Um Dia de Cão
(Dog Day Afternoon)
Tensão e crítica social com Sidney Lumet
Se você quer imaginar um diretor que deveria ser mais reconhecido do que de fato o é, este diretor sem dúvida é Sidney Lumet. Este cineasta é o responsável por filmaços inesquecíveis desde sua estreia, em 1957, com “12 Homens e Uma Sentença”, um trhiller que se passa inteiramente dentro de uma sala onde 12 jurados estão confinados para decidir o destino de um acusado em certo julgamento. E o que parece impossível acontece. Mesmo com esta limitação de espaço, Lumet consegue manter o ritmo do início ao fim, unindo um roteiro com diálogos afiados a uma edição primorosa (e também contando com ótimos atores, como o astro Henry Fonda).
Lumet parece mesmo se dar muito bem com microcosmos estabelecidos em pequenos ambientes onde a tensão reina e os personagens parecem ser levados a confrontar os seus limites. Este também é o mote explorado por ele no intenso “Um Dia de Cão”, o qual também se insere entre seus filmes “nova-iorquinos” (afinal, não são apenas Woody Allen e Martin Scorsese que usam continuamente Nova York para retratarem seus dramas). Baseado numa reportagem publicada pela revista “Life” (muito embora o roteiro, escrito por Frank Pierson, tenha levado o prêmio de melhor roteiro original da Academia de Hollywood) sobre um assalto a banco realizado por um certo John Wojtowicz, o longa metragem de 1975 se passa quase que inteiramente dentro de uma agência bancária, onde assaltantes e reféns são cercados pela polícia ao longo de um dia quente de verão. Os assaltantes, totalmente inexperientes no “ramo”, chamam-se Sonny (Al Pacino) e Sal (John Cazale, ator talentosíssimo que faleceu aos 42 anos, vítima de câncer). Sonny é um ex-combatente do Vietnã e ex-bancário, sendo que sua motivação para o crime é bastante peculiar: conseguir dinheiro para que seu namorado Leon (Chris Sarandon) realize uma operação de mudança de sexo.
Pode-se afirmar, antes de tudo, que “Um Dia de Cão” é um dos típicos produtos do que se convencionou chamar como “Nova Hollywood”, movimento surgido na segunda metade dos anos 60 e que foi responsável pela projeção da figura do diretor no cinema americano em contraposição ao studio system, o qual teve seu auge até o fim dos anos 50. Contraditoriamente, foi essa nova forma de enxergar a maneira de se fazer cinema que tirou os estúdios da bancarrota (“O Poderoso Chefão”, por exemplo, salvou a Paramount da falência). Devido ao seu perfil autoral (adotando o pensamento difundido pela Nouvelle Vague francesa), estes jovens diretores inseriam em seus filmes temas polêmicos e visões heterodoxas sobre os mesmos, algo que, até então, era realizado de forma mais tênue devido à ingerência dos produtores no resultado final. Outro fator que também contribuiu foi o abrandamento das normas de classificação etária nos EUA, com o fim do código de normas que as produções eram obrigadas a seguir.
A temática abordada pelo longa de Lumet só poderia mesmo surgir e ser bem aceita em um ambiente de contestação do establishment, onde falsos pudores foram jogados pela janela, substituídos por um retrato mais fiel da sociedade. Sociedade esta atônita com o horror da guerra do Vietnã e com a corrupção na política, representada de forma lapidar com o escândalo de Watergate. A cinematografia dos anos 70 tornou-se, desta forma, a mais contestadora da história do cinema americano, expondo a sujeira escondida debaixo do tapete do moralismo ianque. Com um público ávido por enfrentar as situações postas, a história de Sonny acabou se tornando um sucesso de bilheteria. Afinal, Sonny era um desempregado que, num ato de amor e desespero, resolve fugir às regras sociais para realizar o sonho daquele que amava. Uma inadequação do indivíduo ao meio ainda mais potencializada por sua homossexualidade, poucas vezes mostrada de forma tão aberta até então.
O inconformismo e a crítica para com o status quo vigente são ainda representados pela menção ao massacre de Attica, uma prisão onde poucos anos antes havia acontecido um massacre de detentos promovido pela polícia de Nova York (uma espécie de “Carandiru” local), muito embora este seja um aspecto que torna o longa datado e, principalmente, causa estranheza àqueles que não conhecem o evento mencionado.
Outro aspecto importante levantado por Lumet na projeção é a espetacularização realizada pela mídia e o surgimento das celebridades instantâneas. É nítido que vários dos personagens, seja os reféns, seja a população que acompanha de perto os acontecimentos, se satisfazem com a ideia de se tornarem conhecidos a partir de então. “Vou aparecer na TV” ou “sou um astro”, são falas que sublinham a narrativa e, de certa forma, antecipam os dias atuais onde a previsão dos 15 minutos de fama feita por Andy Warhol parece cada vez mais factível.
