Passado ou presente?
Este é apenas o segundo longa-metragem de Tate Taylor, um ator sem grande destaque que agora acabou obtendo uma abrupta ascensão em Hollywood diante do sucesso que “Histórias Cruzadas” (The Help) obteve nas bilheterias ianques, ultrapassando os 170 milhões de dólares arrecadados. Um ótimo resultado, principalmente diante de seu custo relativamente baixo (US$ 25 milhões). Claro que tal circunstância também se deve ao fato de que o longa é uma adaptação do best-seller “A Resposta”, de Kathryn Stockett, o que, já de imediato, acaba levando o público que gostou da obra literária para a sala de cinema. Por outro lado, não se pode negar que, para um principiante cineasta, o filme se mostra redondo e apto a agradar o grande público, principalmente diante uma temática que é ainda uma ferida aberta na sociedade norte-americana (e em várias outras): o racismo.
A trama essencialmente feminina, com roteiro adaptado para o cinema pelo próprio diretor (1), relata o cotidiano de uma cidade do Mississipi - estado sulista dos mais racistas - no início dos anos 60, período em que o movimento pelos direitos civis, por meio de expoentes como Rosa Parks e, claro, Martin Luther King Jr., ganhava imensa força. A despeito disso, o citado recanto estadunidense ainda vivia um clima de apartheid, meio alheio aos acontecimentos e encontrando pessoas dispostas a transformar em lei costumes discriminatórios como obrigar as empregadas domésticas negras a usarem banheiros apartados dos seus patrões. E são exatamente as empregadas negras o motor da narrativa. Entre elas está Aibileen Clark (Viola Davis, simplesmente excelente), empregada que perdeu o próprio filho e há anos dedica especial atenção às crianças brancas de suas patroas (2). Inteligente e sensível, ela é procurada pela jovem filha da classe média local Eugenia “Skeeter” Phelan (Emma Stone), uma jornalista novata que precisa de sua ajuda para escrever uma coluna sobre tarefas domésticas em um periódico local. No entanto, depois de descobrir que a governanta que praticamente a criou foi demitida por sua mãe após quase 30 anos, Skeeter decide escrever um livro para dar voz às empregadas discriminadas, tentando mostrar desta forma o outro lado da moeda. Assim, ela pede a Aibileen para relatar suas vivências, a qual acaba convencendo sua melhor amiga, Minny Jackson (Octavia Spencer) a também participar da elaboração do livro. Minny, por sua vez, é empregada de Celia Foote (Jessica Chastain), uma mulher recém-casada que é rejeitada no seu círculo social e acredita que isso se deve à sua condição de esposa não prendada, pedindo ajuda à doméstica para ser uma esposa “melhor”. Se estas compõem o lado das “heroínas” das história, da outra ponta temos as vilãs comandadas por Hilly Holbrook (Bryce Dallas-Howard), desprezível mulher que parece passar o tempo elaborando maldades contra as domésticas afro-descendentes.
O grande problema de “Histórias Cruzadas” é justamente essa divisão entre “mocinhas” e “vilãs”, numa estrutura maniqueísta que lembra muito as novelas globais. É impressionante como a personagem de Hilly é unidimensional, jamais demonstrando qualquer traço de humanidade, o que compromete em parte o valor de denúncia histórica a que o longa se propõe. O exagero é tão acentuado que leva o espectador a ser leniente com algumas maldades também nada desprezíveis cometidas contra Hilly, inclusive induzindo-nos a querer justificar algumas atitudes reprováveis das empregadas contra a vilã. Por outro lado, é indubitável a eficácia da película em retratar as humilhações sofridas pela minoria negra antes da garantia dos direitos civis. De banheiros apartados a lugares restritos no transporte público, além de faculdades e escolas distintas de acordo com a raça, inúmeras eram as formas legalizadas de segregação. Uma ferida que não deve ser esquecida para que jamais venha a se repetir.
