Amar Foi Minha Ruína
(Leave Her To Heaven, 1945)As cores de um melodrama-noir
É comum associarmos o cinema noir à fotografia em preto e branco, algo perfeitamente natural, já que este gênero surgiu a partir da influência do expressionismo alemão e seus diretores que imigraram para os EUA fugindo do nazismo. Além disso, o noir era composto de produções de baixo orçamento, o que geralmente impossibilitava o uso do ainda caro technicolor, sendo este usado com mais frequência em grandes produções como “...E o Vento Levou” ou “O Mágico de Oz”. Assim, é com uma certa estranheza que ao vermos “Amar Foi Minha Ruína” nos deparamos com um resplandecente uso de cores, utilizadas não apenas como adorno fotográfico, mas também possuindo simbologias que enriquecem a adaptação para a tela grande do livro homônimo escrito por Ben Ames Williams. O impacto das cores se faz sentir ainda em uma das primeiras sequências, quando vemos a impressionante beleza de Gene Tierney, com o seu rosto que mais parece de um anjo moldado por algum escultor grego. Deve ter sido um enorme encanto, para o público de 1945, assistir a cenas com aqueles incríveis olhos azuis em uma tela de cinema, ainda mais se lembrarmos que seu maior sucesso havia sido no papel de Laura, personagem central do filme homônimo (de 1944 e um dos grandes clássicos do noir) produzido no ano anterior e rodado em p&b.
A escolha de Tierney para protagonista (que se deu depois da recusa de Rita Hayworth) foi mais do que feliz, uma vez que sua beleza contrasta, tais como as cores branca e preta, com o interior sinistro de Ellen Berent, sua personagem. O “preto e branco” existente na projeção ocorre nesta contraposição entre uma criatura tão bela exteriormente e tão horrível no seu íntimo. Palmas para o cineasta John M. Stahl, conhecido diretor de melodramas como “Imitação da Vida” (Imitation Of Life, 1934) e que aqui nos entrega o melhor trabalho de sua carreira, fugindo do tom sentimental da maior parte de sua obra para promover uma autêntica investigação sobre o lado mais pérfido que pode brotar de um ser humano.
O roteiro, construído com paciência e narrado em flashback, vai revelando lentamente o perfil da citada Ellen, uma mulher de família abastada que perdeu o pai recentemente. Somos apresentados a ela quando Richard Harland (Cornel Wilde), um escritor em férias, acaba se encontrando com a mesma em uma viagem de trem para o Novo México. A atração entre os dois surge quase imediatamente, principalmente da parte de Ellen, a qual vê muitas semelhanças entre Richard e seu falecido pai. Ela está noiva de um promotor de justiça, Russel Quinton (Vincent Price), mas não hesita em terminar rapidamente a relação com o mesmo e contrair um casamento relâmpago com Richard. Este, porém, vai percebendo gradualmente que Ellen tem um relacionamento difícil com as pessoas que a cercam, seja com a irmã Ruth (Jeanne Crain) ou a mãe (Mary Philips). E não tarda que a verdadeira personalidade de Ellen, possessiva e paranoica, comece a interferir no relacionamento do casal, já que a esposa repele a aproximação de qualquer outra pessoa que possa “se colocar” entre os dois, até mesmo de Danny, o irmão mais novo e paraplégico do marido.
Elaborado com inúmeras sutilezas, o enredo, por meio de diálogos muito bem escritos, evolui deixando pistas do que pode acontecer, como ao sugerir em alguns momentos a relação edipiana de Ellen com o seu genitor ou quando ela rejeita a sugestão de Richard de contratar uma empregada, já que seria a única pessoa que poderia lhe servir ou agradá-lo. Desta forma, ocorre um crescente dramático e mesmo de suspense que surpreende o espectador até chegarmos a cenas que se tornariam muitos imitadas posteriormente, [SPOILER] como aquela em que Ellen se atira escada abaixo para provocar um aborto ou ainda quando assiste impassível ao afogamento do jovem cunhado [FIM DE SPOILER]. Entretanto, nada disso funcionaria sem que a personagem central tivesse uma intérprete à altura. E Tierney, hoje uma atriz estranhamente pouco lembrada pelo grande público, se mostrou a escolha ideal não apenas pela sua supramencionada beleza, mas também por nos presentear aqui com aquela que pode ser considerada a melhor atuação de sua carreira, a qual acabou lhe rendendo uma indicação ao Oscar de melhor atriz (perdeu para Joan Crawford com “Alma Em Suplício”). Outro destaque entre as atuações fica com Jeanne Crain, na pele da irmã de Ellen, mostrando talento dramático, além de ser também muito bonita. Já Cornel Wilde deixa a desejar com uma interpretação apenas competente de seu Richard, sem maior brilho.