Toda esta abordagem densa e crítica, entretanto, é conduzida por Lumet de forma extremamente envolvente. Com uma edição brilhante (indicada ao Oscar), o ritmo do longa jamais cai e a sensação de tensão acompanha cada fotograma exibido. O clima tenso, por outro lado, não teria sucesso não fosse a contribuição extraordinária do elenco. Pacino (que cogitou abandonar o projeto antes começarem as filmagens) está brilhante na pele do protagonista, repetindo aqui a parceria de sucesso com Lumet iniciada dois anos antes em “Serpico” (outro dos filmes nova-iorquinos do diretor). Com uma atuação visceral, o ator transformou Sonny em um personagem inesquecível, tendo recebido elogios do próprio John Wojtowicz. Cazale também leva brilhantismo ao seu desequilibrado Sal, personagem dos mais instigantes (memorável a cena em Sonny lhe pergunta para que país ele gostaria de fugir e o mesmo responde “Wyoming”). Ademais, buscando maior realismo, Lumet determinou que todo o elenco deveria utilizar roupas próprias nas gravações, substituindo as tradicionais roupas de estúdio. Aliando esses detalhes a uma improvisação nas falas dos atores, o resultado se mostra bastante naturalista, algo ainda mais necessário em história que se baseia em fatos reais.
“Dog Day Afternoon”, com seu senso de urgência, mostra-se, desta maneira, como um filme bastante contemporâneo, apto a agradar o público impaciente dos dias atuais (mesmo considerando alguns elementos datados, como mencionado mais acima). Por outro lado, revela um olhar contundente acerca da moral e valores do meio social estadunidense, capaz de levar à reflexão o espectador mais exigente, longe da infantilidade que parece dominar as salas de cinema nos dias de hoje. Além disso, é, antes de tudo, um belo exemplo das capacidades técnicas e artísticas de Sidney Lumet, um diretor que, decididamente, merece ser mais conhecido e, principalmente, reconhecido por seus pares e amantes do cinema.
Cotação:
Nota:9,5
(Dog Day Afternoon)
Tensão e crítica social com Sidney Lumet
Se você quer imaginar um diretor que deveria ser mais reconhecido do que de fato o é, este diretor sem dúvida é Sidney Lumet. Este cineasta é o responsável por filmaços inesquecíveis desde sua estreia, em 1957, com “12 Homens e Uma Sentença”, um trhiller que se passa inteiramente dentro de uma sala onde 12 jurados estão confinados para decidir o destino de um acusado em certo julgamento. E o que parece impossível acontece. Mesmo com esta limitação de espaço, Lumet consegue manter o ritmo do início ao fim, unindo um roteiro com diálogos afiados a uma edição primorosa (e também contando com ótimos atores, como o astro Henry Fonda).
Lumet parece mesmo se dar muito bem com microcosmos estabelecidos em pequenos ambientes onde a tensão reina e os personagens parecem ser levados a confrontar os seus limites. Este também é o mote explorado por ele no intenso “Um Dia de Cão”, o qual também se insere entre seus filmes “nova-iorquinos” (afinal, não são apenas Woody Allen e Martin Scorsese que usam continuamente Nova York para retratarem seus dramas). Baseado numa reportagem publicada pela revista “Life” (muito embora o roteiro, escrito por Frank Pierson, tenha levado o prêmio de melhor roteiro original da Academia de Hollywood) sobre um assalto a banco realizado por um certo John Wojtowicz, o longa metragem de 1975 se passa quase que inteiramente dentro de uma agência bancária, onde assaltantes e reféns são cercados pela polícia ao longo de um dia quente de verão. Os assaltantes, totalmente inexperientes no “ramo”, chamam-se Sonny (Al Pacino) e Sal (John Cazale, ator talentosíssimo que faleceu aos 42 anos, vítima de câncer). Sonny é um ex-combatente do Vietnã e ex-bancário, sendo que sua motivação para o crime é bastante peculiar: conseguir dinheiro para que seu namorado Leon (Chris Sarandon) realize uma operação de mudança de sexo.
Pode-se afirmar, antes de tudo, que “Um Dia de Cão” é um dos típicos produtos do que se convencionou chamar como “Nova Hollywood”, movimento surgido na segunda metade dos anos 60 e que foi responsável pela projeção da figura do diretor no cinema americano em contraposição ao studio system, o qual teve seu auge até o fim dos anos 50. Contraditoriamente, foi essa nova forma de enxergar a maneira de se fazer cinema que tirou os estúdios da bancarrota (“O Poderoso Chefão”, por exemplo, salvou a Paramount da falência). Devido ao seu perfil autoral (adotando o pensamento difundido pela Nouvelle Vague francesa), estes jovens diretores inseriam em seus filmes temas polêmicos e visões heterodoxas sobre os mesmos, algo que, até então, era realizado de forma mais tênue devido à ingerência dos produtores no resultado final. Outro fator que também contribuiu foi o abrandamento das normas de classificação etária nos EUA, com o fim do código de normas que as produções eram obrigadas a seguir.
