Durão, mas com ternura
Poucos diretores sabem analisar tão bem a sociedade americana quanto Clint Eastwood, o septuagenário ator e diretor, um dos grandes ícones da história do cinema. Dono de um estilo clássico que remete a mestres como John Ford, Eastwood, ao longo das duas últimas décadas, vem nos brindando com filmes cheios de profundidade e sensibilidade, na mesma proporção em que simples e diretos. Mesmo obras menores suas, como o recente “A Troca”, mostra-se bastante acima da média das produções norte-americanas corriqueiras, sempre tendo algo de relevante a dizer.
Além de talentoso, ele se mostra um cineasta bastante prolífico, chegando a lançar dois longas-metragens em apenas um ano (principalmente se levarmos em conta que Clint já é quase um octogenário). Em 2009, ele nos entregou não apenas o acima citado filme protagonizado por Angelina Jolie, como também este “Gran Torino”, o qual acabou se transformando no seu maior sucesso de bilheteria como diretor. Tal sucesso não me surpreende. O longa é perfeitamente antenado com os novos tempos da era Barack Obama, o que me leva até a realizar um sério questionamento do porquê a Academia ter ignorado por completo esta produção no Oscar deste ano, sequer recebendo indicações. Será que Hollywood acredita que já premiou demais o velho cowboy? À parte esses questionamentos desnecessários (afinal, nenhum filme se tornará melhor ou pior pelo fato de ter recebido uma estatueta), “Gran Torino” mostra Eastwood em grande forma, não apenas no aspecto narrativo, mas também na abordagem condensada de vários de seus antigos temas. Estão lá a incomunicabilidade, os questionamentos à religião, a crença na resolução de conflitos dentro das regras do sistema, o peso de atos pretéritos sobre a consciência, a velhice e aproximação da morte.
A trama nos mostra o veterano da guerra da Coréia Walt Kowalski (o próprio Eastwood) lidando com a perda recente de sua esposa. Desde o início, já percebemos o distanciamento da relação entre ele e seus filhos (e netos também), os quais não têm paciência com seu temperamento difícil e ranzinza. Walt, ademais, é o arquétipo do americano tradicionalista. Todos os dias asteia a bandeira estadunidense na porta de sua casa, onde agora vive sozinho, acompanhado apenas de sua cadela Daisy. Xenófobo, é forçado a conviver com uma vizinhança repleta de imigrantes, a maioria deles da etnia asiática hmong, com hábitos e costumes totalmente estranhos aos seus olhos. A antipatia de Kowalski também é retribuída pelos seus vizinhos. A situação começa a mudar quando Thao, um jovem e tímido vizinho hmong, tenta furtar o Gran Torino ano 1972 de Walt, automóvel que este mantém conservado com perfeito zelo (adoração por carros: outro aspecto notório do americano médio). O furto, entretanto, seria o ritual de iniciação de Thao em uma gangue local e, uma vez frustrado, deixa o rapaz em apuros perante o grupo de deliquentes. É Walt que o salva da situação (mesmo que não desejasse exatamente isso), sendo logo transformado em herói e visto como protetor do bairro.
Apesar da retomada dos diversos temas já referidos mais acima, a preocupação central de Eastwood, como já é possível depreender a partir desta breve síntese, é a relação do homem americano (e, por consequência, dos Estados Unidos) com o elemento estrangeiro, e a forma como esta relação deve ser estabelecida. Inicialmente isolado e avesso ao contato com os vizinhos imigrantes, Walt aproxima-se e passa a travar uma estreita relação com estes. E é interessante que esta relação se desenvolve a partir do momento em que Kowaslki se torna uma espécie de “xerife” da vizinhança, função simbolizada principalmente pelo rifle que aponta para os delinqüentes do bairro. Isso demonstraria que Clint ainda acredita na função dos EUA como guardiões da ordem mundial? Nem tanto. O ponto que o diretor parece atingir é o mesmo proposto pela população norte-americana com a eleição de Barack Obama, ou seja, o distanciar-se de visões genéricas e estereotipadas sobre o estrangeiro, evitando percepções maniqueístas da realidade. A defesa dos valores norteadores da sociedade americana precisa, antes de tudo, enxergar que o estrangeiro não é uma ameaça. A ameaça, segundo o olhar de Clint, parece ser o esquecimento destes mesmos valores, o seu rápido processo de desmoronamento. Nada mais emblemático desta visão do que o momento em que Walt olha para um grupo de jovens que faz gestos obscenos para uma senhora, ao invés de ajudá-la a juntar as compras que haviam se esparramado pelo chão. Ou ainda quando ele chega à constatação de que parece ter mais em comum com seus vizinhos hmong do que com seus próprios filhos. Aliado a isso, vemos que Eastwood, tomando por base o desfecho da trama, continua acreditando que o sistema, apesar de suas falhas, está apto a dirimir os conflitos sociais, não cabendo ao cidadão agir individualmente e fazer justiça com as próprias mãos.
