Já havia algum tempo eu pensava em iniciar uma coluna destinada a redescobrir filmes injustiçados. Há diversas obras, grandes ou mais discretas, que, por motivos variados, acabam sendo rejeitados pelo público ou crítica (ou por ambos), quando do seu lançamento. O próprio Cidadão Kane, considerado hoje o melhor filme já feito, padeceu desse mal até que fosse devidamente colocado no panteão das grandes obras da arte cinematográfica. Existem muitas películas que merecem uma revisitada, tirá-las do esquecimento ou atribuir-lhes o valor que merecem. Aqui, dou início à série como o "Guerra e Paz" dirigido por King Vidor em 1956. Segue o texto!
Guerra e Paz
(War And Peace)
A epopeia do rei Vidor
King Vidor foi um dos grandes cineastas da era de ouro de Hollywood, conhecido por suas contribuições com o poderoso produtor David O. Selznick (este foi o responsável por “...E o Vento Levou”, por exemplo).”Duelo ao Sol” é um notório representante desta sua vertente. No entanto, seria injusto dizer que Vidor foi um mero burocrata a serviço do studio system reinante. Martin Scorsese, em sua obra “Um Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano” (documentário para a TV que posteriormente foi transformado em livro), afirma: “Vidor foi provavelmente o mais maleável dos pioneiros do cinema – um dos poucos que foram capazes, repetidas vezes, de convencer os chefões a deixá-lo fazer experiências” . Um exemplo claro de sua visão mais autoral de cinema encontra-se no longa “A Turba”, de 1928, ainda da era do cinema mudo, obra em que expõe uma forte crítica à competição e busca incessante pelo sucesso na sociedade capitalista (bastante atual, não?). De qualquer forma, mesmo quando se prestava a fazer as vontades dos produtores, Vidor deixava lá suas marcas pessoais, aproveitando-se do roteiro para tecer suas críticas, mesmo que de forma mais sutil. É o caso deste “Guerra e Paz”, adaptação para as telas do mais que famoso romance do russo Leon Tolstoi.
Claro que, pela própria grandiosidade da obra na qual se apoia, o filme foi concebido como uma superprodução pelos produtores italianos Carlo Ponti e Dino De Laurentiis (o longa é uma co-produção EUA-Itália), possuindo ecos de “...E O Vento Levou” em várias de suas passagens. Com um orçamento mastodôntico (com a correção da inflação somaria US$ 560 milhões, o que o levaria a ser o filme mais caro de todos os tempos), “Guerra e Paz” possui cenas belíssimas e impressionantes, principalmente nas passagens das batalhas que ocorrem quando da invasão da Rússia pela França de Napoleão. Vemos na tela centenas, talvez milhares de soldados em cada quadro, e é bom lembrar que, naquela época, não havia efeitos de CGI para criar figurantes. Traduzindo em miúdos: em cada cena de multidão havia realmente uma multidão ali, cada qual com suas roupas, armas, cavalos e outros adereços mais. Dá para imaginar o trabalho hercúleo das equipes de figurino e direção de arte? Mas não só de cenas de batalha vive este longuíssima metragem (são 3h28min de projeção). Tudo nele é grandioso. A sequência do primeiro baile de Natasha Rostov é de uma suntuosidade impressionante - tenho pra mim que foi nela que Luchino Visconti se inspirou para conceber seus famosos bailes cinematográficos.
