domingo, 15 de maio de 2011

Para Ver Em Um Dia de Chuva



Minha Bela Dama
(My Fair Lady)


Beleza e misoginia



“My Fair Lady” é um filme anacrônico. Lançado no circuito comercial em 1964, ele ainda possui um clima e know-how típicos do studio system que controlava o cinema estadunidense até meados da década de 60, e que seria dali a pouco substituído pelo cinema autoral da Nova Hollywood. Esta enfrentava uma crise criativa acentuada e um severo descompasso com uma nova sociedade que nascia, dominada não mais pelos valores dos mais velhos, mas pela contestação e iconoclastia dos mais jovens. Afinal, em 1964 a beatlemania já dominava o mundo, revolucionários como Ernesto Guevara inspiravam as mentes ansiosas por mudanças em um mundo decrépito e a pílula anticoncepcional já começava a promover uma revolução nos costumes sexuais. A verdade é que a produção cinematográfica, talvez por ser muito cara, reagiu de forma tardia a esse turbilhão de mudanças. Ou, talvez, porque o mercado consumidor ainda não fosse dominado pelos jovens.

Neste cenário, os oito Oscars que o filme recebeu soam como um manifesto sinal de atraso da Academia, ainda extremamente apegada aos valores caros à sua era de ouro. Nada mais distoante da crescente liberação feminina do que a misoginia de “Minha Bela Dama”, uma película que mostra um abastado e machista linguista que encontra em uma florista de rua o alvo perfeito para a realização de uma “experiência”, na realidade uma aposta com seu amigo coronel e também aristocrata. O professor Henry Higgins (Rex Harrison), ademais, é de uma rudeza singular, perfeitamente incapaz de demonstrar sentimentos pelas pessoas e em especial por Eliza Doolitle (Audrey Hepburn), a qual representa uma ameaça à sua solteirice convicta. E nada mais anti-feminista do que vermos Eliza se apaixonar justamente por um homem que sequer lhe trata com educação.

Claro que, por outro lado, o filme possui outras conotações mais inspiradoras. Adaptação de um musical da Broadway, o qual por sua vez foi baseado na obra “Pigmaleão” do escritor George Bernard Shaw, a trama (com roteiro de Alan Jay Lerner) não deixa de ser uma feroz crítica à artificialidade da sociedade burguesa, bastante acostumada a olhar as pessoas apenas pelo seu exterior. Sintomático que Higgins, um intelectual de família tradicional, seja, em verdade, um homem bruto, enquanto a aparentemente embrutecida Eliza é, em verdade, a dama que se traduz no título da película. A essência de cada um não se transforma por suas posses ou aparência. Pelo contrário, é possível que riqueza e conforto apenas acentuem a verdadeira natureza de cada um.


Não se pode negar, ademais, que “My Fair Lady” sempre será lembrado por méritos performáticos e técnicos. É bom recordar que a direção é de George Cukor, um dos grandes expoentes da Hollywood clássica e dono de um talento especial para trabalhar com temáticas femininas e tirar das atrizes o melhor de seus dons interpretativos e que aqui levou o seu merecido prêmio da Academia (outros de seus trabalhos famosos são “Núpcias de Escândalo” e “A Costela de Adão”). O elenco, por sua vez, é simplesmente brilhante. O Oscar entregue a Harrison ficou em ótimas mãos. Ele encarna à perfeição o seu intratável Higgins, encontrando um timing memorável com Audrey Hepburn, esta em mais um papel que seria marcante em sua carreira. Curioso que Audrey foi dublada em várias das sequências musicais, o que a deixou extremamente irritada e talvez tenha sido esse o motivo de sua não indicação ao Oscar de melhor atriz na ocasião. Vale dizer ainda que ela substituiu Julie Andrews, a qual havia representado Eliza na Broadway e seria a primeira cotada para o papel, por motivos óbvios. Outro que se destaca em sua atuação é Wilfrid Hyde-White, interpretando o coronel Hugh Pickering, o cordato e sensato amigo com quem Higgins realiza a aposta que serve de mote da trama, além de Stanley Holloway, como o pai de Eliza, o qual protagoniza alguns do melhores momento musicais do longa, muito embora suas inserções apareçam, por vezes, como pontas soltas do roteiro. Já a direção de arte e os figurinos (de Cecil Beaton) são memoráveis e, com inteira justiça, levaram os prêmios da Academia.

No entanto, apesar de várias sequências divertidas, “Minha Bela Dama” é dotado de uma extensa duração (quase três horas) em que pouco acontece em termos de desenvolvimento da trama. Não é à toa que o crítico Adré Techniné, da Cahiérs du Cinema, ficou admirado com o seu “surpreendente vácuo” e essa sensação de quase nada acontecendo pode causar enfado em muitos (um romance sem beijo ou "eu te amo", dirão outros). Mas o maior demérito do longa não deixa de ser sua ode ao machismo que se mostra principalmente em sua conclusão, de causar arrepios nas feministas mais arraigadas. Entretanto, Tal circunstância não impediu que sua trama e personagens se tornassem uma espécie de mito moderno, copiados diversas vezes não só no próprio cinema como na televisão (várias novelas da Globo, por exemplo, já se valeram de sua premissa). E assim, não deixa de ser uma obra essencial para compreender uma parcela da cultura pop que vigora até os dias de hoje, apesar de ter nascido em um momento histórico-social dissonante do seu conteúdo.


Cotação:

Nota: 8,0
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Um comentário:

Alan Raspante disse...

Audrey Hepburn está magnífica aqui. Adoro a primeira parte com a Eliza pobre, os trejeitos e a voz ficaram muuuito bacana. Audrey se supera aqui!