Embalagem ousada, conteúdo convencional
Sempre defendi a posição de que cinema é imagem e, sendo assim, o filme que consegue contar a sua estória privilegiando seu poder imagético sobre as palavras normalmente alcança um nível de acuidade artística superior. Não que isso seja uma regra absoluta. Woody Allen é autor de filmes bastante verborrágicos, mas nem por isso deixam de atingir uma admirável qualidade. Contudo, não custa lembrar que o cinema começou sem som, ou seja, podemos tirar o som de uma película e ela continuará sendo cinema. Todavia, se tirarmos sua imagem poderemos afirmar que se trata de qualquer outra arte, menos cinema. É justamente deste conflito entre imagem e som de que trata “O Artista”, longa indicado a 10 prêmios Oscar e que vem sendo considerado o grande favorito para a noite da premiação no próximo dia 26.
Não que a temática seja exatamente nova. O clássico “Cantando Na Chuva” (Singin' In The Rain, 1952) já abordava a fase de transição do cinema mudo para o sonoro que se iniciou a partir de 1927, quando “O Cantor de Jazz” (The Jazz Singer, de Alan Crosland) surgiu como o primeiro longa em que se podia ouvir a voz dos atores – mesmo que, ao contrário do se pode pensar, ele não tenha sido inteiramente falado, possuindo apenas duas sequências com diálogos (o primeiro filme inteiramente falado foi “Luzes de Nova York”, de 1928, dirigido por Brian Foy). Essa alteração técnica no modo de produzir filmes talvez tenha sido a que gerou mais impacto em toda a história da Sétima Arte, possivelmente ainda mais do que a introdução das cores, gerando resultados por vezes catastróficos para profissionais que não se adaptaram aos novos tempos. Isso aconteceu notadamente com os atores do cinema mudo, vários dos quais estrangeiros com forte sotaque que acabaram por ser alijados do processo.
É esta a dificuldade enfrentada por George Valentin, o personagem interpretado por Jean Dujardin em “O Artista”. Astro adorado pelo público, ele vê sua carreira ir por água abaixo após subestimar o potencial da nova tecnologia e acreditar que as pessoas iriam continuar vendo sua imagem não se importando se ele falaria ou não. Em contrapartida, uma de suas fãs, Peppy Miller (interpretada pela argentina Bérénice Bejo), a quem ele deu uma força para ingressar nos meandros hollywoodianos, termina por alcançar enorme sucesso valendo-se de sua bela voz em filmes musicais. Aliás, esse é um gênero que, decididamente, só pôde surgir no cinema a partir da criação dos filmes sonoros. Esta trama simples é o suporte para que o quase desconhecido diretor e roteirista Michel Hazanavicius ponha em prática um grande exercício de metalinguagem, trazendo resultados formais belíssimos, mas que não alcançam o mesmo patamar em termos substanciais.
Não se pode negar que Hazavicius foi ousado em conceber um longa-metragem mudo e em preto e branco em pleno século XXI. Diante dos barulhentos filmes contemporâneos, vários dos quais promovem poluições sonoras semelhantes ao trânsito da hora do rush, é um alívio assistir a uma produção silenciosa continuamente sublinhada por uma bela trilha sonora (composta por Ludovic Bource). Ademais, o seu p&b, realizado a partir da descolorização de uma filmagem tradicional, possui um contraste perfeito, assemelhando-se àquelas fotos antigas que adoramos admirar (a fotografia também me lembrou bastante a de “A Lista de Schindler”). Ademais, o roteiro é fluido, fazendo a projeção correr redondinha, sem atropelos ou furos, além de contar com as ótimas atuações de Dujardin e Bejo (a cena em que Peppy Miller usa um casaco para “se fazer abraçar” por Valentin é deveras bonita e expressiva) . Ou seja, em vários aspectos constitui realmente aquele tipo de filme que os Weinstein costumam produzir ou, como nesse caso, apadrinhar para alcançar êxito nas festas da Academia de Hollywood.
Tudo funciona certinho, bem calculado (tem até um cachorrinho para deixar a plateia encantada). Entretanto, lembra aqueles desfiles de samba em que uma das escolas, com um desempenho vibrante, rouba a cena na avenida, mas acaba perdendo o campeonato para uma outra que nem chamou tanta atenção assim, levando o troféu com um desfile sem alma, mas tecnicamente irrepreensível. E talvez seja esta a metáfora perfeita para “The Artist”. É uma película muito agradável, mas lhe falta um tanto de alma, vibração, entranhas. Seu aspecto calculado em detalhes parece por vezes disfarçar uma certa ausência de conteúdo. O romance que lhe dá esteio pode até mesmo soar prosaico demais. Basta lembrar que costumamos criticar as comédias românticas por serem extremamente previsíveis, atributo que também recai com facilidade no longa de Hazanavicius. Desde o princípio já percebemos que rumos os personagens e seus sentimentos tomarão e, se você tiver o conhecimento prévio da temática que será abordada, já será possível antecipar qual a crise pela qual passará o personagem de Dujardin. Esta ausência de surpresas ou complexidades torna a experiência fugidia, por melhor que seja a sua mise-en-scène.
