domingo, 8 de janeiro de 2012

Restaurando a Película




Neste Mundo e No Outro
(A Matter Of Life And Death, 1946)


De Wim Wenders ao Led Zeppelin


É possível que “Neste Mundo e No Outro” (A Matter Of Life And Death), filme da famosa dupla de cineastas Michael Powell e Emeric Pressburger, seja uma das mais excêntricas produções de todos os tempos. Tivesse sido realizado na década de 60, diria que era um fruto de viagens lisérgicas de seus mentores, pois que algumas de suas concepções visuais, como uma longa escadaria para o céu, parecem tão abstratas e, ao mesmo tempo, lúdicas e inteligentes que acabam guardando mais relação com uma animação como “Yellow Submarine”, dos Beatles, do que com a grande maioria das películas dos anos 40, ainda mais ao lembrarmos do seu poderoso Technicolor. Não acredito que seja por acaso que o Led Zeppelin tomou emprestado o título norte-americano do longa (1), “Stairway To Heaven”, para batizar uma de suas mais famosas canções.

Contudo, há um parentesco próximo entre a produção britânica e uma outra estadunidense, o clássico absoluto “A Felicidade Não Se Compra” (It's A Wonderful Life). Ambos tratam da nossa efemeridade terrena e de como devemos aproveitar da melhor forma o tempo em que estamos aqui, passeando por concepções do além-vida que atribuem a este interferência direta nas ações e realidades humanas. As semelhanças se tornam ainda mais assombrosas quando observamos que tanto o filme da dupla Powell/Pressburger quanto o do mestre Frank Capra foram lançados comercialmente no mesmo ano, 1946, sendo, portanto, possível afirmar que não houve influência de um sobre o outro. Por outro lado, se na estória do George Bailey de James Stewart o foco da narrativa se concentra na tradução de um otimismo que se fazia importante naquele momento de pós-guerra, em “Neste Mundo e No Outro” existe um subtexto político que acaba turvando o seu lado mais humano. Tal vertente se deve em boa parte ao fato de que o longa foi engendrado como uma espécie de peça de propaganda política em defesa das boas relações entre EUA e Inglaterra, as quais andaram meio estremecidas após o fim do conflito mundial. A verdade é que esse teor sociopolítico acaba por diminuir o apelo emotivo que a narrativa poderia apresentar e chega a tornar aborrecido o seu terço final.


Na trama, Peter Carter (David Niven) é um oficial da Força Aérea Britânica que tem o seu avião avariado e, antes de sua queda, estabelece contato via rádio com a controladora de voo June (Kim Hunter). Mesmo que tenham conversado pouco tempo, os dois acabam estabelecendo uma imediata e forte conexão. Peter, estranhamente, mesmo tendo saltado da aeronave sem paraquedas, acaba sobrevivendo e encontrando June. Os dois se apaixonam, mas, no Paraíso, descobre-se que a sua sobrevivência se deveu a um erro burocrático do Condutor 71 (Marius Goring), sendo este então incumbido de retificar a falha e levar Peter para o lugar onde deveria estar. Entretanto, diante de sua paixão, este se recusa terminantemente e apela para um tribunal celestial para que possa ter uma segunda chance e permanecer na Terra. É relevante frisar que, para o entendimento correto do enredo, faz-se necessário observar a frase que surge na tela logo após os créditos iniciais: “esta é a estória de dois mundos, um que conhecemos e outro que existe apenas na mente de um jovem aviador cuja vida e imaginação têm sido violentamente moldadas pela guerra.” Ou seja, ocorre a sugestão de que a trama celestial na tela é a representação que a imaginação de Peter faz do momento de vida ou morte pelo qual está passando, já que terá de se submeter a uma neurocirurgia para continuar vivendo.

