Transtorno de personalidade
O cinema brasileiro tem uma antiga tradição de filmar a criminalidade. “O Bandido da Luz Vermelha”, passando por “Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia”, até os mais recentes “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” são exemplos do apreço tanto do público quanto dos realizadores pela temática do marginal, daqueles que estão fora da ordem estabelecida. Talvez só o cinema norte-americano possua também uma afinidade tão grande com os fora-da-lei (não à toa, lá surgiu o gênero do “filme de gângster”). Contudo, é óbvio que, diante da quantidade, a qualidade de tais produtos acaba oscilando na mesma proporção. Se o mencionado “Cidade de Deus” se mostra como exemplo primoroso da tendência, causando impacto não apenas no âmbito nacional, mas também internacional, “Salve Geral”, filme que chegou a ser escolhido para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro representando o Brasil, se mostra como um claro fracasso recente.
Eis que surge agora este “Assalto ao Banco Central”, longa baseado no fato verídico do assalto ao banco do título em Fortaleza - CE, um dos mais espetaculares crimes não só da história do Brasil, mas também do mundo. Os R$ 164,7 milhões levados pelos bandidos foram alcançados de forma incrível, através de um túnel que desembocava no único ponto cego existente dentro do cofre repleto de câmeras de segurança. Além disso, a maior parte dos seus autores não foi presa até hoje, assim como a maior parcela do montante furtado não foi recuperada – busca até mesmo dificultada por se tratar de notas antigas que haviam sido recolhidas pelo BC junto à rede bancária. Ou seja, o fato por si só já é praticamente um filme pronto. E com um forte aliado por se tratar de uma história verídica, pois que, sendo assim, já supera a necessidade da “suspensão de descrença” tão arduamente buscada por produções semelhantes, mas apoiadas exclusivamente em elementos ficcionais.
A adaptação de tais fatos para telona, porém, caiu em mãos inexperientes, as do global Marcos Paulo, conhecido ator e diretor de telenovelas, mas assumindo aqui sua primeira empreitada cinematográfica. Talvez devido a essa inexperiência com o cinema, o diretor acabou por utilizar tiques característicos dos trabalhos globais, já que novelas costumam apresentar acentuadas oscilações de tons, ora pendendo para o drama, ora para a comédia, como maneira de agradar a uma massa que anseia por mera distração durante a noite. Só que o cinema é um veículo bem mais exigente e certos tropeços de roteiro e direção até mesmo ignorados pelo público da televisão não são relevados pelos espectadores da sala escura – e muito menos pela crítica especializada. A impressão que fica aqui é de que o filme sofre de algum transtorno de personalidade, já que em nenhum momento se sabe ao certo o que ele pretender ser.
Possivelmente o maior sintoma de tal afirmação foi a declaração do próprio Marcos Paulo durante a coletiva no último festival de Paulínia (que foi encerrado com a exibição do longa em comento). Ele mencionou que apenas na fase de edição percebeu o acentuado lado cômico que certas sequências possuíam, o que o levou a selecioná-las para a versão final da produção. Ou seja, aparentemente nem o próprio Marcos Paulo sabia o que queria do seu filme, sendo provavelmente levado a deixar algumas passagens cômicas na montagem na ânsia de agradar ao público médio brasileiro. Além disso, também é clara no filme a sua vontade de se tornar o próximo “Tropa de Elite”, obra que gerou bordões populares como o famoso “pede pra sair”. Contudo, se o filme de José Padilha sabe equilibrar perfeitamente sua pesada trama com alívios cômicos, “Assalto ao Banco Central” transforma esse pretenso equilíbrio em verdadeira bipolaridade. Ficamos sem saber se estamos assistindo a um filme policial ou a uma comédia.
Mas seria injusto deixar o fardo do insucesso exclusivamente nas costas do diretor. O roteiro, escrito por Renê Belmonte, também não é dos mais felizes. Mostra-se como um mistura de “O Plano Perfeito”, de Spike Lee, e “Onze Homens e Um Segredo”, de Steven Sodebergh. Do primeiro, retira sua estrutura não linear, exibindo momentos da elaboração e execução do crime intercalados por outros onde o mesmo já é investigado pela Polícia Federal. Do segundo, procura trazer a estrutura de apresentação dos personagens, com a busca dos parceiros de empreitada por um líder que é o cérebro das ações. Entretanto, nenhuma das duas ideias funciona a contento nesta produção nacional. O vai-e-vem temporal deixa a narrativa por vezes confusa e a apresentação de tipos não funciona exatamente porque os personagens, em sua maioria, são mal caracterizados. Além disso, as falas em diversas passagens são repletas de clichês, com um nível quase amador, o que acaba se tornando uma forma de humor bastante involuntária. Certos recursos, ademais, como colocar o líder do bando jogando xadrez para, assim, denotar sua inteligência, se mostram primários, como que duvidando da inteligência do espectador.
