Meryl Thatcher Streep
O mundo em que vivemos hoje, dominado por instituições financeiras que retiram dos povos a sua soberania começou a ser engendrado ao longo da década de 1980 e teve como seus grandes artífices o então presidente dos Estados Unidos, o ex-ator Ronald Reagan, e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Podem colocar na conta do legado de ambos essa lógica cruel de que os governos devem empurrar dinheiro público para salvar os bancos de quebradeiras, ao mesmo tempo em que, quando são os Estados que enfrentam dificuldades, devem cortar gastos públicos (leia-se, menos saúde, menos educação, menos incentivo à cultura...), empreender demissões, reduzir salários entre outras medidas do gênero. Ou seja, quando os bancos vão mal, quem arca com os prejuízos é o povo (via doações estatais para “reestruturar”os falidos). E quando os Estados vão mal das pernas, quem sofre as consequências também é o povo. Sim, a dobradinha Thatcher-Reagan foi a responsável pelo que hoje chamamos de “neoliberalismo”, um modelo que hoje encontra o seu ocaso.
É intrigante que se tenha realizado a ideia de um longa sobre a chamada “Dama de Ferro” (uma alcunha criada pelos soviéticos com um tom inicialmente pejorativo) do Reino Unido justamente em um tempo em que suas ideias se mostram, mais do que nunca, ultrapassadas e passíveis de enormes críticas. Sua postura reconhecidamente autoritária destoa de um mundo onde movimentos como Occupy Wall Street e Anonymous parecem despontar a cada dia. Aliás, os integrantes do citado Anonymous costumam usar a máscara de um personagem criado pelo quadrinhista Alan Moore (na HQ “V de Vingança”, adaptada para o cinema) como uma crítica e reação ao conservadorismo da era Thatcher, marcada por uma forte repressão aos sindicatos – a famosa greve dos mineiros se tornou icônica neste aspecto – e demandas sociais relegadas a segundo plano (qualquer semelhança com ideias defendidas por sabichões da mídia tupiniquim não é mera coincidência). Ou seja, Thatcher foi uma das principais responsáveis pelo fim do Estado do bem-estar social, modelo surgido no Ocidente do pós-guerra como uma reação ao sistema socialista do Leste Europeu.
Um figura politicamente tão controversa como Thatcher, no caso de uma adaptação para o cinema, mereceria a regência de um diretor experiente, acostumado a lidar com personagens reais e que resistisse às tentações de uma possível romantização de sua trajetória (o nome de Martin Scorsese, responsável por obras como “Touro Indomável” e “O Aviador” é o primeiro que me vem à mente). A escolha, entretanto, recaiu em Phyllida Lloyd, uma diretora que está apenas em seu segundo longa-metragem para o cinema (o primeiro foi “Mamma Mia!”, também com Meryl Streep) e que, infelizmente, não resistiu bem às mencionadas tentações, procurando construir a imagem de Margaret como uma “batalhadora-perseverante-que-alcança-seus-sonhos”. Neste ponto, o filme lembra o nacional “Lula, O Filho do Brasil” (2009), muito criticado por aqui por tentar transformar a história do ex-presidente em uma hagiografia. Com “ A Dama de Ferro” não é muito diferente, a começar pela opção escolhida de retratá-la na sua atual fase de demência decorrente do mal de Alzheimer, o que desde logo condiciona o público a enxergá-la com sentimentos de piedade. Uma espécie de recurso, intencional ou não (mas duvido que não o seja), que acaba turvando o nosso senso crítico. Contudo, se este se apresenta como um recurso sutil, há passagens ao longo da projeção que resultam em verdadeiro sensacionalismo, como na sequência em que a então primeira-ministra deixa o cargo se despedindo dos funcionários da 10 Downing Street (a residência oficial do primeiro-ministro), assemelhando-se a uma heroína que se dá adeus aos seus companheiros de batalha.