Ademais, os personagens inesquecíveis concebidos por Tolstoi encontram perfeita interpretação na miríade de estrelas escaladas para a empreitada. Estão lá a super-estrela Audrey Hepburn, como a citada Natasha Rostov, dona de uma atuação marcante, sabendo transmitir toda a alegria e imaturidade típicos da fase que vive a personagem (a própria Audrey ainda era bastante jovem à época, contando apenas 27 anos), cheia de impulsos irrefreáveis - como costumam ser as heroínas de Vidor. Seu então marido fora das telas, Mel Ferrer, empresta uma altivez e nobreza marcantes ao príncipe Andrei Bolkonsky; já o astro Henry Fonda está perfeito como Pierre Bezukhov, um humanista e anti-belicista, filho bastardo de um nobre e só reconhecido por este já à beira da morte. Também compõem o cast o ótimo Oscar Homolka, indicado ao prêmio da Academia por sua interpretação do General Kotusov, além de Vittorio Gassman na pele do sedutor Anatole. Também se destacam Hebert Lom, encarnando uma perfeita representação de Napoleão de acordo com a iconografia consagrada, e Anita Ekberg, no auge da beleza, no papel da frívola e adúltera esposa de Pierre. E isso sem falar na linda trilha sonora de Nino Rota (fiel colaborador de Fellini).
Entretanto, é perceptível que Vidor se recusou a fazer uma versão meramente pasteurizada da obra de Tolstoi para agradar as massas, adocicando-o para alcançar bilheterias suficientes para cobrir seu altíssimo custo. Mesmo que alguns possam afirmar que as críticas à aristocracia já estavam presentes na obra original, é de se aplaudir o fato de que Vidor as manteve na película. Talvez a mais notável sequência que demonstra que o filme é uma obra de Vidor, e não meramente uma colagem do livro, é aquela em que Pierre passeia por entre as tropas durante a batalha de Borodino, na realidade uma cena retirada não de Tolstoi, mas de Stendhal em seu romance “A Cartuxa de Parma”. Embora possa causar uma certa estranheza à primeira vista, a sequência resulta belíssima, recheada ao mesmo tempo de lirismo e reflexão. Assim como preciosa é a cena em que Pierre, numa Moscou incendiada pelos próprios moradores, aguarda na tocaia a aproximação de Napoleão. Cena excelente em que o rei Vidor demonstra todo seu talento e competência na direção.
Mas nem só de belas cenas vive “Guerra e Paz”. Pode-se afirmar que roteiro consegue condensar de forma satisfatória a gigantesca obra literária, detentora de várias facetas. Uma proeza levada a efeito pelas mãos dos roteiristas (foram oito, ao todo, entre eles Bridget Boland, Ennio De Concini e o próprio Vidor). Mas é verdade que o resultado tem um que de pasteurização e excessos românticos, dando a impressão, por vezes, de que Tolstoi quis apenas escrever uma imensa novela água-com-açúcar. Mas somente às vezes, é bom ressaltar. Vidor não chega a descambar para o melodrama, principalmente porque sabe realçar também o cunho de narração histórica da obra literária, com seu tom de epopeia nacional russa. Afinal, entre os momentos mais interessantes estão os protagonizados por Napoleão,sua soberba ao chegar à Rússia em contraposição ao ar sombrio com que a deixa.
Interessante que esta versão de “Guerra e Paz” teve boa aceitação na Rússia (que era então União Soviética, bom lembrar), mas foi estranhamente rejeitada nos EUA. Foi o penúltimo filme do Rei Vidor, que se aposentou três anos mais tarde com “Salomão e a Rainha de Sabá”, já cansado de guerra. Mas é claro que a filmografia de Vidor nunca estará cansada e “Guerra e Paz” merece ser visto não somente por se tratar de uma boa adaptação de uma grande obra literária para as telas, mas também por se constituir um ótimo representante do talento inquestionável de um dos precursores e grandes artífices do cinema hollywoodiano.
Cotação:
Nota: 9,0
2 comentários:
Muito bacana a ideia desta nova seção no blog. Ainda não vi "Guerra e Paz", mas como estou tentando ver todos da Audrey Hepburn, creio que irei ver este em breve! Outro filme bacana que você poderia comentar aqui, é o filme "Charada", também com Audrey Hepburn (e Cary Grant) que apesar de ser muito bom é bastante esquecidinho...
Abs :D
Alan, obrigado pela sugestão. Eu, inclusive, tenho "Charada" na minha coleção. Também ando vendo os filmes da Audrey e será uma boa oportunidade para vê-lo. Abraço!
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