A pobreza dos diálogos só não se faz tão assustadora devido à competência do elenco escalado. Milhem Cortaz está ótimo como Barão, o líder do grupo, assim como Giulia Gam como a policial federal (lésbica) que investiga o assalto. Outro destaque é Tonico Pereira como o comunista que participa da ação como engenheiro, alegando que posteriormente irá dividir o produto com os trabalhadores. Mas quem rouba mesmo a cena é Lima Duarte. Seu delegado Amorim é o personagem mais tridimensional da narrativa e ele parece estar inteiramente à vontade no papel. A verdade é que o elenco acaba se mostrando o principal motivo do fato de que o longa, apesar dos seus flagrantes defeitos, não se torna chato de assistir. Vale ressaltar que há realmente boas sequências, principalmente aquelas com o referido tom cômico (e as risadas frequentes durantes a sessão me fizeram perceber que elas realmente agradaram). Ademais, o diretor soube fugir das composições imagéticas da televisão e utilizar uma linguagem realmente cinematográfica no que diz respeito a enquadramentos (não há aquele excesso de closes característicos da TV) e ritmo da narração.
“Assalto ao Banco Central” não é um desastre, mas o que fica deveras perceptível é que o seu resultado poderia ser muito superior caso tivesse sido levado adiante por mãos mais experientes, principalmente se considerarmos o material quase pronto e acabado que lhe deu origem. Talvez na sua próxima experiência, Marcos Paulo se lembre que filmes necessitam de uma unidade, nunca deixando o público na dúvida de estar assistindo a uma comédia ou a um filme policial. Afinal, filme não é novela, é bom sempre lembrar.
Cotação:
Nota: 6,5
O cinema brasileiro tem uma antiga tradição de filmar a criminalidade. “O Bandido da Luz Vermelha”, passando por “Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia”, até os mais recentes “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” são exemplos do apreço tanto do público quanto dos realizadores pela temática do marginal, daqueles que estão fora da ordem estabelecida. Talvez só o cinema norte-americano possua também uma afinidade tão grande com os fora-da-lei (não à toa, lá surgiu o gênero do “filme de gângster”). Contudo, é óbvio que, diante da quantidade, a qualidade de tais produtos acaba oscilando na mesma proporção. Se o mencionado “Cidade de Deus” se mostra como exemplo primoroso da tendência, causando impacto não apenas no âmbito nacional, mas também internacional, “Salve Geral”, filme que chegou a ser escolhido para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro representando o Brasil, se mostra como um claro fracasso recente.
Eis que surge agora este “Assalto ao Banco Central”, longa baseado no fato verídico do assalto ao banco do título em Fortaleza - CE, um dos mais espetaculares crimes não só da história do Brasil, mas também do mundo. Os R$ 164,7 milhões levados pelos bandidos foram alcançados de forma incrível, através de um túnel que desembocava no único ponto cego existente dentro do cofre repleto de câmeras de segurança. Além disso, a maior parte dos seus autores não foi presa até hoje, assim como a maior parcela do montante furtado não foi recuperada – busca até mesmo dificultada por se tratar de notas antigas que haviam sido recolhidas pelo BC junto à rede bancária. Ou seja, o fato por si só já é praticamente um filme pronto. E com um forte aliado por se tratar de uma história verídica, pois que, sendo assim, já supera a necessidade da “suspensão de descrença” tão arduamente buscada por produções semelhantes, mas apoiadas exclusivamente em elementos ficcionais.
A adaptação de tais fatos para telona, porém, caiu em mãos inexperientes, as do global Marcos Paulo, conhecido ator e diretor de telenovelas, mas assumindo aqui sua primeira empreitada cinematográfica. Talvez devido a essa inexperiência com o cinema, o diretor acabou por utilizar tiques característicos dos trabalhos globais, já que novelas costumam apresentar acentuadas oscilações de tons, ora pendendo para o drama, ora para a comédia, como maneira de agradar a uma massa que anseia por mera distração durante a noite. Só que o cinema é um veículo bem mais exigente e certos tropeços de roteiro e direção até mesmo ignorados pelo público da televisão não são relevados pelos espectadores da sala escura – e muito menos pela crítica especializada. A impressão que fica aqui é de que o filme sofre de algum transtorno de personalidade, já que em nenhum momento se sabe ao certo o que ele pretender ser.