Além da mistificação, outro ponto me deixou incomodado no trabalho de Lloyd. Ela se esforça o tempo inteiro para atribuir uma conotação feminista à figura de Thatcher, algo que não é verdade. Ela nunca ergueu essa bandeira e suas atitudes enquanto governante demonstram muitos mais serem reflexos de uma mulher masculinizada – não no sentido sexual, mas na forma de entender o Estado e a sociedade – do que a demonstração do feminino no poder. Exemplo claro disso foi a utilização de um conflito armado, no caso a guerra das Malvinas, par alavancar sua popularidade que se encontrava em níveis baixíssimos no início da década de 80. Seu comportamento enquanto governante, dotado de intransigência, autoritarismo e espírito belicoso, na realidade parece muito mais demonstrar que, no fundo, sua chegada ao poder foi muito mais uma vitória do machismo, o qual condiciona as mulheres a agirem como homens para se manterem no poder ou mesmo conseguir administrar. Ou seja, Thatcher jamais representou um avanço nas conquistas dos direitos das mulheres.
Vale dizer, ademais, que “ The Iron Lady” falha não apenas na análise de sua personagem histórica. O filme também não alcança sucesso enquanto narrativa cinematográfica. O roteiro atropelado de Abi Morgan (o mesmo do polêmico “Shame”, ausente do Oscar), realizado a partir de flashbacks constantes, torna a experiência desinteressante e por vezes confusa. Boa parte do enredo se desenrola com Thatcher dialogando com a alucinação de Denis, seu marido falecido em 2003, numa temerária suposição de como funciona sua consciência. Além disso, o longa possui uma câmera nervosa totalmente inadequada ao tom introspectivo que tenta imprimir, cheia de angulações e movimentos desnecessários. Sinceramente, cheguei a ficar aborrecido em algumas passagens. A dispersão do público é quase inevitável durante a sessão.
Se esta não chega a acontecer completamente isso se deve principalmente a dois fatores. Por mais tendenciosa ou superficial que seja a análise apresentada, a história de uma figura pública tão relevante (para o bem ou para o mal) sempre despertará interesse, nem que seja para criticar as omissões ou distorções dos fatos. Destarte, não resta dúvida que o grande chamariz de “A Dama de Ferro” é a soberba atuação de Meryl Streep. Impecável, sua interpretação lembra a de Marion Cotillard em “Piaf – Um Hino Ao Amor” (La Môme, 2007), realizando um autêntico mergulho não apenas no exterior, mas também na alma da figura retratada. Um trabalho impressionante que consegue deixar o espectador interessado na narrativa, por mais falhas que esta apresente. Sua indicação ao Oscar é mais do que justa e será ainda mais justo se ela de fato levar o prêmio, muito embora a tendência seja a de premiar Viola Davis (que também nos entrega uma grande interpretação em “Histórias Cruzadas”, convém lembrar). Afinal, apesar de seu enorme talento (quem não é seu fã?), Meryl já se tornou a maior perdedora do Oscar, tendo levado apenas 2 vezes e perdido em 15 oportunidades. Auxiliando a grande atriz, ainda temos uma maquiagem fabulosa de Mark Coulier que auxilia no seu envelhecimento.
No entanto, uma grande atuação pode salvar um filme do desastre, mas não irá transformá-lo em um bom trabalho. Cheio de tropeços, romantizações e parcialidades, “A Dama de Ferro” nem chega a ser tão controverso quanto sua biografada pelo simples motivo de que, no caso desta, alguns adeptos de sua visão conservadora poderão defender com unhas e dentes sua gestão (o que, como já deixei transparecer, não é o meu caso). Entretanto, mesmo os admiradores da líder britânica hão de convir que esta cinebiografia de Phyllida Lloyd deixa bastante a desejar. A verdade é que, não fosse a atuação de Streep, o longa-metragem mereceria o mesmo destino das políticas da “Dama de Ferro”: o esquecimento. Acredito que não seria uma má ideia alterar o título do longa para“Meryl Thatcher Streep”...
Cotação:
Nota: 6,5
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ATUALIZADO: E Meryl venceu mesmo!
