segunda-feira, 3 de junho de 2013

Faroeste Caboclo

A música é melhor


“Ei, Fábio, tem alguma notícia sobre o filme de Faroeste Caboclo?”. Ao longo de vários anos (nem me lembro exatamente quantos) ouvi muitas vezes essa frase de um amigo que, como eu, adorava a Legião Urbana e costumava me perguntar sobre a possível adaptação da música do saudoso Renato Russo para as telas de cinema (abraço, Luciano!). Na maioria das oportunidades, eu simplesmente não tinha informação nenhuma para dar e imaginava que esse era um projeto que nunca iria sair do papel. Cheguei a pensar que se tratava apenas de um boato divulgado pelo global Video Show, no tempo em que este programa ainda divulgava algumas notícias de conteúdo interessante e não apenas abobrinhas e futilidades sobre novelas e celebridades (faz uma tempão, né?). Pois bem, o tempo passou, meu amigo nem mora mais em Natal (como andam as coisas em Curitiba?) e, enfim, a canção-quase-roteiro da Legião estreou nos cinemas.

Composta ainda nos anos 70, durante a fase “Trovador Solitário” de Renato Russo (saiba mais assistindo a “Somos Tão Jovens”), o qual desejava fazer algo no estilo das canções de Bob Dylan (uma de suas maiores influências), “Faroeste Caboclo” só passou a ser conhecida do grande público com o álbum “Que País é Este?”, lançado pela Legião Urbana em 1987. Com seus quase 10 minutos de duração, ninguém imaginava que ela iria se tornar um hit radiofônico, mas foi o que sucedeu. Parece algo impensável, mas, diante dos pedidos dos ouvintes, a faixa era reproduzida inteira nas rádios, uma proeza ainda maior em uma época em que para ouvir música de graça só mesmo escutando as emissoras, as quais detinham um poder enorme sobre o que deveria ou não fazer sucesso. Se lembrarmos que a música não possui refrão, é pontuada por palavrões e não tem nada de politicamente correta – no contexto de um país que ainda estava desacostumado com a liberdade de expressão – o feito se torna ainda mais impressionante. Entretanto, realmente se trata de uma composição ímpar na música brasileira, narrando a ascensão e queda de um retirante que se torna traficante na Capital da República sob um pano de fundo sociopolítico aguçado.


 A direção do longa coube a René Sampaio, o qual se mostra bem competente para um diretor estreante. Ele sabe manter o ritmo e tem ótimas referências imagéticas, como o clímax no duelo entre João do Santo Cristo (Fabrício Boliveira) e o traficante Jeremias (Felipe Abib), onde usa das marcas do genial Sergio Leone, contrapondo closes e planos abertos para estabelecer a tensão do momento. Há também muito do estilo tarantinesco, com uma certa dose de hiperviolência que acaba soando pertinente diante do universo de criminalidade abordado. Contudo, o roteiro (de Marcos Bernstein, o mesmo de “Somos Tão Jovens”, e Victor Atherino, com participação de Paulo Lins, o autor de “Cidade de Deus”) realiza alterações no texto original que me incomodaram bastante.

Primeiramente, nota-se que a adaptação quase eliminou da narrativa as origens de João do Santo Cristo. Não sabemos quase nada sobre sua infância, restando apenas as informações de que vivia na miséria e o pai foi morto a tiros por um policial. Só. Seus sonhos e expectativas com uma vida diferente da que levava, tão bem delineados por Renato em sua letra, são podados do enredo do longa, o que é uma pena. Afinal, a trama concebida pelo músico é uma versão pop da velha história do retirante que busca na cidade grande uma vida melhor, onde suas aspirações podem se tornar realidade. A partir desta concepção, o fim de João, em um duelo televisionado, torna-se ainda mais trágico e irônico. Algo semelhante ao fim de Zé do Burro em “O Pagador de Promessas”, a peça de Dias Gomes mais tarde transformada em filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes por Anselmo Duarte, o qual sempre me pareceu ser uma das fontes em que Renato bebeu para conceber o texto de “Faroeste”. É a tragédia do homem simples transformada em espetáculo midiático. Ao retirar de João o seu passado e sua ingenuidade, uma vez que no roteiro da película ele não vai a Brasília para “falar com o presidente”, Sampaio praticamente o coloca tão somente como um bandido comum, alguém que entrou na criminalidade por mera ambição e oportunidade, empobrecendo o personagem. É possível imaginar que a opção de diretor e roteiristas foi atribuir um tom menos fantástico que desfecho original, este talvez com um efeito poético condizente apenas com a linguagem musical e que causaria estranheza nas telas. Contudo, pensar de tal forma apenas resulta em estabelecer limites artificiais à linguagem do cinema, fronteiras estas que na realidade não existem (já imaginaram se Fellini ficasse adstrito a “padrões”?).


