desta forma, que Gwyneth não tem muito tempo em cena, sendo sua participação quase que reduzida a pontas.

Talvez o maior problema de “Contágio” seja o fato de que não apenas a personagem da esposa de Chris Martin tenha um tempo reduzido na tela, mas que praticamente todos os papeis quase se limitam a isso. Tantos são os personagens e ações distintas que não há tempo na projeção nem profundidade no roteiro para que o espectador nutra interesse ou empatia por alguns ou mesmo apenas um deles. Isso acaba resultando, inclusive, em atuações apagadas de todos os envolvidos e acredito que não por culpa dos mesmos, mas, como dito, do roteiro (escrito por Scott Z. Burns, que já havia trabalhado com Soderbergh em “O Desinformante”) excessivamente fragmentado e dispersivo, induzindo o próprio público à dispersão. Tamanho é o emaranhado engendrado que algumas pontas da narrativa ficam simplesmente sem desfecho, como no caso da personagem de Cottilard, a qual some a certa altura da película e depois resta simplesmente esquecida. Sucede que apenas um personagem tem começo, meio e fim, o marido da citada Beth, Mitch Emhoff, mas mesmo este, interpretado por um Matt Damon no piloto automático, é caracterizado com incoerências graves. Ele é aparentemente imune ao novo e letal vírus, mas mesmo assim ninguém se preocupa em estudar seu DNA ou qualquer coisa que o valha. Entretanto, vale dizer que nele se concentra o único núcleo que traz algum interesse dramático, possuindo uma filha adolescente que não pode se relacionar com os rapazes de sua idade devido ao perigo de transmissão da doença. Um outro que ainda aparece com um certo destaque é Jude Law ao interpretar um blogueiro que desafia as autoridades - personagem este que lembra Julian Assange e o seu Wikileaks. Aliás, se ainda sentimos alguma empatia pelos tipos na tela é porque já conhecemos seus intérpretes de longa data, o que facilita bastante uma maior aproximação com o público.


Por outro lado, em um aspecto o filme se mostra bastante eficiente: o de gerar a paranoia na plateia. Com closes em mãos e rostos, além de um roteiro que faz questão de ser didático em esclarecer as formas de transmissão de doenças viróticas, “Contágio” se coloca como um verdadeiro thriller da hipocondria, fazendo cada um da sair da sala de cinema com medo até de passar as mãos no rosto ou apertar a mão de um conhecido (principalmente diante do desfecho que realça à enésima potência a nossa fragilidade). Neste ponto termina lembrando bastante “Epidemia” (Outbreak), longa de Wolfgang Petersen lançado em 1995 (que também contou com astros como Dustin Hoffman e Morgan Freeman) realizado na esteira do pânico gerado pelo Ebola, um outro vírus letal e ainda mais agressivo que o H1N1 que inspirou o trabalho de Soderbergh, não sendo por acaso que o vírus do enredo é denominado MEV-1. Ou seja, parece que essas epidemias cíclicas e inevitáveis acabam gerando sempre algum correspondente cinematográfico disposto a explorar a neurose mundial que sempre vem com elas.

E é também na análise das consequências de uma pandemia desenfreada que reside um dos trunfos do longa, sendo Soderbergh muito feliz em mostrar que certos vícios da sociedade, como o egoísmo e a corrupção, são ainda mais acentuados em situações limite como as apresentadas. E que, mesmo diante do caos, ainda há aqueles que conseguem manter a sanidade e doar seus esforços para a coletividade. Claro, está longe da profundidade de um “Ensaio Sobre a Cegueira” (principalmente da obra literária de José Saramago), mas não se pode negar que há interesse nos conflitos e ideias presentes na narrativa, mesmo que às vezes um tanto rarefeitas.

Muitos afirmam hoje que Steven Soderbergh é um diretor superestimado e que esse seu novo trabalho seria mais um exemplo disso. Não chego a tanto. É inegável que Soderbergh é realmente um ótimo cineasta (seu passado que o diga). Porém, talvez devido ao seu caráter prolífico, acaba por denotar uma visível irregularidade e este “Contágio” faz parte de um dos pontos baixos do eletrocardiograma que se tornou sua carreira. Um produto com uma premissa que poderia render bem mais que o resultado mediano que se vê na tela, o qual, mesmo que não chegue a ser chato, por vezes faz lembrar um filme produzido para a TV. E, sim, tal afirmação significa que não precisa pagar caro para vê-lo no cinema, a menos que você faça o gênero hipocondríaco que sinta prazer em ver suas neuras radiografadas na telona.


Cotação:

Nota: 7,0
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4 comentários:

Unknown disse...

Teu texto tá muito bom, achei esse filme bem medio, acho q daria um 5, achei q a fixação em explorar toda a neurose encima do virus deixa o filme do meio para o final chato e previsivel. Enfim, deixou muito a desejar.

Maxwell Soares disse...

Olá, Fábio.

Parece que essa onda de produções explorando sempre a ideia desta paranoia do fim dos tempos por via de um vírus é uma constante. Lembro-me muito de "Eu Sou a Lenda". E confesso: gostei muito. Vi e li, também, "O Ensaio sobre a Cegueira" e maneira como o livro foi adaptado para o cinema ficou belíssima. Talvez, pela participação, ainda, em vida de próprio Saramago no auxílio a obra. No mais um excelente filme esse, Contágio. Irei vê-lo para dá continuidade e assim linha de filmes. Um abraço, Fábio.

Fábio Henrique Carmo disse...

Celo, não cheguei a achar o filme chato e acho que aborda alguns temas relevantes, daí o meu 7,0. Mas é apenas isso, fica na média.

Maxwell, "Eu Sou A Lenda" é bem bom, na minha visão bem acima deste "Contágio". Gostei mais de "Ensaio Sobre A Cegueira" o livro, mas o filme também é bom.

Abraço e até mais!

Rato disse...

Este "Contágio" foi uma autêntica decepção para mim, talvez muito por culpa do "Ensaio Sobre a Cegueira", esse sim, um modo bastante original de tratar a histeria colectiva.

Saudações
O Rato Cinéfilo