Dr. Jivago
(Dr. Zhivago)
O público tinha razão
O conflito entre público e crítica sempre existiu na história da sétima arte e, talvez, com uma intensidade ainda maior do que em qualquer outra forma de expressão artística. No cinema, a crítica sempre teve um papel muito forte, muitas vezes determinando o sucesso ou o fracasso de um longa-metragem. Não é à toa que no mundo cinematográfico as premiações sempre acabam por trazer uma sensível adição de interesse por um filme. Basta o longa ser premiado com alguns prêmios da Academia de Hollywood ou uma Palma de Ouro em Cannes que o desejo de vê-lo já é despertado em muitos, como se tais prêmios fossem um atestado de qualidade da obra em questão, o que nem sempre ocorre, como sabemos (só a título de comparação: que diferença faz para você se um disco ou cantor ganhou ou não ganhou um Grammy?). Em alguns casos, porém, o grande público acaba ignorando obras excelentes e amadas pelos críticos - como os filmes de Ingmar Bergman, para citar um exemplo claro. Por outro lado, algumas vezes o público presta reverência a filmes não muito queridos ou mesmo apedrejados pela crítica, o que faz com que uma parcela de apreciadores do cinema acabe esnobando aquilo que tem um apelo popular mais evidente.
Um filme que se mostra como notável exemplar do conflito entre público e crítica é justamente “Dr. Jivago”, uma megaprodução dirigida por ninguém menos que David Lean. Quando do seu lançamento, em 1965, muitos críticos torceram o nariz para o que consideraram pieguices, pouco apuro na reconstituição de época (os cenários teriam sido feito “às pressas”) e pouca profundidade no trato do contexto político. Algumas críticas foram tão virulentas que trouxeram desgosto a Lean, levando o diretor a pensar em se afastar do ofício (e graças a Deus ele não levou a ideia adiante). Em contrapartida, o público lotou as salas, fazendo da história de Yuri Jivago um grande sucesso. Até hoje o filme é amado por muitos espectadores, os quais costumam sempre dar boa audiência às reprises televisivas. E, ressalte-se, com muita razão.
“Dr. Jivago” é, de fato, um super-espetáculo cinematográfico. Poucas são as oportunidades de vermos, em um único filme, uma sucessão tão grande de imagens estonteantes, com grandes atuações, além de uma reconstituição de época preciosa (ao contrário do que os críticos tacanhos afirmaram à época do seu lançamento). David Lean foi, possivelmente ao lado de Stanley Kubrick, o cineasta mais perfeccionista dentre os cineastas perfeccionistas. Entretanto, diferentemente do diretor de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, conhecido pelo teor cerebral de seus longas, Lean deixava a emoção correr solta em suas obras. Ele, ademais, parecia ter alguma fixação com amores impossíveis, corações divididos. Em vários aspectos, “Dr. Jivago” me faz lembrar “Desencanto” (Brief Encounter), filme de Lean realizado em 1945. Contudo, se este último possui contornos mais intimistas, o filme de 1965 é um verdadeiro épico, até mesmo pelas suas pretensões e conotações também político-históricas. Aqui, Lean não se presta “apenas” (assim mesmo, entre aspas, pois que “Desencanto” é um longa excepcional) a narrar um romance. Ele ambiciona retratar também o momento histórico vivido pela Rússia quando revolução comunista de 1917, buscando estudar os reflexos desta convulsão política na sociedade e, mais ainda, como ela afetou a individualidade de seus integrantes. Essa visão orgânica de indivíduo-coletividade permeia toda a sua extensa duração, constituindo um dos grandes trunfos da produção.
O roteiro de Robert Bolt adapta o romance de Boris Pasternak, que acabou levando o Nobel de Literatura devido a ele, mas sendo proibido de recebê-lo pelo Partido Comunista soviético. Não conheço a biografia de Pasternak, mas só este fato já mostra que muito da narrativa de sua obra tem contornos bastante pessoais. Não é à toa que seu Yuri Jivago (no filme interpretado pelo egípcio Omar Shariff), além de médico, é também poeta. Idealista e sensível, ele nutre simpatia pela causa socialista, a despeito de pertencer a uma camada privilegiada da sociedade. Todavia, ao longo do processo revolucionário, acaba se deparando com violências e arbitrariedades que tornam a nova ordem social bastante semelhante à primeira. Arbitrariedades tais que suprimem sua criatividade, já que o governo revolucionário considera sua obra muito “pessoal”, “burguesa”, extravasando sentimentos íntimos (considerados “individualistas”) em detrimento de uma arte voltada para a coletividade. Estabelece-se, então, o conflito indivíduo-sociedade, embate este insolúvel, pois que um não existe sem o outro. De maneira instigante, o filme tece fortes críticas tanto ao czarismo feudal de outrora, quanto ao comunismo castrador nascente, demonstrando o quanto circunstâncias histórico-sociais podem acabar afetando irremediavelmente a vida pessoal dos indivíduos. A vida íntima de Jivago, por seu turno, representa bem essa cisão experimentada pela própria Rússia. Dividido entre o sentimento tranquilo por sua esposa, Tonya (Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin), e a paixão por Lara Antipova (Julie Christie, belíssima, em um papel que lhe alçou à condição de estrela), a oscilação do médico-poeta coloca-se como marcante metáfora para o momento vivido pela sociedade russa – e que talvez tenha passado despercebida pelos críticos míopes do seu tempo.