Por outro lado, mais uma vez se torna nítida a facilidade do diretor em estabelecer relações perfeitamente críveis de aproximação entre personagens. Esse elemento já havia sido utilizado de forma belíssima em “Menina de Ouro” (entre o treinador Frank e sua aluna Maggie) e agora é novamente abordado na relação entre Walt e Thao. Talvez não se mostre tão especial quanto no longa citado porque Bee Vang não é uma Hillary Swank, deixando a desejar em alguns momentos que exigem uma maior carga de interpretação. A direção oscilante de atores costuma, inclusive, ser apontada como uma das falhas frequentes do trabalho de Eastwood na direção. Mas, pelo menos aqui, não é nada que chegue a comprometer o conjunto, até mesmo porque o próprio Clint está ótimo na sua interpretação de Kowalski, apresentando um personagem que parece ser uma síntese de todos os outros já encarnados pelo ator.
Ademais, é sempre interessante notar como ele consegue tratar de questões mais amplas a partir de planos mais estreitos e pessoais, e por que não dizer, emocionais. Para Eastwood o macro sempre passa antes pelo micro, o social é resultado do individual. Só os grandes artistas possuem essa perspectiva. Sem astear bandeiras, Clint nos leva à reflexão sem nunca esquecer que somos humanos, seres dotados de emoção. Duro, sim, mas sem jamais perder a ternura.
Cotação: ****1/2 (quatro estrelas e meia)
Nota: 9,5
Poucos diretores sabem analisar tão bem a sociedade americana quanto Clint Eastwood, o septuagenário ator e diretor, um dos grandes ícones da história do cinema. Dono de um estilo clássico que remete a mestres como John Ford, Eastwood, ao longo das duas últimas décadas, vem nos brindando com filmes cheios de profundidade e sensibilidade, na mesma proporção em que simples e diretos. Mesmo obras menores suas, como o recente “A Troca”, mostra-se bastante acima da média das produções norte-americanas corriqueiras, sempre tendo algo de relevante a dizer.
Além de talentoso, ele se mostra um cineasta bastante prolífico, chegando a lançar dois longas-metragens em apenas um ano (principalmente se levarmos em conta que Clint já é quase um octogenário). Em 2009, ele nos entregou não apenas o acima citado filme protagonizado por Angelina Jolie, como também este “Gran Torino”, o qual acabou se transformando no seu maior sucesso de bilheteria como diretor. Tal sucesso não me surpreende. O longa é perfeitamente antenado com os novos tempos da era Barack Obama, o que me leva até a realizar um sério questionamento do porquê a Academia ter ignorado por completo esta produção no Oscar deste ano, sequer recebendo indicações. Será que Hollywood acredita que já premiou demais o velho cowboy? À parte esses questionamentos desnecessários (afinal, nenhum filme se tornará melhor ou pior pelo fato de ter recebido uma estatueta), “Gran Torino” mostra Eastwood em grande forma, não apenas no aspecto narrativo, mas também na abordagem condensada de vários de seus antigos temas. Estão lá a incomunicabilidade, os questionamentos à religião, a crença na resolução de conflitos dentro das regras do sistema, o peso de atos pretéritos sobre a consciência, a velhice e aproximação da morte.