Se João não se torna apenas mais um lugar-comum entre os criminosos de filmes de gangster, isso se deve em muito à atuação de Fabrício Boliveira. Ele está ótimo, conferindo uma aura introspectiva ao emigrante e, tendo em vista que se trata de um ator negro, contribuindo para que a questão racial se torne ainda mais forte no filme do que na música (e isso é um elogio), já que o tema étnico é apenas pincelado por Renato na sua letra. Aliás, não só Boliveira, mas todo o elenco se apresenta com garra e competência. Ísis Valverde encarna Maria Lúcia com alma, mostrando que pode ir muito além dos papeis de “periguetes” que fizeram a sua fama recentemente na TV. Além disso, temos as boas participações de Antônio Calloni, como um policial corrupto, e Marcos Paulo como o senador pai de Maria Lúcia, em uma de suas últimas aparições nas telas, seja do cinema ou da televisão. Somente Felipe Abib, no papel de Jeremias, destoa do restante do elenco, trazendo alguns excessos a um tipo que tem muito do Tony Montana de “Scarface” (1983, de Brian De Palma).

Nos créditos finais, quando finalmente ouvimos a canção adaptada, a impressão que tive foi a de que Renato Russo conseguiu contar melhor a história de João de Santo Cristo em 10 minutos de música e letra do que René Sampaio em 105 minutos de projeção. Advirto que não estou querendo ser irônico ou afirmando que o longa-metragem seja uma droga, mas, se sobra verve ao elenco e técnica na direção, faltou abordar com mais apuro a riqueza de um personagem que encarna várias facetas do povo brasileiro. Depois de tantos anos de espera, o gostinho de “poderia ser melhor” acabou deixando um certo incômodo.


Cotação:



Nota: 7,5
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4 comentários:

renatocinema disse...

Quero muito assistir.....apesar de saber que é impossível ser tão bom quanto a canção.

abs

Marcelo Keiser disse...

Muito bom esse filme. Eu recomendo, como também "Somos Tão Jovens", outro trabalho de certo modo ligado a essa produção.

abraço

marcelokeiser.blogspot.com.br

Unknown disse...

Fala, Fabão!

Rapaz, sinto-me honrado pela citação nessa excelente resenha. É sempre bom ler o que vc escreve. A sua inteligência e sensibilidade artística são notáveis.
Estive viajando na última quinzena, por isso ainda não assisti ao filme, mas com certeza o verei. Esperada há tantos anos, mesmo não sendo o que poderia ser, é de todo modo uma obra especial para nós fãs da Legião Urbana.
Falando nisso, encontrei uma pequena joia na internet e compartilho com vc e os demais leitores do blog. Trata-se do áudio de um show da Legião em Salvador, na turnê d'As Quatro Estações, em 1990. Tenho certeza de que vc vai curtir. Eis o link:

http://grooveshark.com/#!/album/Show+Em+Salvador+1990/6790248

Um saudoso abraço e força sempre!

Fábio Henrique Carmo disse...

Fala, amigo Luciano!

Voltando de mais uma viagem? Para aonde, agora? Espero que tenha sido proveitosa.

Não deixe de ver o filme. Mesmo que não seja uma pérola, merece ser visto depois de tantos anos de espera.

Não exagere com os elogios. São apenas impressões que transformei em post de blog.

Precioso esse link, hein?! Muito massa! Me faz lembrar o show aqui de Natal, há mais de 20 anos...

Grande abraço e força sempre para você e todos os leitores do blog!