O Homem que Matou o Facínora
(The Man Who Shot Liberty Valance)
Os fatos e as lendas
Em certa oportunidade, Jean-Luc Godard, ainda um crítico da revista Cahiérs du Cinema, foi levado às lágrimas em uma sala de cinema. Ele estava sensibilizado pela forte interpretação de John Wayne e a tragédia vivida pelo personagem deste em “Rastros de Ódio”, um dos mais importantes e amargos westerns de todos os tempos, dirigido por ninguém menos que John Ford, um dos grandes gênios da história do cinema.
Muitos afirmam que o Oeste mítico foi criado por Ford com seus personagens durões e sua bela fotografia das imponentes regiões desérticas norte-americanas, principalmente do Monument Valley. Esta é uma verdade apenas parcial. Não se pode negar que Ford, auxiliado pela presença de John Wayne, seu parceiro em muitos filmes, transmitiu a milhões de espectadores a ideia consagrada da formação da sociedade americana. Contudo, apesar de se valer de mitos e arquétipos, Ford os utiliza não como uma elegia à América, mas principalmente como uma maneira de dissecá-la, mostrando o outro lado, muito menos louvável, desta mesma sociedade. O citado “Rastros de Ódio”, por exemplo, mostra que a formação dos EUA está calcada no racismo, o qual foi responsável pela dizimação indígena e, posteriormente, a segregação dos negros nos estados sulistas.
Já em “O Homem Que Matou o Facínora”, Ford vai ainda mais longe neste processo de desmistificação. Em um olhar mais atento, parece querer afirmar que toda a construção da nação estadunidense, tal como a conhecemos, na realidade pode ser uma grande farsa criada para que não enxerguemos uma realidade não muito bonita ou meritória. Afinal, é mais fácil respeitar a História quando ela nos revela lances de heroísmo e retidão, ingredientes que podem transformá-la em uma autêntica lenda. Mas a História é, antes de tudo, construída por seres humanos, demasiadamente humanos, com circunstâncias humanas que fogem em muito de situações míticas.
O longa-metragem de 1962 (com roteiro escrito por James Warner Bella e Willis Goldbeck, a partir de uma obra de Dorothy M. Johnson) se inicia com a chegada do senador Ransom Stoddard (personagem de James Stewart, um dos melhores e mais carismáticos atores hollywoodianos) à cidade de Shinbone, acompanhado de sua esposa Hallie (Vera Miles), após muitos anos sem retornar, para o funeral de um cidadão local, um certo Tom Doniphon (John Wayne, fazendo sua caracterização típica), homem praticamente desconhecido pelas novas gerações do vilarejo. Instado por jornalistas e o prefeito locais, Stoddard passa a narrar os motivos de sua deferência ao falecido, na realidade o verdadeiro responsável pela eliminação de um bandido que assolava a região anos antes (o Liberty Valance do título original, interpretado por Lee Marvin), feito que acabou sendo atribuído ao agora senador devido às circunstâncias de como ocorreu. Na verdade, Stoddard, à época, era um recém formado em Direito, um homem vindo dos meios mais civilizados do Leste. Um estranho no ninho diante da lei do mais forte que imperava na região selvagem para a qual migrou. Entretanto, vai, aos poucos, descobrindo que as leis são insuficientes para garantir a sobrevivência naquele meio inóspito. Trava-se, desta maneira, de forma alegórica, um embate entre a civilização e o meio selvagem, entre o homem “esclarecido” e o homem “rude” (representado tanto por Liberty Valance quanto por Tom Doniphon). Tal antagonismo é ainda personificado pela personagem de Hallie, que se vê dividida entre o gentil e educado Ransom e o vigoroso e viril Doniphon.
A resolução levada ao conhecimento do público pelos meios comunicação (bastante criticados por Ford no longa) parece sugerir uma conciliação destes dois opostos. O homem civilizado representado por Stoddard usa de métodos embrutecidos quando necessário, no caso para defender sua própria vida. Uma síntese da ideia corriqueira que os próprios norte-americanos fazem de si mesmos: pessoas civilizadas que recorrem à violência quando não resta outra alternativa (pensamento usado para justificar até mesmo a bomba em Hiroshima). No entanto, trata-se de uma grande ilusão vendida através dos séculos. Na trama, Stoddard jamais venceria Valance com suas próprias forças. Apesar de sua coragem, Liberty é morto por Doniphon, com um tiro às escondidas. E, mesmo depois de saber a verdade, Stoddard aceita os louros da fama. Enfim: o senador simboliza uma América que exclui a verdade quando lhe é conveniente. A frase emblemática do longa sintetiza o conceito de forma perfeita: “quando a lenda se torna fato, publique-se a lenda”.
Ou seja, Ford dá um tapa cruel no rosto da sociedade ianque, desconstruindo os mitos e realizando uma auto-crítica como poucas vezes se observa no cenário de Hollywood. Não é à toa que seu estilo clássico, mas ao mesmo tempo incisivo, se tornou referência para várias gerações de cineastas, desde o referido Godard da Nouvelle Vague até nomes como Clint Eastwood (que considero o seu mais talentoso e fiel discípulo direto). Eis um gênio que merece ser mais conhecido pelas novas gerações. No caso dele, sua genialidade é muito mais fato do que lenda.