Possivelmente o maior sintoma de tal afirmação foi a declaração do próprio Marcos Paulo durante a coletiva no último festival de Paulínia (que foi encerrado com a exibição do longa em comento). Ele mencionou que apenas na fase de edição percebeu o acentuado lado cômico que certas sequências possuíam, o que o levou a selecioná-las para a versão final da produção. Ou seja, aparentemente nem o próprio Marcos Paulo sabia o que queria do seu filme, sendo provavelmente levado a deixar algumas passagens cômicas na montagem na ânsia de agradar ao público médio brasileiro. Além disso, também é clara no filme a sua vontade de se tornar o próximo “Tropa de Elite”, obra que gerou bordões populares como o famoso “pede pra sair”. Contudo, se o filme de José Padilha sabe equilibrar perfeitamente sua pesada trama com alívios cômicos, “Assalto ao Banco Central” transforma esse pretenso equilíbrio em verdadeira bipolaridade. Ficamos sem saber se estamos assistindo a um filme policial ou a uma comédia.
Mas seria injusto deixar o fardo do insucesso exclusivamente nas costas do diretor. O roteiro, escrito por Renê Belmonte, também não é dos mais felizes. Mostra-se como um mistura de “O Plano Perfeito”, de Spike Lee, e “Onze Homens e Um Segredo”, de Steven Sodebergh. Do primeiro, retira sua estrutura não linear, exibindo momentos da elaboração e execução do crime intercalados por outros onde o mesmo já é investigado pela Polícia Federal. Do segundo, procura trazer a estrutura de apresentação dos personagens, com a busca dos parceiros de empreitada por um líder que é o cérebro das ações. Entretanto, nenhuma das duas ideias funciona a contento nesta produção nacional. O vai-e-vem temporal deixa a narrativa por vezes confusa e a apresentação de tipos não funciona exatamente porque os personagens, em sua maioria, são mal caracterizados. Além disso, as falas em diversas passagens são repletas de clichês, com um nível quase amador, o que acaba se tornando uma forma de humor bastante involuntária. Certos recursos, ademais, como colocar o líder do bando jogando xadrez para, assim, denotar sua inteligência, se mostram primários, como que duvidando da inteligência do espectador.
A pobreza dos diálogos só não se faz tão assustadora devido à competência do elenco escalado. Milhem Cortaz está ótimo como Barão, o líder do grupo, assim como Giulia Gam como a policial federal (lésbica) que investiga o assalto. Outro destaque é Tonico Pereira como o comunista que participa da ação como engenheiro, alegando que posteriormente irá dividir o produto com os trabalhadores. Mas quem rouba mesmo a cena é Lima Duarte. Seu delegado Amorim é o personagem mais tridimensional da narrativa e ele parece estar inteiramente à vontade no papel. A verdade é que o elenco acaba se mostrando o principal motivo do fato de que o longa, apesar dos seus flagrantes defeitos, não se torna chato de assistir. Vale ressaltar que há realmente boas sequências, principalmente aquelas com o referido tom cômico (e as risadas frequentes durantes a sessão me fizeram perceber que elas realmente agradaram). Ademais, o diretor soube fugir das composições imagéticas da televisão e utilizar uma linguagem realmente cinematográfica no que diz respeito a enquadramentos (não há aquele excesso de closes característicos da TV) e ritmo da narração.
“Assalto ao Banco Central” não é um desastre, mas o que fica deveras perceptível é que o seu resultado poderia ser muito superior caso tivesse sido levado adiante por mãos mais experientes, principalmente se considerarmos o material quase pronto e acabado que lhe deu origem. Talvez na sua próxima experiência, Marcos Paulo se lembre que filmes necessitam de uma unidade, nunca deixando o público na dúvida de estar assistindo a uma comédia ou a um filme policial. Afinal, filme não é novela, é bom sempre lembrar.
Cotação:
Nota: 6,5
3 comentários:
O elenco novelesco me afasta desse filme.
http://cinelupinha.blogspot.com/
E o filme tinha jeito de que ia ser algo bacana. Uma pena que ficou apenas na promessa. Não sabia que Marcos Paulo era o diretor, isso explica bastante como o filme deve estar: um capítulo prolongado de uma novela.
Abs.
Rafael, não tenho preconceito com elencos televisivos. Há muita gente boa em nossa televisão, normalmente subaproveitados em papeis medíocres. O cinema americano também está se valendo de muitos atores egressos da TV e não vejo nenhum problema nisso. Atores são atores, seja no cinema ou na TV.
Alan, também tinha boas expectativas para ele (o trailer prometia muito). O filme não é um desastre, mas vc não vai perder nada se deixar para ver em casa. Abraço!
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