A trama nos mostra o veterano da guerra da Coréia Walt Kowalski (o próprio Eastwood) lidando com a perda recente de sua esposa. Desde o início, já percebemos o distanciamento da relação entre ele e seus filhos (e netos também), os quais não têm paciência com seu temperamento difícil e ranzinza. Walt, ademais, é o arquétipo do americano tradicionalista. Todos os dias asteia a bandeira estadunidense na porta de sua casa, onde agora vive sozinho, acompanhado apenas de sua cadela Daisy. Xenófobo, é forçado a conviver com uma vizinhança repleta de imigrantes, a maioria deles da etnia asiática hmong, com hábitos e costumes totalmente estranhos aos seus olhos. A antipatia de Kowalski também é retribuída pelos seus vizinhos. A situação começa a mudar quando Thao, um jovem e tímido vizinho hmong, tenta furtar o Gran Torino ano 1972 de Walt, automóvel que este mantém conservado com perfeito zelo (adoração por carros: outro aspecto notório do americano médio). O furto, entretanto, seria o ritual de iniciação de Thao em uma gangue local e, uma vez frustrado, deixa o rapaz em apuros perante o grupo de deliquentes. É Walt que o salva da situação (mesmo que não desejasse exatamente isso), sendo logo transformado em herói e visto como protetor do bairro.
Apesar da retomada dos diversos temas já referidos mais acima, a preocupação central de Eastwood, como já é possível depreender a partir desta breve síntese, é a relação do homem americano (e, por consequência, dos Estados Unidos) com o elemento estrangeiro, e a forma como esta relação deve ser estabelecida. Inicialmente isolado e avesso ao contato com os vizinhos imigrantes, Walt aproxima-se e passa a travar uma estreita relação com estes. E é interessante que esta relação se desenvolve a partir do momento em que Kowaslki se torna uma espécie de “xerife” da vizinhança, função simbolizada principalmente pelo rifle que aponta para os delinqüentes do bairro. Isso demonstraria que Clint ainda acredita na função dos EUA como guardiões da ordem mundial? Nem tanto. O ponto que o diretor parece atingir é o mesmo proposto pela população norte-americana com a eleição de Barack Obama, ou seja, o distanciar-se de visões genéricas e estereotipadas sobre o estrangeiro, evitando percepções maniqueístas da realidade. A defesa dos valores norteadores da sociedade americana precisa, antes de tudo, enxergar que o estrangeiro não é uma ameaça. A ameaça, segundo o olhar de Clint, parece ser o esquecimento destes mesmos valores, o seu rápido processo de desmoronamento. Nada mais emblemático desta visão do que o momento em que Walt olha para um grupo de jovens que faz gestos obscenos para uma senhora, ao invés de ajudá-la a juntar as compras que haviam se esparramado pelo chão. Ou ainda quando ele chega à constatação de que parece ter mais em comum com seus vizinhos hmong do que com seus próprios filhos. Aliado a isso, vemos que Eastwood, tomando por base o desfecho da trama, continua acreditando que o sistema, apesar de suas falhas, está apto a dirimir os conflitos sociais, não cabendo ao cidadão agir individualmente e fazer justiça com as próprias mãos.
Por outro lado, mais uma vez se torna nítida a facilidade do diretor em estabelecer relações perfeitamente críveis de aproximação entre personagens. Esse elemento já havia sido utilizado de forma belíssima em “Menina de Ouro” (entre o treinador Frank e sua aluna Maggie) e agora é novamente abordado na relação entre Walt e Thao. Talvez não se mostre tão especial quanto no longa citado porque Bee Vang não é uma Hillary Swank, deixando a desejar em alguns momentos que exigem uma maior carga de interpretação. A direção oscilante de atores costuma, inclusive, ser apontada como uma das falhas frequentes do trabalho de Eastwood na direção. Mas, pelo menos aqui, não é nada que chegue a comprometer o conjunto, até mesmo porque o próprio Clint está ótimo na sua interpretação de Kowalski, apresentando um personagem que parece ser uma síntese de todos os outros já encarnados pelo ator.
Ademais, é sempre interessante notar como ele consegue tratar de questões mais amplas a partir de planos mais estreitos e pessoais, e por que não dizer, emocionais. Para Eastwood o macro sempre passa antes pelo micro, o social é resultado do individual. Só os grandes artistas possuem essa perspectiva. Sem astear bandeiras, Clint nos leva à reflexão sem nunca esquecer que somos humanos, seres dotados de emoção. Duro, sim, mas sem jamais perder a ternura.
Cotação: ****1/2 (quatro estrelas e meia)
Nota: 9,5
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