O Enigma de Kaspar Hauser
(Jeder für Sich und Gott Gegen Alle, 1974)
Intolerância
Antes de tudo, convém explicar quem foi Kaspar Hauser, personagem central desta obra do cineasta alemão Werner Herzog. Trata-se de um rapaz que foi encontrado, em 1828, em uma praça, apenas com uma carta na mão, na cidade alemã de Nuremberg. Ele não sabia ler, escrever, falar ou mesmo andar. Havia passado toda a sua vida trancado em uma espécie de masmorra, desprovido de qualquer contato com outras pessoas. Até mesmo sua comida era colocada no ambiente enquanto ele dormia. Algum tempo depois de sua libertação e convívio com a sociedade, o mesmo é misteriosamente assassinado com uma facada no peito. Jamais o mistério de sua origem foi desvendado, tendo surgido diversas teorias a respeito, entre estas a de que ele seria apenas um mendigo espertalhão (que “se fez de doido para melhor passar”, para usarmos uma expressão popular) e outra de que seria neto de Napoleão Bonaparte, escondido da sociedade por questões que envolveriam sucessão e bastardia.
O personagem histórico se constitui em uma ótima matéria-prima para o citado Herzog, um diretor bastante afeito a enfocar tipos deslocados da sociedade, vivendo em uma espécie de mundo próprio à parte dos demais, tendência que ainda manteve com o passar dos anos, basta lembrarmos de “Fitzcarraldo” (1982) e o documentário “O Homem Urso” (Grizzly Man, 2005). Ele é, ao lado de Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder, um dos grandes expoentes do chamado “Novo Cinema Alemão”, expressão cunhada para designar as produções capitaneadas por jovens diretores germânicos no final dos anos 60 e início dos 70, bastante influenciados pela Nouvelle Vague e também pelo Cinema Novo brasileiro. Destarte, ao contrário de Wim Wenders, por exemplo, o qual toca em questões existenciais com marcante sensibilidade, Herzog costuma caminhar em uma vertente mais cerebral, realizando análises das interações do indivíduo com a sociedade de uma maneira menos emocional, digamos assim. “O Enigma de Kaspar Hauser”* parece ser a epítome desta característica do cineasta alemão. Com um tema que poderia facilmente descambar para o sentimentalismo barato nas mãos de outros nomes, o diretor alemão traça um verdadeiro estudo não só das interações do indivíduo com um meio que lhe é hostil, mas também da própria ideia do que constitui a natureza humana.
Na narrativa de Herzog, Kaspar Hauser, depois de libertado, tem de se adaptar a um mundo que lhe é totalmente desconhecido, entrando em contato com regras e conceitos estranhos e que, para ele, são de difícil apreensão, já que havia passado toda sua vida tendo como único “companheiro” de confinamento um cavalinho de madeira e rodinhas. Entretanto, a despeito de seu anterior confinamento, Kaspar parece ser um homem inteiramente livre, despido dos grilhões colocados pelos condicionamentos culturais, entendendo o mundo de uma forma particular perfeitamente traduzida na frase que serve como prólogo ao longa-metragem: “vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?”. Ele parece enxergar o mundo como uma criança o faz, questionando toda e qualquer possível “verdade” que lhe é posta, sejam estes conceitos religiosos, culturais ou científicos (as cenas em que Kaspar dialoga com pastores e um professor de Lógica são particularmente interessantes).
Para interpretar um personagem tão peculiar, Herzog usou de uma escolha singular. O papel coube a Bruno S., na realidade um não-ator que passou a maior parte da vida internado em centros para alienados mentais. Ou seja, ele próprio tinha muito de Kaspar Hauser, o que redunda em uma atuação marcante, mesmo que você considere que ele estava interpretando a si mesmo (ele faria apenas mais um filme, "Stroszek", também de Herzog, que tinha um imenso trabalho para fazê-lo atuar). A verdade presente na interpretação do personagem central aliada a um clima onírico concebido pelo diretor , além de certa objetividade na narração dos acontecimentos - em boa parte da projeção há um escrivão reduzindo a termo todos os fatos que observa – dão ao filme um sabor único, causando estranheza mesmo se visto por um espectador mais habituado ao cinema dito “de arte”. Tal sensação de estranheza, bem como a veia cerebral do diretor, todavia, terminam por causar um certo distanciamento que se torna o calcanhar de Aquiles do filme, resultando, até certo ponto, em uma falta de identificação do público com o personagem. Não que tenhamos antipatia por Kaspar, mas quando comparado a “O Homem Elefante” (The Elephant Man, 1980), de David Lynch - para tomarmos um outro exemplo de protagonista que vivia isolado da sociedade e depois passa a ser integrado a ela - o personagem trabalhado por Herzog empalidece. O diretor parece esquecer de recompensar o espectador com um pouco de emoção – prova disso é a quase ausência de trilha sonora ao longo dos seus 110 minutos.