As linhas divisórias entre fantasia e realidade, todavia, jamais ficam definidas e nós mesmos, ao longo da narrativa, sentimos dúvidas se o que está se passando é verídico ou imaginário. Um grande mérito do roteiro, em sua maior parte extremamente inventivo e bem escrito, embora o romance quase instantâneo dos casal protagonista pareça pouco verossímil, principalmente diante dos tempos cínicos de hoje. Não se pode negar, no entanto, que o filme funciona muito bem como uma comédia romântica atípica e também como uma fábula a respeito da impotência humana diante do acaso e da morte. A direção de Powell, ademais, é fabulosa, inovadora em diversos aspectos, tanto que, nos primeiros minutos, nem lembramos que estamos assistindo a um filme da década de 40, tamanhos o apuro da fotografia e direção de arte. Algumas de suas ideias, como o uso do Technicolor nas cenas do mundo terreno e do preto e branco para caracterizar o plano etéreo, seriam uma grande influência até para cineastas como Wim Wenders, na sua fotografia para “Asas do Desejo” (Der Himmel Über Berlin, 1987). O uso de imagens “congeladas” também dá um ar de frescor à película, surgindo aqui, curiosamente, como mais um ponto em comum com o supracitado longa-metragem de Frank Capra.


Mas é mesmo quando parte para o lado de “filme de tribunal” que a dupla de cineastas anglo-húngara perdeu a mão, querendo realizar uma espécie de ensaio sobre as velhas rusgas entre a colônia americana e a metrópole inglesa, algo que pode ter soado relevante para o seu o tempo, mas que hoje, como já frisado mais acima, possui um certo sabor anacrônico, tornando as sequências do julgamento um tanto cansativas. Alguns podem fazer a defesa de que temas como a xenofobia, ainda perfeitamente atuais, possuem seu espaço no texto. É verdade, mas a inclusão destes temas de forma tão verborrágica não foi uma ideia feliz dos diretores-roteiristas, pois que o recurso acaba tirando muito da força dramática do desfecho. Além disso, procurar criticar xenofobia apelando para estereótipos, como o do Condutor 71, mostrado como um francês afetado, é no mínimo um grande equívoco. Outro problema é o elenco. David Niven sempre foi um canastrão e Kim Hunter também nunca foi lá muito convincente como estrela de uma produção, o que acaba enfraquecendo o apelo do casal junto ao público (neste aspecto, termina perdendo feio para James Stewart e Donna Reed, brilhantes em “It,s A Wonderful Life”).

Destarte, apesar destes percalços, “Neste Mundo e No Outro” demonstra boa parte do talento de Powell & Pressburger (os quais estão entre os cineastas preferidos de Martin Scorsese, por exemplo), autores inovadores que ajudaram muito o cinema britânico a alcançar um lugar de destaque na produção mundial, já que até então este não possuía o apelo popular de Hollywood e nem tinha reconhecido o apuro artístico do cinema europeu continental (mormente o francês e o alemão). O longa foi bem-sucedido nas bilheterias e pavimentou caminho para sucessos ainda maiores que viriam em seguida, como “Os Sapatinhos Vermelhos” (The Red Shoes, 1948) e “Narciso Negro” (Black Narcissus, 1947). Mesmo não constituindo uma obra-prima como estes, “A Matter Of Life And Death” é uma película que merece ser conhecida pelos cinéfilos de hoje, tanto por ser uma fantasia peculiar, como por seus aspectos imagéticos inventivos e atemporais. O Led Zeppelin que o diga.


Cotação:

Nota: 8,5


(1) O filme ganhou esse título nos EUA por pressão dos executivos norte-americanos. Eles achavam que a palavra “death” do título original faria o filme naufragar nas bilheterias por lá.
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3 comentários:

Jefferson C. Vendrame disse...

Grande Fábio, Como vai?
Cara, ótimo Post, ótimo texto, Kim Hunter é ótima, eu ainda não vi esse filme mas já o conhecia (também é impossível não ter ouvido falar) a tempos quero vê-lo, creio que no Brasil a tempos não é lançado né.... Lamentável. Abração, té mais....

Fábio Henrique Carmo disse...

Jefferson,

Na verdade,a Versátil relançou há pouco tempo no mercado brasileiro uma cópia restaurada em DVD. Qualidade muito boa de imagem e som, penas que não tem extras importantes. Mas vale à pena ter na coleção. Abraço!

ANTONIO NAHUD disse...

Vi um dia desses. O argumento é interessante e a fotografia preciosa, mas a dupla Niven-Hunter realmente não funciona.

O Falcão Maltês