Todavia, Lean não se conforma em realizar um épico histórico. O longa possui uma carga sentimental acentuada, um dos motivos, por sinal, que o tornou tão popular. Longe de fazer julgamentos acerca das fraquezas dos personagens, a narrativa, muito pelo contrário, procura entender as motivações do seu comportamento, ao mesmo tempo em que também não busca justificá-los. Narrado em flashback pelo meio-irmão de Jivago, Yevgraf (Sir Alec Guinness), o roteiro acaba por se constituir em três atos para melhor apresentar a trama e seus personagens. Na primeira parte, ocorre uma atenção maior para Lara e sua intrincada relação com Victor Komarovsky (Rod Steiger, um pouco exagerado, mas ainda assim eficiente), aristocrata de poucos escrúpulos de quem se torna amante, apesar de estar noiva de Pasha (Tom Courtenay). Em um segundo ato, mais focado em Jivago, vemos o nascimento de seu tranqüilo casamento com Tonya, ao mesmo tempo em que ele acaba convocado para servir como médico na Primeira Guerra Mundial, ocasião em que acabará conhecendo Lara, a qual serve como enfermeira no front. É no terceiro ato que acompanhamos o nascimento e cisão do romance entre os dois que, no fim, termina por adquirir contornos trágicos. É triste, realmente consternador, perceber como os personagens acabam infelizes em decorrência tanto de suas próprias fraquezas, quanto da inevitabilidade de fatos que fogem ao controle de todos.
Ademais, toda essa narrativa carregada de História e sentimentalidades é exibida com uma carga imagética poucas vezes igualada ao longo de décadas de arte cinematográfica. Várias são as cenas e sequências marcantes, inesquecíveis, daquelas que grudarão na sua mente por muito tempo, como a travessia das paisagens nevadas dos Urais na interminável viagem de trem (ocasião em que Klaus Kinski faz uma breve, mas marcante participação); a investida das tropas do czar contra os manifestantes nas ruas de Moscou, oportunidade em que Lean não necessita mostrar a violência na tela para conseguir nos transmitir todo o horror do acontecido; a corrida de Jivago no interior do palacete congelado de Varykino, buscando enxergar Lara, que está partindo... Bem, eu poderia escrever mais algumas páginas apenas descrevendo belas cenas deste filme, mas vamos nos poupar, pois melhor do que ler a descrição é ver, ou rever, ditas sequências. Só a acrescentar, ainda, a importância da magnífica trilha sonora, cujo tema central (o famoso “Tema de Lara”), composto por Maurice Jarre, tornou-se uma das mais lembradas e populares trilhas já concebidas.
Detentor de múltiplas leituras, “Dr. Jivago” pode ser visto ora como um filme de estudo histórico-político, ora como uma jornada passional. O que não se duvida é que ele constitui uma verdadeira obra-prima e que o tempo mostrou que o público, ao menos neste caso, tinha plena razão ao consagrar nas bilheterias o talento de David Lean. Hoje, este é um filme querido de muitos, enquanto os críticos que o espezinharam são lembrados por poucos.
Cotação e nota: Obra-prima.
4 comentários:
Não sabia que na época, o filme tinha sido tão "renegado" pela crítica.. Interessante, e não me pergunte o motivo, mas ainda não vi esta obra-prima...
[]s
Sou um dos que ama profundamente este filme - uma relação de amor a que já voltei incontáveis vezes ao longo da minha vida (vi-o pela primeira vez em 1967, num écran gigante de uma gigante sala de cinema em Johannesburg; e a última vez há algumas semanas na magnífica edição em Blu-ray. 44 anos que não envelheceram um único frame)
Dê uma olhada no meu blogue, que já se encontra por lá o comentário sobre o filme.
O Rato Cinéfilo
Ola, será quevc poderia me ajudar? Estou procurando um filme que fala sobre uma familia nos paises da redondeza da Russia, me parecia ser Sunshine, mas nao encontro referencia em lugar algum. Eu o vi a muitos anos e gostaria muito de ver novamente. Bem o que me lembro é algumas partes: familia rica, estavel e produtiva, um amor acho que entre cunhado e cunhada, vem a revoluçao tudo é dividido entre os pessoas da sociedade mais pobres, a imensa casa é dividida e assim como a propriedade rural. Ele é preso e torturado... O final desse filme já é o fim do comunismo, ele abre uma caixa e encontra uma carta que de uma amor correspondido no passado... Sei que é dificil por esses tópicos, mas... Agradeço pelo tempo tomado só em ler este post. jesuscomp@hotmail.com
JPereira,
Quando li seu comentário na moderação, pelas referências, estava achando bem parecido com Dr. Jivago. Mas, como agora vi que seu comentário foi nesta postagem, vejo que não é. Bem, agora não está me vindo outro na memória, mas posso tentar dar ums pesquisada. Qual a nacionalidade do filme? Você lembra?
Muito obrigado pela visita ao blog. Até a próxima!
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