Destarte este pequeno equívoco, “O Enigma de Kaspar Hauser” (vencedor do prêmio especial do Júri no Festival de Cannes) é um libelo em defesa do livre pensamento, do espírito humano e um profundo questionamento sobre o que realmente somos. Quanto do que há em nós é propriamente nosso ou foi imposto e condicionado pelo meio em que vivemos? Será que somos realmente livres? Ou, ainda, quanto de humano pode existir em alguém que viveu completamente isolado de outros seres humanos? Herzog parece nos responder tornando Kaspar Hauser o mais humano de todos os personagens vistos na tela e sugerindo que [SPOILER] o seu assassinato foi resultado de seu espírito livre, gerando intolerância e desconforto na comunidade em que vivia. A sequência final, onde um grupo de médicos disseca o seu cérebro em busca de respostas para o seu comportamento “diferente” resume perfeitamente as limitações humanas diante daquilo que não consegue explicar, ou, simplesmente, aceitar.
Cotação:
Nota: 9,5
* O título original do longa, "Jeder für Sich und Gott Gegen Alle", foi retirado por Herzog de “Macunaíma”, obra do nosso Mário de Andrade, e significa “Cada Um Por Si e Deus Contra Todos”.
(Jeder für Sich und Gott Gegen Alle, 1974)
Intolerância
Antes de tudo, convém explicar quem foi Kaspar Hauser, personagem central desta obra do cineasta alemão Werner Herzog. Trata-se de um rapaz que foi encontrado, em 1828, em uma praça, apenas com uma carta na mão, na cidade alemã de Nuremberg. Ele não sabia ler, escrever, falar ou mesmo andar. Havia passado toda a sua vida trancado em uma espécie de masmorra, desprovido de qualquer contato com outras pessoas. Até mesmo sua comida era colocada no ambiente enquanto ele dormia. Algum tempo depois de sua libertação e convívio com a sociedade, o mesmo é misteriosamente assassinado com uma facada no peito. Jamais o mistério de sua origem foi desvendado, tendo surgido diversas teorias a respeito, entre estas a de que ele seria apenas um mendigo espertalhão (que “se fez de doido para melhor passar”, para usarmos uma expressão popular) e outra de que seria neto de Napoleão Bonaparte, escondido da sociedade por questões que envolveriam sucessão e bastardia.
O personagem histórico se constitui em uma ótima matéria-prima para o citado Herzog, um diretor bastante afeito a enfocar tipos deslocados da sociedade, vivendo em uma espécie de mundo próprio à parte dos demais, tendência que ainda manteve com o passar dos anos, basta lembrarmos de “Fitzcarraldo” (1982) e o documentário “O Homem Urso” (Grizzly Man, 2005). Ele é, ao lado de Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder, um dos grandes expoentes do chamado “Novo Cinema Alemão”, expressão cunhada para designar as produções capitaneadas por jovens diretores germânicos no final dos anos 60 e início dos 70, bastante influenciados pela Nouvelle Vague e também pelo Cinema Novo brasileiro. Destarte, ao contrário de Wim Wenders, por exemplo, o qual toca em questões existenciais com marcante sensibilidade, Herzog costuma caminhar em uma vertente mais cerebral, realizando análises das interações do indivíduo com a sociedade de uma maneira menos emocional, digamos assim. “O Enigma de Kaspar Hauser”* parece ser a epítome desta característica do cineasta alemão. Com um tema que poderia facilmente descambar para o sentimentalismo barato nas mãos de outros nomes, o diretor alemão traça um verdadeiro estudo não só das interações do indivíduo com um meio que lhe é hostil, mas também da própria ideia do que constitui a natureza humana.