Cotação:
Nota: 10,0
(The Man Who Shot Liberty Valance)
Os fatos e as lendas
Em certa oportunidade, Jean-Luc Godard, ainda um crítico da revista Cahiérs du Cinema, foi levado às lágrimas em uma sala de cinema. Ele estava sensibilizado pela forte interpretação de John Wayne e a tragédia vivida pelo personagem deste em “Rastros de Ódio”, um dos mais importantes e amargos westerns de todos os tempos, dirigido por ninguém menos que John Ford, um dos grandes gênios da história do cinema.
Muitos afirmam que o Oeste mítico foi criado por Ford com seus personagens durões e sua bela fotografia das imponentes regiões desérticas norte-americanas, principalmente do Monument Valley. Esta é uma verdade apenas parcial. Não se pode negar que Ford, auxiliado pela presença de John Wayne, seu parceiro em muitos filmes, transmitiu a milhões de espectadores a ideia consagrada da formação da sociedade americana. Contudo, apesar de se valer de mitos e arquétipos, Ford os utiliza não como uma elegia à América, mas principalmente como uma maneira de dissecá-la, mostrando o outro lado, muito menos louvável, desta mesma sociedade. O citado “Rastros de Ódio”, por exemplo, mostra que a formação dos EUA está calcada no racismo, o qual foi responsável pela dizimação indígena e, posteriormente, a segregação dos negros nos estados sulistas.
Já em “O Homem Que Matou o Facínora”, Ford vai ainda mais longe neste processo de desmistificação. Em um olhar mais atento, parece querer afirmar que toda a construção da nação estadunidense, tal como a conhecemos, na realidade pode ser uma grande farsa criada para que não enxerguemos uma realidade não muito bonita ou meritória. Afinal, é mais fácil respeitar a História quando ela nos revela lances de heroísmo e retidão, ingredientes que podem transformá-la em uma autêntica lenda. Mas a História é, antes de tudo, construída por seres humanos, demasiadamente humanos, com circunstâncias humanas que fogem em muito de situações míticas.
O longa-metragem de 1962 (com roteiro escrito por James Warner Bella e Willis Goldbeck, a partir de uma obra de Dorothy M. Johnson) se inicia com a chegada do senador Ransom Stoddard (personagem de James Stewart, um dos melhores e mais carismáticos atores hollywoodianos) à cidade de Shinbone, acompanhado de sua esposa Hallie (Vera Miles), após muitos anos sem retornar, para o funeral de um cidadão local, um certo Tom Doniphon (John Wayne, fazendo sua caracterização típica), homem praticamente desconhecido pelas novas gerações do vilarejo. Instado por jornalistas e o prefeito locais, Stoddard passa a narrar os motivos de sua deferência ao falecido, na realidade o verdadeiro responsável pela eliminação de um bandido que assolava a região anos antes (o Liberty Valance do título original, interpretado por Lee Marvin), feito que acabou sendo atribuído ao agora senador devido às circunstâncias de como ocorreu. Na verdade, Stoddard, à época, era um recém formado em Direito, um homem vindo dos meios mais civilizados do Leste. Um estranho no ninho diante da lei do mais forte que imperava na região selvagem para a qual migrou. Entretanto, vai, aos poucos, descobrindo que as leis são insuficientes para garantir a sobrevivência naquele meio inóspito. Trava-se, desta maneira, de forma alegórica, um embate entre a civilização e o meio selvagem, entre o homem “esclarecido” e o homem “rude” (representado tanto por Liberty Valance quanto por Tom Doniphon). Tal antagonismo é ainda personificado pela personagem de Hallie, que se vê dividida entre o gentil e educado Ransom e o vigoroso e viril Doniphon.
A resolução levada ao conhecimento do público pelos meios comunicação (bastante criticados por Ford no longa) parece sugerir uma conciliação destes dois opostos. O homem civilizado representado por Stoddard usa de métodos embrutecidos quando necessário, no caso para defender sua própria vida. Uma síntese da ideia corriqueira que os próprios norte-americanos fazem de si mesmos: pessoas civilizadas que recorrem à violência quando não resta outra alternativa (pensamento usado para justificar até mesmo a bomba em Hiroshima). No entanto, trata-se de uma grande ilusão vendida através dos séculos. Na trama, Stoddard jamais venceria Valance com suas próprias forças. Apesar de sua coragem, Liberty é morto por Doniphon, com um tiro às escondidas. E, mesmo depois de saber a verdade, Stoddard aceita os louros da fama. Enfim: o senador simboliza uma América que exclui a verdade quando lhe é conveniente. A frase emblemática do longa sintetiza o conceito de forma perfeita: “quando a lenda se torna fato, publique-se a lenda”.
Ou seja, Ford dá um tapa cruel no rosto da sociedade ianque, desconstruindo os mitos e realizando uma auto-crítica como poucas vezes se observa no cenário de Hollywood. Não é à toa que seu estilo clássico, mas ao mesmo tempo incisivo, se tornou referência para várias gerações de cineastas, desde o referido Godard da Nouvelle Vague até nomes como Clint Eastwood (que considero o seu mais talentoso e fiel discípulo direto). Eis um gênio que merece ser mais conhecido pelas novas gerações. No caso dele, sua genialidade é muito mais fato do que lenda.
Cotação:
Nota: 10,0
4 comentários:
Adorei o seu texto! Uma ótima análise sobre um dos melhores westerns de Ford. Um abraço!
Tendo Ford na direção, Stewart e Wayne no elenco, já é sim, uma grande curiosidade, agora lendo seu texto, apenas aumenta ...
O título do seu texto disse tudo. E John Ford é obrigatório na vida de qualquer cinéfilo!
Cultura na web:
http://culturaexmachina.blogspot.com
Ford é essencial! Grande abraço para todos!
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