Este conflito entre embalagem e conteúdo me acompanhou durante a maior parte dos 100 minutos da produção. Ao mesmo tempo que admirava sua plástica, não me empolgava a sua trama que, como já mencionado, faz um uso de metalinguagem já visto em tempos antanhos. Ademais, também me preocupa constatar que hoje em dia uma obra é considerada “original” ao copiar fórmulas de 80 anos atrás. Nem sempre ousadia significa originalidade e muitas vezes ela pode ser usada para desviar a atenção de uma trama comum, que passaria despercebida caso fosse filmada de maneira convencional. “O Artista” pode até levar as dez estatuetas a que está concorrendo, mas isso não significa que será lembrado daqui a alguns anos.
Cotação:
Nota: 8,0
8 comentários:
Fábio, excelente texto! Concordo em gênero e numero com o que escreveu. O Artista é um bom filme, mas hypado mais do que deveria. Não sei se a nostalgia que ele remete acaba envolvendo, mas é o tipo de filme q vai perdendo força na memoria afetiva. Parabéns por esse olhar especifico.
Concordo que o roteiro não coloque tantas problemáticas ou mesmo que não haja um contorno mais denso e que permita maiores balanços dos personagens, mas, mesmo que seja algo sem tanta surpresa - no que diz respeito aos conflitos dos principais ou romance citado por ti, é um filme que ainda assim envolve, emociona, firma terreno. Ao meu ver, gosto pessoal, foi o mais interessante dos que concorre a Melhor filme. Infelizmente, os meus favoritos sequer foi indicado (MELANCOLIA, A PELE QUE HABITO, DRIVE, MILLENIUM ou DRIVE, por exemplo). Gostei muito de Jean Dujardin, me hipnotizou e encantou! E acho que todo o conjunto da obra me cativa, a fotografia, trilha, a maneira como ele homenageia mesmo o cinema mudo e faz disso sua metalinguagem, tudo isso são fatores imprescindíveis pra mim. Gostei mesmo!
Bom, lendo sua opinião, fica incoerente sua nota 8, já que, claramente, parece que você não apreciou o filme tanto assim, rs.
Abraço
Seu primeiro parágrafo foi perfeito: "Sempre defendi a posição de que cinema é imagem e, sendo assim, o filme que consegue contar a sua estória privilegiando seu poder imagético sobre as palavras normalmente alcança um nível de acuidade artística superior." assino embaixo.
A ousadia que você cita é o que mais me instiga a assistir o filme.
Ótimo texto. Discordo em parte com o que você julgou talvez representar talvez um demérito em "O Artista". Não consigo conceber muito um filme que homenageasse a produção cinematográfica da Hollywoodland do final dos '20s sem parecer, de certa forma, convencional em conteúdo. Pelo menos não na forma escolhida por Hazanavicius para faze-la. Enfim, respeito sua opinião. Grande abraço e parabéns pelo texto!
Simpático, original, até encantador, mas não merece tamanha paparicação.
O Falcão Maltês
Celo, como comentei lá no seu blog, sua opinião é bem parecida com a minha. É um bom filme, mas não é tudo isso. Gosto mais de "Os Descendentes", com certeza!
Cristiano, atribuí nota 8,0 porque "O Artista" é um bom filme, acima da média do que se vê por aí. Não achei o filme ruim, longe disso (filmes ruins levam abaixo de 7,0 na minha avaliação). Mas não é um filme excepcional (que levam de 9,0 pra cima no meu placar). Sua plástica é belíssima, não se pode nagar isso e não atribuiria uma nota baixa para um filme que tem tanta força imagética (algo que salientei bastante no meu texto).
Renato,
Então comungamos da ideia de que cinema é imagem. Assista, um filme com as belas imagens como esse, merece ser visto, embora eu considere que há um execsso de hype em relação a ele.
Wilson,
Acho que ele poderia fugir sim do convencional. Woody Allen conseguiu isso em filmes como "A Rosa Púrpura do Cairo" e "Tiros na Broadway". Mas respeito sua posição.
Nahud,
Também acho que está sendo paparicado demais. É bom, mas nem tanto.
Abraço a todos!
fábio, muito boa sua crítica. cara, eu fui ver o artista só sabendo que era mudo e em preto e branco. no mais, mesmo gostando do roteiro, achei mesmo que faltou algo pra empolgar mais. é um filme bom, mas não seria meu favorito pro oscar.
Fui vitima das distribuidoras, que não mandaram o filme pra cá, por enquanto. Enquanto isso, fico só na vontade, e lendo textos de amigos. Muito boa sua análise, propondo um olhar diferente sobre uma obra tão aclamada, tanto pelo público quanto a crítica. Não sei se concordo ou discordo, claro. Mas, pra todo caso, muito bem escrito e com argumentos consistentes.
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