Na narrativa de Herzog, Kaspar Hauser, depois de libertado, tem de se adaptar a um mundo que lhe é totalmente desconhecido, entrando em contato com regras e conceitos estranhos e que, para ele, são de difícil apreensão, já que havia passado toda sua vida tendo como único “companheiro” de confinamento um cavalinho de madeira e rodinhas. Entretanto, a despeito de seu anterior confinamento, Kaspar parece ser um homem inteiramente livre, despido dos grilhões colocados pelos condicionamentos culturais, entendendo o mundo de uma forma particular perfeitamente traduzida na frase que serve como prólogo ao longa-metragem: “vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?”. Ele parece enxergar o mundo como uma criança o faz, questionando toda e qualquer possível “verdade” que lhe é posta, sejam estes conceitos religiosos, culturais ou científicos (as cenas em que Kaspar dialoga com pastores e um professor de Lógica são particularmente interessantes).
Para interpretar um personagem tão peculiar, Herzog usou de uma escolha singular. O papel coube a Bruno S., na realidade um não-ator que passou a maior parte da vida internado em centros para alienados mentais. Ou seja, ele próprio tinha muito de Kaspar Hauser, o que redunda em uma atuação marcante, mesmo que você considere que ele estava interpretando a si mesmo (ele faria apenas mais um filme, "Stroszek", também de Herzog, que tinha um imenso trabalho para fazê-lo atuar). A verdade presente na interpretação do personagem central aliada a um clima onírico concebido pelo diretor , além de certa objetividade na narração dos acontecimentos - em boa parte da projeção há um escrivão reduzindo a termo todos os fatos que observa – dão ao filme um sabor único, causando estranheza mesmo se visto por um espectador mais habituado ao cinema dito “de arte”. Tal sensação de estranheza, bem como a veia cerebral do diretor, todavia, terminam por causar um certo distanciamento que se torna o calcanhar de Aquiles do filme, resultando, até certo ponto, em uma falta de identificação do público com o personagem. Não que tenhamos antipatia por Kaspar, mas quando comparado a “O Homem Elefante” (The Elephant Man, 1980), de David Lynch - para tomarmos um outro exemplo de protagonista que vivia isolado da sociedade e depois passa a ser integrado a ela - o personagem trabalhado por Herzog empalidece. O diretor parece esquecer de recompensar o espectador com um pouco de emoção – prova disso é a quase ausência de trilha sonora ao longo dos seus 110 minutos.
Destarte este pequeno equívoco, “O Enigma de Kaspar Hauser” (vencedor do prêmio especial do Júri no Festival de Cannes) é um libelo em defesa do livre pensamento, do espírito humano e um profundo questionamento sobre o que realmente somos. Quanto do que há em nós é propriamente nosso ou foi imposto e condicionado pelo meio em que vivemos? Será que somos realmente livres? Ou, ainda, quanto de humano pode existir em alguém que viveu completamente isolado de outros seres humanos? Herzog parece nos responder tornando Kaspar Hauser o mais humano de todos os personagens vistos na tela e sugerindo que [SPOILER] o seu assassinato foi resultado de seu espírito livre, gerando intolerância e desconforto na comunidade em que vivia. A sequência final, onde um grupo de médicos disseca o seu cérebro em busca de respostas para o seu comportamento “diferente” resume perfeitamente as limitações humanas diante daquilo que não consegue explicar, ou, simplesmente, aceitar.
Cotação:
Nota: 9,5
* O título original do longa, "Jeder für Sich und Gott Gegen Alle", foi retirado por Herzog de “Macunaíma”, obra do nosso Mário de Andrade, e significa “Cada Um Por Si e Deus Contra Todos”.
2 comentários:
Não conhecia esse, mas fiquei interessado, teu texto tb tá muito bom. Abs!
Não conhecia o filme, assim como o Celo. Mas, pocha, que história bacana... Fiquei realmente curioso!
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