terça-feira, 6 de setembro de 2011

Para Ver Em Um Dia de Chuva



Tempo de Glória
(Glory, 1989)


Bom para o cinema, importantíssimo para a memória



É curioso que o cinema norte-americano aborde tão esporadicamente um evento de importância crucial na História dos Estados Unidos como o foi a famosa Guerra de Secessão. Mesmo o clássico absoluto “...E o Vento Levou”, primeiro filme que costuma vir à mente dos cinéfilos quando se menciona dita temática, coloca o conflito apenas como um pano de fundo e ambientação histórica para as desventuras de Scarlett O'Hara, sem levar a fundo uma investigação sobre as causas e consequências da guerra. Talvez esse descaso das produções estadunidenses ocorra porque o referido evento histórico mexe com feridas ainda não cicatrizadas da formação do país, tocando em aspectos como o ódio racial, direitos civis e também o desnível econômico hoje existente entre os estados do Norte e do Sul. Dentro desse contexto, um filme como “Tempo de Glória” (Glory) se faz muito bem vindo ao não apenas abordar diretamente o conflito, mas também ao remexer em algumas dessas sujeiras que os norte-americanos fazem questão de tentar esconder embaixo do tapete.

Este é, possivelmente, ao lado de “Diamante de Sangue” (Blood Diamond, 2006), o melhor filme da irregular carreira do diretor Edward Zwick, o qual também foi responsável por bombas como “Lendas da Paixão” (Legends Of The Fall, 1994), uma espécie de novelão disfarçado de cinema. É possível que este seu sucesso em “Tempo de Glória” se deva à própria natureza grandiosa dos fatos que inspiraram sua realização, aptos a deixar correr solto o tom épico grandioso que parece ser uma autêntica mania de Zwick, mas sem que isso se torne cafona. Afinal, a narrativa trata do destino do 54º Regimento do Exército de Massachusetts, o primeiro a ser formado apenas por negros durante a secessão. Menosprezado por muitos, já que composto por voluntários que, em sua maioria, não tinham qualquer noção de combate (além do preconceito com a cor da pele, claro), o 54º acabou servindo como espelho de bravura e obstinação para os demais ao tentar tomar um forte sulista praticamente intransponível.

O roteiro, escrito por Kevin Jarre, foi baseado em livros de Lincoln Kirstein e Peter Buchard, os quais, por sua vez, inspiraram-se nas cartas de Robert Gould Shaw, jovem coronel pertencente a uma abastada família de Boston, mas de caráter bastante liberal (no filme interpretado por Matthew Broderick). Alguns apontam como crítica este desenvolvimento da trama a partir do ponto de vista de um branco, mas a realidade é que tal ótica não deixa de ser a mais fiel aos fatos históricos (hoje, as cartas encontram-se arquivadas na Universidade de Harvard). Destarte, de todos os personagens da trama apenas o Coronel é comprovadamente real. Todos os soldados negros são elaborações ficcionais. Entretanto, os tipos são bem construídos, desde o revoltado Trip (Denzel Washington, no papel que o levaria ao estrelato), passando pelo sensato sargento (e ex-coveiro) John Rawlins (Morgan Freeman), até o letrado Thomas Searles (Andre Braugher), todos apresentam facetas tridimensionais, sendo mostrados não apenas seu idealismo e bravura, mas também suas dúvidas, fraquezas e inseguranças. Neste aspecto, é importante salientar a qualidade das interpretações em tela. Morgan Freeman faz aquele seu tipo característico, mas com a competência de sempre; Braugher consegue demonstrar todo o conflito de um homem idealista, mas inteiramente desconfortável e fragilizado com o duro treinamento militar. Entretanto, o show fica mesmo por conta de Denzel Washington. A cena em que o ex-escravo Trip é chicoteado devido a uma suposta tentativa de deserção é realmente memorável e só ela já faria por merecer o Oscar de ator coadjuvante que o intérprete levou. Ademais, Matthew Broderick encontra aqui o seu melhor momento no cinema ao lado do seu antológico Ferris Bueller de “Curtindo A Vida Adoidado” (Ferris Bueller's Day Off, 1986).


Por outro lado, o roteiro também é feliz ao cutucar, por meio de interessantes diálogos, as feridas raciais norte-americanas. Em dado momento, Trip questiona o Coronel Shaw: “Se vencermos, Coronel, você voltará a Boston, para sua casa e sua família. E nós, o que ganharemos?”. Ou ainda, quando Trip zomba de uma tropa de soldados brancos que voltam derrotados de uma batalha e é criticado pelo Sargento Rawlins: “não seja idiota, eles estão lutando por nós. Já enterrei muitos soldados brancos, agora é hora de nós também fazermos a nossa parte”.

Mesmo que o texto, em alguns momentos, possua algumas doses acentuadas de fatalismo, os problemas da película se encontram mesmo na direção de Zwick, sempre no limite entre o bom gosto e o sentimentalismo barato, principalmente ao fazer a trilha sonora despertar acordes épicos e emocionais a cada três minutos, mesmo que, em termos puramente musicais, as composições de James Horner sejam belíssimas. A presença de alguns momentos piegas, todavia, não impede que existam cenas de real emoção, como naquela em que os soldados - em um momento que revela as origens da música norte-americana - cantam antes da batalha que pode significar as suas mortes. De qualquer forma, a beleza da fotografia de Freddie Francis (vencedora do Oscar) , bem como a impactante e violenta sequência da batalha final no forte (uma espécie de precursora do que seria feito mais tarde em “O Resgate do Soldado Ryan”) compensam os eventuais deslizes de Zwick.

Dono de um apuro técnico que nos faz duvidar que seja uma produção de 1989, “Tempo de Glória” se coloca, hoje, como uma espécie de remédio contra o cinismo e a indiferença do século XXI, narrando com eficácia uma história real deveras inspiradora. Por outro lado, não deixa de apontar o dedo para determinados problemas da sociedade americana que ainda perduram mesmo depois de tantos anos. Um filme que se faz importante não somente por suas qualidades cinematográficas, mas, principalmente, por ser um dos poucos longas a retratar com eficiência uma momento histórico pouco abordado na produção ianque. Bom para o cinema, mais importante ainda para a memória.


Cotação:

Nota: 8,5
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4 comentários:

Unknown disse...

Gosto desse filme, acho um dos melhores feito por Zwick. Teu texto elucida os melhores momentos. Abração!

ANTONIO NAHUD disse...

Zwick é um bom diretor. O problema dele é o patriotismo exacerbado.
Cumprimentos cinéfilos, Fábio!

O Falcão Maltês

ANTONIO NAHUD disse...

Linkei o seu blog...

O Falcão Maltês

ANTONIO NAHUD disse...

Amigo, venha participar do novo QUIZ!
Abraços,

O Falcão Maltês