A temática abordada pelo longa de Lumet só poderia mesmo surgir e ser bem aceita em um ambiente de contestação do establishment, onde falsos pudores foram jogados pela janela, substituídos por um retrato mais fiel da sociedade. Sociedade esta atônita com o horror da guerra do Vietnã e com a corrupção na política, representada de forma lapidar com o escândalo de Watergate. A cinematografia dos anos 70 tornou-se, desta forma, a mais contestadora da história do cinema americano, expondo a sujeira escondida debaixo do tapete do moralismo ianque. Com um público ávido por enfrentar as situações postas, a história de Sonny acabou se tornando um sucesso de bilheteria. Afinal, Sonny era um desempregado que, num ato de amor e desespero, resolve fugir às regras sociais para realizar o sonho daquele que amava. Uma inadequação do indivíduo ao meio ainda mais potencializada por sua homossexualidade, poucas vezes mostrada de forma tão aberta até então.
O inconformismo e a crítica para com o status quo vigente são ainda representados pela menção ao massacre de Attica, uma prisão onde poucos anos antes havia acontecido um massacre de detentos promovido pela polícia de Nova York (uma espécie de “Carandiru” local), muito embora este seja um aspecto que torna o longa datado e, principalmente, causa estranheza àqueles que não conhecem o evento mencionado.
Outro aspecto importante levantado por Lumet na projeção é a espetacularização realizada pela mídia e o surgimento das celebridades instantâneas. É nítido que vários dos personagens, seja os reféns, seja a população que acompanha de perto os acontecimentos, se satisfazem com a ideia de se tornarem conhecidos a partir de então. “Vou aparecer na TV” ou “sou um astro”, são falas que sublinham a narrativa e, de certa forma, antecipam os dias atuais onde a previsão dos 15 minutos de fama feita por Andy Warhol parece cada vez mais factível.
Toda esta abordagem densa e crítica, entretanto, é conduzida por Lumet de forma extremamente envolvente. Com uma edição brilhante (indicada ao Oscar), o ritmo do longa jamais cai e a sensação de tensão acompanha cada fotograma exibido. O clima tenso, por outro lado, não teria sucesso não fosse a contribuição extraordinária do elenco. Pacino (que cogitou abandonar o projeto antes começarem as filmagens) está brilhante na pele do protagonista, repetindo aqui a parceria de sucesso com Lumet iniciada dois anos antes em “Serpico” (outro dos filmes nova-iorquinos do diretor). Com uma atuação visceral, o ator transformou Sonny em um personagem inesquecível, tendo recebido elogios do próprio John Wojtowicz. Cazale também leva brilhantismo ao seu desequilibrado Sal, personagem dos mais instigantes (memorável a cena em Sonny lhe pergunta para que país ele gostaria de fugir e o mesmo responde “Wyoming”). Ademais, buscando maior realismo, Lumet determinou que todo o elenco deveria utilizar roupas próprias nas gravações, substituindo as tradicionais roupas de estúdio. Aliando esses detalhes a uma improvisação nas falas dos atores, o resultado se mostra bastante naturalista, algo ainda mais necessário em história que se baseia em fatos reais.
“Dog Day Afternoon”, com seu senso de urgência, mostra-se, desta maneira, como um filme bastante contemporâneo, apto a agradar o público impaciente dos dias atuais (mesmo considerando alguns elementos datados, como mencionado mais acima). Por outro lado, revela um olhar contundente acerca da moral e valores do meio social estadunidense, capaz de levar à reflexão o espectador mais exigente, longe da infantilidade que parece dominar as salas de cinema nos dias de hoje. Além disso, é, antes de tudo, um belo exemplo das capacidades técnicas e artísticas de Sidney Lumet, um diretor que, decididamente, merece ser mais conhecido e, principalmente, reconhecido por seus pares e amantes do cinema.
Cotação:
Nota:9,5
Um comentário:
Fábio, este sim é um filme espetacular. Sidney Lumet é um realizador singular, "12 Homens e Uma Sentença" é um brilhante exemplo do seu preciso trabalho cinematográfico.
O mais interessante na "Nova Hollywood" é a fuga do convencionalismo, seus heróis são excessivamente realistas. O cinema nunca esteve tão próximo dos espetadores. "Um Dia de Cão" é tensão a todo momento, um filme atemporal com grandes atuações.
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