domingo, 8 de fevereiro de 2009

O Leitor


"Crime e Castigo"

Desde o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, o povo alemão vê-se na condição de um criminoso que tem de conviver eternamente com os tormentos de sua consciência, talvez a maior punição que possa existir para um crime, como tão bem mostrou Dostoiévski em sua obra magistral “Crime e Castigo”. É difícil até mesmo compreender como toda uma nação pode ter se deixado levar pelas palavras e delírios de Adolf Hitler e asseclas, bem como um ódio tão profundo por outro povo pode ter se disseminado tão fácil e fortemente, principalmente se levarmos em consideração que os alemães nunca tinham estado em guerra contra os judeus (como sucede entre chineses e japoneses, por exemplo).

“O Leitor”, novo filme de Stephen Daldry, o mesmo de “Billy Elliot” e “As Horas” (três filmes, três indicações ao Oscar de diretor...), não busca responder à questão do porquê isso aconteceu, mas apresentar o dilema da culpa alemã através de personagens arquetípicos que representam o crime e a consciência de um povo. Baseado no romance de Bernhard Schlink (adaptado por David Hare), o filme tem como elementos centrais as figuras de Michael Berg (David Kross) e Hannah (Kate Winslet, indicada ao Oscar neste papel). Michael é um adolescente de 15 anos que um dia passa mal a caminho do colégio e quem lhe presta ajuda é justamente Hannah Shimitz, uma cobradora de bonde, 15 anos mais velha do que ele. Apesar da diferença de idade, os dois têm um caso que dura a estação do verão. Além da diferença de idade, há uma peculiaridade marcante na relação entre os dois: antes do sexo, Hannah exige que Michael leia para ela livros, normalmente clássicos da literatura (daí o título do livro e do filme). Entretanto, como já mencionado, a relação não dura muito, pois um belo dia Hannah some sem deixar rastros. Anos mais tarde, Michael é estudante de Direito na Universidade de Heidelberg quando, devido a um trabalho do curso, participa das sessões de julgamento de mulheres acusadas de participação no holocausto. Para seu espanto, uma delas é justamente Hannah. Ela, na realidade, era uma ex-guarda da SS nazista e, em um dado momento, surge para Michael a oportunidade de ajudá-la em sua defesa. Entretanto, será que ele deve ajudar alguém responsável por tamanhas atrocidades? Ou se calar e permitir que alguém que ama sofra uma severa condenação?

A partir desta breve síntese, é possível identificar os mencionados arquétipos que traduzem o impasse do povo alemão. Hannah representa todos aqueles que, vivendo o período nazista, participaram ou consentiram (talvez uma forma ainda mais nefasta de indiferença) com os crimes praticados contra os judeus e outras minorias. Michael representa a nova Alemanha, chocada e pesarosa por tudo quanto aconteceu no passado. Ao dizer que não abriu os portões de uma igreja em chamas, onde estavam cerca de 300 prisioneiras judias, porque estava cumprindo o seu dever como guarda, Hannah entoa o mesmo discurso, embora com outras palavras, dos oficiais nazistas durante os julgamentos de Nuremberg, o quais sempre afirmaram que apenas “cumpriam ordens”. Será possível amar e ajudar alguém assim? Essa questão deve corroer as mentes de muitos alemães que hoje se perguntam (ou até mesmo sabem) da participação de parentes nestes atos de extermínio.

Mas seria injusto resumir “O Leitor” a apenas mais um filme sobre o holocausto. Trata-se também de uma estória de formação, de um rapaz transformando-se em homem, com todas as implicações que desta afirmação possam surgir. Ao mesmo tempo em que descobre os prazeres do sexo com Hannah, também descobre a dor de uma separação e das inevitáveis decepções com o outro, ao mesmo tempo em que é levado a tomar decisões extremamente difíceis. Há ainda um subtexto de sedução bastante interessante, onde Hannah é seduzida pelas belas palavras lidas por Michael nos livros, lembrando que as fêmeas humanas muitas vezes se sentem mais atraídas pelo que ouvem do que pelo que vêem, diferente do desejo meramente visual masculino. Levando essas nuances em conta, resta claro que o longa, para surtir o efeito desejado, teria de contar com um elenco talentoso o suficiente para traduzir tais inquietações em cena. E vamos direto à pergunta que você deve estar se fazendo: Kate Winslet merece a indicação e, até mesmo, levar a estatueta do Oscar? Sim, ela está ótima na caracterização da personagem, como é seu hábito. Nunca assisti a uma produção em que Kate não estivesse bem e esta não é exceção (também não é exceção a exibição de seus belos seios, mostrados em boa parte das produções em que ela atua, até em Titanic). Entretanto, devo confessar que a atuação que mais me impressionou foi a de David Kross, o qual interpreta Michael ainda jovem. O rapaz parece ter um grande futuro e não estranharei se seu nome passar a freqüentar as listas de indicados em premiações. Já Ralph Fiennes, inegavelmente um grande ator, parece um tanto perdido com o personagem de Michael já maduro, com uma atuação excessivamente “inglesa”.

Por outro lado, lembrando das outras quatro indicações do longa, seria um exagero atribuir-lhe um prêmio de melhor filme, por exemplo. “O Leitor” é um bom trabalho que, por tratar de holocausto, ganha de imediato a simpatia dos membros da Academia, o que me faz lembrar a piada de Rick Gervais, no Globo de Ouro, de que bastaria Kate Winslet trabalhar em um filme sobre o holocausto para ganhar prêmios (e isso tem lá seu fundo de verdade). E, embora trate de temas relevantes, não convém exagerar na dose.

Cotação: **** (quatro estrelas)
Nota: 9,0.
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2 comentários:

Anônimo disse...

Assisti ao filme e, agora, lendo sua crítica concordo plenamente com a não redução à questão do Holocausto. Para mim, o ponto mais alto é a representatividade com que o amor transformou a vida de um tímido e desacreditado gorato. A ironia foi que esse mesmo amor ou melhor, a não concretização deste amor, fez do garoto um homem infeliz e distante de todos que o amavam, inclusive sua filha.

Fábio Henrique Carmo disse...

Olá, primo. Como vão as coisas?

Concordo com você. O primeiro amor de Michael transformou-se no mais marcante de sua vida e, é bom dizer, marcando de uma forma negativa. Mas creio que também ele passa a ter dificuldades com o passado por aquele fato no Tribunal (não quero dizer exatamente o que é aqui para não postar um gigantesco spoiler, mas vc sabe do que estou falando). O sentimento de culpa acaba por torná-lo ainda mais isolado.