Como já destacado acima, em “Amar Foi Minha Ruína” a fotografia é um caso à parte, mas não apenas por destacar a beleza da atriz principal. Leon Shamroy, vencedor do Oscar por este trabalho, captou com extraordinária beleza as paisagens desérticas do Novo México, assim como os lagos e florestas do Maine. Algumas tomadas mais parecem verdadeiras pinturas de tão bonitas. Ademais, Shamroy soube destacar os figurinos usados por Ellen no decorrer da trama, pensados para surgirem de forma antagônica aos demais, pois que somente ela usa cores vivas como o vermelho, o azul e o verde, enquanto aos demais são reservadas cores neutras. Tão belas imagens são ainda sublinhadas pela ótima trilha de Alfred Newman, muito bem utilizada para marcar os momentos de tensão da narrativa. Alguns erros de continuidade, entretanto, se fazem notar, como em algumas sequências que se iniciam à noite e, em seguida, vemos o sol brilhando na imagem. Lapsos de Stahl que talvez tenham lhe custado o esquecimento por parte da Academia de Hollywood.
Forte e muito bem realizada, o excelente título original da produção, “Leave Her To Heaven”, possivelmente traduz o pensamento que perpassa a mente do espectador ao fim da experiência. A frase foi retirada do “Hamlet” de William Shakespeare e se refere à Rainha Gertrude, a qual se casou com o assassino do seu marido, podendo ser traduzida como “deixe-a para o céu julgar”. Nada mais adequado para uma mulher que transformou o amor que sentia em algo destrutivo não somente para ela, como também para o objeto do seu sentimento. Tendo envelhecido muito bem, é intrigante que este melodrama-noir, apesar de muito copiado, não seja muito lembrado pelos admiradores da Sétima Arte. Uma obra que merece ser mais conhecida.
Cotação:
Nota: 9,5
13 comentários:
Eu gostei muito deste filme. Eu li sobre ele em um livro do Scorsese sobre cinema americano. Noir exemplar mesmo.
Eta que letrinha pequenininha! Assim fica difícil ler, caro Fábio.
O Rato Cinéfilo
Rato, a fonte que utilizo é a "normal" e nunca tinha recebido reclamações quanto ao seu tamanho. Creio que usar uma tamanho maior ficaria muito grande. De qualquer forma, obrigado pela visita ao blog.
Oi, Fábio. Excelente blogger esse. Temos a mesma temática, acredite. Apesar de algumas poucas diferenças nas mameira como redigimos nosso texto. Sou professor. Gostei de mais de teu blogger. Estarei seguindo... um abraço
Ótimo texto.
Preciso ver o filme.
Adoro produções do cinema noir.
Fabio, já me indicaram esse mais ainda não tive a oportunidade de assistir. Teu otimo texto me deu vontade de ver logo. Adoro o cinema noir e parece q esse é um dos percusores. Abração!
Desculpe a insistência, caro Fábio, mas será que você não está usando a fonte "pequena"? No meu blogue eu uso a "normal" e se você for conferir está um pouco acima desta.
O Rato Cinéfilo
Rato, já conferi e a fonte que está selecionada é a "normal". Abraço e a até a próxima!
Concordo com Rato, Fábio. Seria bacana se vc aumentasse um pouco a fonte.. Esse filme é uma obra-prima. Não me canso de vê-lo. O John M. Stahl era um ótimo diretor. Pena que o mocinho é o inexpressivo Cornel Wilde.
O Falcão Maltês
Pois é, caro Fábio, julgo que é mesmo isso, o tamanho da fonte - mesmo sendo a mesma - varia de template para template. O "arial", que você passou a usar agora, tem um pouco mais de definição, mas mesmo assim continua muito pequena.
Para conseguir melhores resultados, tenho uma sugestão para você (que é aquilo que eu faço sempre): escreva primeiro os seus posts no Word (onde pode definir muito melhor o tamanho da fonte) e depois faça um copy/past para o Blogger. Vai ver que consegue um tamanho mais correcto e de fácil leitura
Entretanto já linkei o seu blog no meu, pois me parece que vou voltar aqui mais vezes.
Já agora, e se me permite, uma outra sugestão: faça uma página (é uma das boas facilidades do Blogger que deve ser explorada) com a listagem alfabética dos filmes já comentados por você e a coloque na barra lateral (tal como eu fiz no blogue do Rato). Assim permite as pessoas interessadas em ler sobre determinado filme serem direccionadas directamente para ele.
Outra coisa: se você está interessado na música gloriosa do passado (anos 50, 60 e 70), eu tenho outro blogue (o Rato Records), que disponibiliza muita coisa desses anos. O link está no início da barra lateral do blogue de cinema, por isso é só clicar
Cumprimentos cinéfilos (e musicais...)
O Rato Cinéfilo
Entretanto, e por causa do tamanho da fonte, esqueci o principal: dizer que este filme é mesmo muito bom, não cansando de se rever.
Gene Tierney pode estar esquecida pelo grande público, mas certamente existe uma minoria - onde eu me incluo - que continua a lembrá-la com fervor e paixão. Por causa da sua fisionomia e das brilhantes interpretações que nos legou - de que este filme é apenas um exemplo (mas um dos melhores exemplos).
Saudações cinéfilas
O Rato Cinéfilo
Rato, eu já faço meus textos no Word, mas o que ocorre é que o Blogger perde a formatação do editor de textos.
De qualquer forma, diante deste problema da fonte acabei por criar mais vontade para fazer algumas alterações no visual do blog como um todo. Suas sugestões são interessantes e vou levá-las em consideração nesse processo.
Ah, e obrigado pelos elogios ao conteúdo. Abraço!
Postar um comentário