terça-feira, 18 de outubro de 2011

Filmes Para Ver Antes de Morrer

O Homem Elefante
(The Elephant Man, 1980)


Nós somo
s o Homem Elefante


Talvez a mais perfeita síntese de “O Homem Elefante”, longa-metragem de 1980 dirigido por um ainda pouco conhecido David Lynch, tenha sido dada pelo próprio diretor ao comentar o personagem-título do seu trabalho: “uma bela alma aprisionada em um corpo horrível”. Esta é a perfeita tradução de quem realmente foi John Merrick, um homem portador de uma doença rara, a neurofribomatose múltipla e, dentre os pacientes da enfermidade, ele possivelmente foi aquele em que a mesma se apresentou com maior gravidade. Sim, essa história foi real, ocorrida no século XIX, durante a Inglaterra da Era Vitoriana e, depois de percorrer as pouco mais de duas horas de sua adaptação para o cinema, você perceberá que muitos dos “dissabores” pelos quais já passou na vida são uma mera contrariedade diante do que enfrentou este homem. Devido à sua doença, Merrick (no filme, com interpretação de John Hurt) apresentava um corpo totalmente deformado, com uma pele que lembrava a de um elefante (daí o seu “apelido”) e extremidades do corpo exageradamente desenvolvidas. Sua cabeça era tão desproporcional em relação ao corpo que o impedia de dormir como uma pessoa normal, não podendo deitar-se sob pena de morrer sufocado. Tinha uma vida miserável, sendo exibido como atração principal em um circo de horrores, onde era frequentemente espancado por seu “dono” , até ser encontrado pelo médico Frederick Treves (Anthony Hopkins na adaptação), o qual, possuidor de bom caráter, o leva para viver em um respeitado hospital em Londres, onde passa a receber cuidados constantes, mas ainda continua a ser alvo da curiosidade e reijeição alheia e tem dificuldades em se inserir socialmente.

A versão cinematográfica para história tão comovente era um antigo sonho do cineasta Mel Brooks, o qual lutou durante anos para conseguir viabilizar o projeto. Seu espírito de entrega foi tão grande que não consta seu nome como produtor nos créditos do filme. Famoso diretor de comédias, ele temia que o público não levasse a sério o que veria caso seu nome se fizesse presente na projeção. Ademais, Brooks teve outro grande mérito ao convidar o então pouco conhecido David Lynch para assumir a direção. Ele era apenas o diretor do esquisito “Eraserhead” (1977) quando aceitou o desafio de conduzir um drama que poderia descambar para o melodramático e o sentimentalismo barato como enorme facilidade. Mas, Lynch, claro, demonstrando todo seu talento, jamais cairia nessa armadilha. Ao contrário, usou de um rigor formal extremo, contando a história da forma mais objetiva possível, sem procurar induzir o espectador às emoções, já que estas brotariam naturalmente, sem qualquer esforço. Até mesmo sua tendência ao abstrato, algo tão comum em sua filmografia, foi deixada de lado em prol de uma narrativa direta e detentora de um profundo respeito pelo biografado. A rigidez da direção implica, inclusive, na quase ausência de trilha-sonora, uma decisão muito feliz, já que a sua inserção indevida, o que se daria provavelmente com temas catárticos, levaria de maneira fatal ao pieguismo.


Os únicos momentos em que Lynch deixa transparecer sua vertente mais abstrata são aqueles em que se vale da influência do expressionismo alemão para traduzir em imagens o que seriam pesadelos recorrentes de Merrick, sonhos onde sua mãe é atacada por uma manada de elefantes, podendo até ser identificada uma sugestão sexual nas sequências. Além disso, o princípio da narrativa é concebido como um suspense, uma vez que durante os primeiros 15 minutos, nos quais mostra-se a busca do Dr. Treves pelo misterioso homem que espanta aqueles que o veem, o personagem-título não é mostrado. Esse recurso, ao lado da fotografia em preto e branco, sugere ainda mais semelhanças com o citado movimento artístico. Um desavisado pode ate mesmo assistir ao longa sem acreditar que é uma produção estadunidense.

