sábado, 4 de abril de 2009

Cinemúsica


Esta resenha foi escrita na época da exibição de "Não Estou Lá" nas salas de cinema. Como ela ainda estava inédita aqui no blog, resolvi postá-la como integrante da série "Cinemúsica". Mas bem que poderia figurar também na série "Filmes Para Ver Antes de Morrer".

Não Estou Lá

As muitas vidas de um homem


Tem sido comum, nas recentes resenhas publicadas na imprensa e na internet, afirmar-se que “Não Estou Lá” (I’m Not There), longa dirigido por Todd Haynes, constitui uma biografia do genial músico norte-americano Bob Dylan, nome artístico de Robert Allen Zimmerman, um dos mais importantes nomes da cultura no século XX. Todavia, pensarmos o mencionado filme, atualmente em cartaz nos cinemas, como apenas uma biografia mostra-se um tanto quanto limitado.

A afirmativa, vale ressaltar, não é falsa. De fato, mesmo que de uma forma um tanto quanto incomum, Haynes nos mostra uma boa parte da trajetória de Dylan. Incomum, sim, porque faz isso fugindo inteiramente ao convencional: seis atores diferentes interpretam Dylan em momentos distintos de sua vida e muito do que é mostrado deriva mais dos conceitos e imagens presentes em suas músicas do que dos fatos tal como aconteceram.

Suas origens e influências nos são apresentadas através do personagem Woody Guthrie (nome do ídolo folk de Dylan, na realidade), interpretado pelo ótimo ator garoto Marcus Carl Franklin. Procura-se, nesse núcleo narrativo, a essência do artista, entender, mesmo que de forma insuficiente, as razões o levaram a criar sua obra.

Em outro momento, vemos o Dylan ídolo folk através do personagem Jack Rollins, interpretado com a competência de sempre por Christian Bale (o atual Batman), o qual possui uma legião de admiradores com sua música engajada, de protesto. Tal perspectiva nos é apresentada através das recordações de uma certa Alice Fabian (Joan Baez, com certeza), interpretada pela também sempre eficiente Julianne Moore.

Também temos o Dylan com seus problemas familiares. Aqui ele é encarnado pelo recentemente falecido Heath Ledger e vemos o início e declínio de sua relação com Claire (na vida real sua esposa Sarah Lownds), interpretada por Charlotte Gainsbourg, assim como nos mostra o lado ator do músico.

Uma das mais marcantes participações do filme é a de Cate Blanchett (indicada ao Oscar de atriz coadjuvante pelo papel) interpretando Jude Quinn, o qual representa o Dylan da fase “eletrificada”, quando o mesmo abandonou violões folk que o tornaram famoso e aderiu à guitarra elétrica, acompanhado também por uma banda e deixando a imagem de “trovador solitário” que lhe trouxe uma legião de admiradores. Muitos fãs o hostilizaram, acusando-o de “traidor”, de “vendido ao businness” e outras designações do gênero. Este também é o seu período mais “drogado”, situação que transparecia em sua imagem física (Dylan estava bem mais magro do que normalmente era).

Prosseguindo, Richard Gere interpreta Billy The Kid, que no longa representa o Dylan recluso, misantropo, principalmente após o acidente de moto que sofreu (talvez um dos “núcleos” que causem mais estranheza ao espectador médio, juntamente com o protagonizado pelo garoto Woody Guthrie). Em participações rápidas, mas picotadas ao longo da exibição, Ben Wishaw representa o lado poeta (o nome do personagem é Arthur Rimbaud) e Bale, novamente, nos mostra a passagem em que o músico se torna evangélico (por um curto espaço de tempo).

Todos essas tramas, é importante ressaltar, são permeadas por imagens e citações da obra de Dylan, além de, obviamente, ouvirmos suas canções permeando toda a projeção. Várias cenas são inspiradas em capas de sua discografia, assim como diversos diálogos são citações de letras de canções ou frases de entrevistas publicadas ao longo de sua extensa carreira. Também há menção a momentos significativos, como seu encontro com os Beatles (numa seqüência que faz referência óbvia a “A Hard Day’s Night) ou o discurso que fez bêbado pouco depois da morte de John Kennedy (quando disse que havia algo de Lee Oswald nele).

Entretanto, a despeito de todas essas características acima apontadas, ouso dizer que talvez o intuito do cineasta não tenha sido exatamente filmar uma biografia, Creio que Haynes utiliza-se desta base biográfica para algo um pouco mais ambicioso: realizar um estudo sobre o que conhecemos da personalidade humana.

A sensação que temos ao terminar a projeção é de que vimos a história de várias pessoas diferentes, e não apenas de uma. E essa é a intenção do diretor: mostrar que todos nós somos compostos por várias facetas, que não somos os mesmos sempre, em todas as fases e circunstâncias de nossas vidas. Contudo, apesar dessas várias facetas, somos apenas um. Cada ser humano tem vários “eus” dentro de si. Ademais, cada um vê o seu próximo de uma forma única e inteiramente própria, que não se confunde com a imagem que seu vizinho, por exemplo, faz daquela mesma pessoa.

Semelhante abordagem foi realizada por Orson Welles no clássico absoluto “Cidadão Kane”, onde vários personagens mostram a sua visão sobre a pessoa do milionário Charles Foster Kane. Quem era Kane na realidade? Cada um tem sua perspectiva, mas nunca será possível definir quem realmente ele foi. Da mesma forma, Haynes nos mostra Dylan sob vários prismas, mas é impossível chegar a uma conclusão sobre quem de fato é o biografado. Em um personagem como Dylan, tal experiência é levada ao máximo, já que se trata de alguém conhecido por milhões de pessoas, cada qual com sua imagem sobre o homem e o artista. E os resultado final da empreitada nada mais é do que a visão de Haynes sobre Dylan, apenas mais uma, portanto. Aliás, nada mais apropriado do que o título dado por Haynes à cidade onde vive Billy The Kid (Gere): Riddle (Enigma).

Assim, “Não Estou Lá” vai além de uma simples biografia “diferente”, realizando um autêntico estudo sobre esse enigma que é a personalidade humana. No início da projeção, temos os dizeres: “baseado nas músicas e nas muitas vidas de Bob Dylan”. Na realidade, creio que Dylan, ao viver essas “muitas vidas”, quis não fazer algo que contrariasse os fãs ou a crítica, ser apenas “diferente” ou algo do gênero. Dylan quis somente ser ele mesmo sempre, vivendo as diversas facetas de sua personalidade, ao contrário de vários artistas que se prendem a uma imagem por medo de desagradar ao público. E talvez seja essa a grande mensagem que Robert Allen Zimmerman queira nos deixar com sua obra: viva suas várias vidas!

Cotação: ***** (cinco estrelas)
Nota: 10,0.

Em tempo: É bom alertar que “Não Estou Lá” é um filme de paladar bem difícil, principalmente para aqueles que não são “iniciados” na obra de Dylan, muito embora isso não seja imprescindível para a sua compreensão. Basta lembrar que os diversos personagens representam facetas do mesmo homem e a experiência se tornará mais agradável.
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