O mundo em que vivemos hoje, dominado por instituições financeiras que retiram dos povos a sua soberania começou a ser engendrado ao longo da década de 1980 e teve como seus grandes artífices o então presidente dos Estados Unidos, o ex-ator Ronald Reagan, e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Podem colocar na conta do legado de ambos essa lógica cruel de que os governos devem empurrar dinheiro público para salvar os bancos de quebradeiras, ao mesmo tempo em que, quando são os Estados que enfrentam dificuldades, devem cortar gastos públicos (leia-se, menos saúde, menos educação, menos incentivo à cultura...), empreender demissões, reduzir salários entre outras medidas do gênero. Ou seja, quando os bancos vão mal, quem arca com os prejuízos é o povo (via doações estatais para “reestruturar”os falidos). E quando os Estados vão mal das pernas, quem sofre as consequências também é o povo. Sim, a dobradinha Thatcher-Reagan foi a responsável pelo que hoje chamamos de “neoliberalismo”, um modelo que hoje encontra o seu ocaso.
É intrigante que se tenha realizado a ideia de um longa sobre a chamada “Dama de Ferro” (uma alcunha criada pelos soviéticos com um tom inicialmente pejorativo) do Reino Unido justamente em um tempo em que suas ideias se mostram, mais do que nunca, ultrapassadas e passíveis de enormes críticas. Sua postura reconhecidamente autoritária destoa de um mundo onde movimentos como Occupy Wall Street e Anonymous parecem despontar a cada dia. Aliás, os integrantes do citado Anonymous costumam usar a máscara de um personagem criado pelo quadrinhista Alan Moore (na HQ “V de Vingança”, adaptada para o cinema) como uma crítica e reação ao conservadorismo da era Thatcher, marcada por uma forte repressão aos sindicatos – a famosa greve dos mineiros se tornou icônica neste aspecto – e demandas sociais relegadas a segundo plano (qualquer semelhança com ideias defendidas por sabichões da mídia tupiniquim não é mera coincidência). Ou seja, Thatcher foi uma das principais responsáveis pelo fim do Estado do bem-estar social, modelo surgido no Ocidente do pós-guerra como uma reação ao sistema socialista do Leste Europeu.
Um figura politicamente tão controversa como Thatcher, no caso de uma adaptação para o cinema, mereceria a regência de um diretor experiente, acostumado a lidar com personagens reais e que resistisse às tentações de uma possível romantização de sua trajetória (o nome de Martin Scorsese, responsável por obras como “Touro Indomável” e “O Aviador” é o primeiro que me vem à mente). A escolha, entretanto, recaiu em Phyllida Lloyd, uma diretora que está apenas em seu segundo longa-metragem para o cinema (o primeiro foi “Mamma Mia!”, também com Meryl Streep) e que, infelizmente, não resistiu bem às mencionadas tentações, procurando construir a imagem de Margaret como uma “batalhadora-perseverante-que-alcança-seus-sonhos”. Neste ponto, o filme lembra o nacional “Lula, O Filho do Brasil” (2009), muito criticado por aqui por tentar transformar a história do ex-presidente em uma hagiografia. Com “ A Dama de Ferro” não é muito diferente, a começar pela opção escolhida de retratá-la na sua atual fase de demência decorrente do mal de Alzheimer, o que desde logo condiciona o público a enxergá-la com sentimentos de piedade. Uma espécie de recurso, intencional ou não (mas duvido que não o seja), que acaba turvando o nosso senso crítico. Contudo, se este se apresenta como um recurso sutil, há passagens ao longo da projeção que resultam em verdadeiro sensacionalismo, como na sequência em que a então primeira-ministra deixa o cargo se despedindo dos funcionários da 10 Downing Street (a residência oficial do primeiro-ministro), assemelhando-se a uma heroína que se dá adeus aos seus companheiros de batalha.