Por outro lado, os méritos de “O Homem Elefante” vão além dos puramente imagéticos. O roteiro, escrito por Christopher De Vore, Eric Bergren, além do próprio Lynch e baseado nos diários verídicos do Dr. Frederick Treves, é simplesmente magistral ao saber contrapor o exterior grotesco de John Merrick com seu interior inversamente proporcional. Merrick é um homem inteligente, culto, amável e cavalheiro, uma boa alma e ainda por cima dotada de grande sensibilidade artística. Em outras palavras: o oposto do que sua figura física transparece. E, na construção desse conflito entre imagem superficial e essencial, somos envolvidos em uma sucessão de cenas emocionantes. A sequência em que Merrick recita o Salmo 23 demonstrando a Treves e a seu superior no hospital que era algo além de um débil mental é uma das mais pungentes que já tive a oportunidade de ver em uma obra cinematográfica. Igualmente comovente é aquela em que Merrick afirma que é “um homem, não um animal”, após ser perseguido por curiosos em uma estação de trem. Ao mesmo tempo, Lynch, fugindo de facilidades, também não isenta totalmente o Dr. Treves de suas responsabilidades. É certo que ele tem ótimas intenções, mas sua conduta muitas vezes se assemelha ao do dono do circo onde vivia o paciente ao expô-lo à curiosidade alheia e alcançar fama e respeito de seus colegas cientistas ao exibir Merrick em congressos científicos.


Aliados aos méritos roteirísticos, estão os do elenco. Anthony Hopkins como o Dr. Treves está absolutamente excelente, em uma dos melhores trabalhos de sua carreira, fazendo-nos esquecer que um dia ele interpretou Hannibal Lecter. Por sua vez, Anne Bancroft (a Mrs. Robinson de “A Primeira Noite de Um Homem”), apesar de ter uma participação mais limitada, também está ótima como a Sra. Kendall, uma importante atriz da época que, com seu prestígio e carinho, confere alguma autoestima ao pobre protagonista Há, ainda, a boa presença de John Gielgud como o Dr. Carr Gomm, o austero, mas também sensível diretor do hospital. Contudo, obviamente, o maior show fica por conta de John Hurt na pele de Merrick. Mesmo que irreconhecível debaixo de tanta maquiagem (o ator chegou a passar 12 horas com maquiadores para poder entrar em cena), ele confere uma extrema humanidade ao personagem, sabendo transmitir, principalmente através do olhar e do tom de voz, o interior e as emoções daquele homem fustigado por um destino cruel. Uma pena que no Oscar ele tenha sofrido a concorrência do também brilhante Robert De Niro em "Touro Indomável" (Raging Bull, 1980). Os dois mereciam, na verdade.

Nas últimas linhas, afirmei que a interpretação do personagem de Merrick é dotada de muita humanidade. Pois bem, talvez o adjetivo “humano” seja o que melhor condiz com este trabalho de Lynch. Sem malabarismos, exageros ou pieguices, Lynch nos mostra, com grande refinamento, rigor e objetividade, que o homem elefante somos todos nós, seres humanos, sempre em busca de aceitação, compreensão, respeito e amor, mesmo que, como mencionado acima, dificilmente passemos por tantas agruras quanto ele. John Merrick é a representação extrema de nossas carências e também de nossas virtudes. Já tive a oportunidade de assistir três vezes a esta obra de arte irrepreensível e em todas elas nunca deixei de ficar tocado com a tormentosa existência de seu protagonista. E acredito que você também não ficará indiferente, afinal, todos nós já nos sentimos, pelo menos em algum momento de nossa existência, como o Homem Elefante.


Cotação e nota: Obra-prima.
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5 comentários:

renatocinema disse...

Um filme tocante que consegui assistir recentemente.

Uma prova de quanto a sociedade julga, equivocadamente, pelo seu padrão de beleza exterior.

Bela homenagem.

PARABÉNS

Alan Raspante disse...

obra-prima? e eu ainda não vi =(

Hugo disse...

É um filme que ainda não tive oportunidade de assistir, mas tenho curiosidade.

Assisti "Eraserhead" há pouco tempo e foi difícil chegar até o final. Gosto de filmes diferentes, mas este trabalho de David Lynch não me agradou.

Abraço

Unknown disse...

Eraserhead é dificil mesmo, mas Homem Elefante é de uma sensibilidade... Obra-Prima mesmo! Um dos meus preferidos de Lynch, q aqui mostra um lado mais intimista, assim como fez em Historia Real, q tb considero obra-prima. Otima postagem, Parabens por homenagear esse belo filme.

ANTONIO NAHUD disse...

Brilhante! A fotografia em preto-e-branco expressionista de Freddie Francis rouba a cena.

O Falcão Maltês