Além da mistificação, outro ponto me deixou incomodado no trabalho de Lloyd. Ela se esforça o tempo inteiro para atribuir uma conotação feminista à figura de Thatcher, algo que não é verdade. Ela nunca ergueu essa bandeira e suas atitudes enquanto governante demonstram muitos mais serem reflexos de uma mulher masculinizada – não no sentido sexual, mas na forma de entender o Estado e a sociedade – do que a demonstração do feminino no poder. Exemplo claro disso foi a utilização de um conflito armado, no caso a guerra das Malvinas, par alavancar sua popularidade que se encontrava em níveis baixíssimos no início da década de 80. Seu comportamento enquanto governante, dotado de intransigência, autoritarismo e espírito belicoso, na realidade parece muito mais demonstrar que, no fundo, sua chegada ao poder foi muito mais uma vitória do machismo, o qual condiciona as mulheres a agirem como homens para se manterem no poder ou mesmo conseguir administrar. Ou seja, Thatcher jamais representou um avanço nas conquistas dos direitos das mulheres.
Vale dizer, ademais, que “ The Iron Lady” falha não apenas na análise de sua personagem histórica. O filme também não alcança sucesso enquanto narrativa cinematográfica. O roteiro atropelado de Abi Morgan (o mesmo do polêmico “Shame”, ausente do Oscar), realizado a partir de flashbacks constantes, torna a experiência desinteressante e por vezes confusa. Boa parte do enredo se desenrola com Thatcher dialogando com a alucinação de Denis, seu marido falecido em 2003, numa temerária suposição de como funciona sua consciência. Além disso, o longa possui uma câmera nervosa totalmente inadequada ao tom introspectivo que tenta imprimir, cheia de angulações e movimentos desnecessários. Sinceramente, cheguei a ficar aborrecido em algumas passagens. A dispersão do público é quase inevitável durante a sessão.
Se esta não chega a acontecer completamente isso se deve principalmente a dois fatores. Por mais tendenciosa ou superficial que seja a análise apresentada, a história de uma figura pública tão relevante (para o bem ou para o mal) sempre despertará interesse, nem que seja para criticar as omissões ou distorções dos fatos. Destarte, não resta dúvida que o grande chamariz de “A Dama de Ferro” é a soberba atuação de Meryl Streep. Impecável, sua interpretação lembra a de Marion Cotillard em “Piaf – Um Hino Ao Amor” (La Môme, 2007), realizando um autêntico mergulho não apenas no exterior, mas também na alma da figura retratada. Um trabalho impressionante que consegue deixar o espectador interessado na narrativa, por mais falhas que esta apresente. Sua indicação ao Oscar é mais do que justa e será ainda mais justo se ela de fato levar o prêmio, muito embora a tendência seja a de premiar Viola Davis (que também nos entrega uma grande interpretação em “Histórias Cruzadas”, convém lembrar). Afinal, apesar de seu enorme talento (quem não é seu fã?), Meryl já se tornou a maior perdedora do Oscar, tendo levado apenas 2 vezes e perdido em 15 oportunidades. Auxiliando a grande atriz, ainda temos uma maquiagem fabulosa de Mark Coulier que auxilia no seu envelhecimento.
No entanto, uma grande atuação pode salvar um filme do desastre, mas não irá transformá-lo em um bom trabalho. Cheio de tropeços, romantizações e parcialidades, “A Dama de Ferro” nem chega a ser tão controverso quanto sua biografada pelo simples motivo de que, no caso desta, alguns adeptos de sua visão conservadora poderão defender com unhas e dentes sua gestão (o que, como já deixei transparecer, não é o meu caso). Entretanto, mesmo os admiradores da líder britânica hão de convir que esta cinebiografia de Phyllida Lloyd deixa bastante a desejar. A verdade é que, não fosse a atuação de Streep, o longa-metragem mereceria o mesmo destino das políticas da “Dama de Ferro”: o esquecimento. Acredito que não seria uma má ideia alterar o título do longa para“Meryl Thatcher Streep”...
Cotação:
Nota: 6,5
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ATUALIZADO: E Meryl venceu mesmo!
4 comentários:
Quero muito assistir. Vou durante a semana. Faltarei na faculdade e irei ter essa aula de história.
Adoro Streep.
Abraços
O filme é Meryl e nada mais - o que não é pouca coisa.
O Falcão Maltês
verdade, ela é quem sustenta e segura o filme. só isso já vale pra ver o filme.
Amigos,
Quem não é fã de Meryl Streep?
Oscar merecidíssimo, até mesmo porque já era um absurdo ela ter passado 30 anos sem levar nada!
Abraço!
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