O sentimento de revolta que impregna a tela se torna ainda maior diante da excelência das atuações, principalmente a de Viola Davis. Impecável como Aibileen, em cada cena é possível sentir as dores de sua personagem, deixando transparecer o seu interior, seus sentimentos de humilhação e revolta, sem jamais extrapolar para a super-atuação. Sua indicação ao Oscar não é por acaso, assim como não é a de Octavia Spencer, mesmo que esta me pareça emular a Whoopi Goldberg de outros tempos, alternando humor e drama nem sempre com a mesma eficácia. Mesmo assim sua presença é forte e, lembrando os prêmios que já levou pelo trabalho (como o Globo de Ouro e o SAG), dificilmente não levará a estatueta da Academia. Jessica Chastain também levou uma indicação pela sua composição estilo Marilyn Monroe para Celia e Emma Stone, como a jornalista Skeeter, se mostra competente em igual medida. Bryce Dallas-Howard aparece caricata, mas aqui o problema é do roteiro, responsável por concebê-la, como já mencionado mais acima, como uma espécie de megera sempre disposta a uma próxima maldade. Aliada ao peso das atuações, temos ainda uma direção de arte impecável na sua reconstituição de época, além de uma edição e ritmo que nos fazem esquecer um pouco a extensa duração do longa (mostrando que Taylor soube fazer o dever de casa mais básico).
Alguns críticos norte-americanos disseram que o filme foi corajoso ao expor um tema complicado para os Estados Unidos. Não vejo assim. Em uma sociedade que se diz livre, tratar dessa chaga não deveria ser um tabu, mas antes de tudo uma obrigação. Seria algo equivalente a considerarmos um “tabu” os cineastas brasileiros remexerem no período negro do governo militar, algo que para nós é tão comum que muitos até já veem o tema como repetido e cansativo. Essa reação da crítica ianque parece denotar que, na verdade, ainda existe de fato muito racismo nos EUA, mesmo que hoje a nação tenha um negro como presidente. Contudo, se essa minha conclusão for verdadeira, o filme de Taylor se mostra, talvez, mais relevante, já que deixaria de apenas se constituir em um registro histórico para tratar também do presente, mesmo que sua tentativa de radiografia passe por um filtro ideológico típico da sociedade estadunidense, notadamente condicionada a simplismos. Um drama racial para americano ver, mas que não deixou de produzir bons resultados cinematográficos.
Cotação:
Nota: 8,5
(1) Foi a escritora que impôs ao estúdio, quando da cessão dos direitos, que o diretor deveria ser Tate Taylor, seu amigo pessoal.
(2) Alguns jornais, como o New York Times e o britânico Daily Mail, denunciaram que a autora Stockett teria se apropriado da história de Abilene Cooper, uma empregada negra que trabalhou para sua família por 12 anos. "Sua família me contratou como empregada doméstica por 12 anos mas então ela roubou minha vida e fez dela um filme de Disney”, disse Abilene ao Daily Mail. Confira no link do jornal (em inglês): http://www.dailymail.co.uk/femail/article-2033369/Her-family-hired-maid-12-years-stole-life-Disney-movie.html
9 comentários:
Não estou completamente curioso para ver este filme. Não sei o motivo exato. Por agora, a história não me parece ser coisa do outro mundo (muito pelo contrário). Bem, estou esperando estrear na minha cidade.
Abs.
Gostei principalmente pelas excelentes atuações, mas não demonstra nada de novo.
O Falcão Maltês
fábio,
eu achei o filme muito bonito, forte e corajoso. inclusive dá raiva ver que existia (e ainda existe) gente que pensa daquele jeito. e pensar que esta época da história é logo ali, 50 anos atrás...
vc viu este filme aqui?
abraços,
raileronline
Alan,
Não é nada que vá mudar sua vida, mas vale à pena ser visto, principalmente pelas atuações.
Nahud,
Concordo com você. Mas, além das atuações, acho que vale por tratar de um tema de nunca perde sua atualidade.
Railer,
Interessante o link que fez com "Distrito 9". Sim, eu o vi e achei interessante. Dois filmes muito diferentes na forma, mas que tratam do mesmo tema. Abraços!
Fábio, q bom q gostou desse filme. Pode não ser uma novidade ou inovador, mas qts são? Acho o importante é trabalhar os textos e os clichês com esperteza e aqui Tate faz muito bem. Não apostaria que possa ganhar algo no oscar, mas independente disso, é um filme muito bom.
fábio, leia também esta postagem aqui, sobre um fato que aconteceu naquela mesma época.
abraços,
raileronline
Celo, eu também considero um bom filme. Mesmo com seus maniqueísmos e alguns clichês, o longa funciona e tem sua relevância. Vai levar de atriz coadjuvante, com certeza.
Railer, Rosa Parks teve um grande papel na luta pelos direitos civis. Uma mulher de fibra. Deveriam fazer um filme sobre ela.
Até a próxima!
Sinceramente, acredito que seja um filme super pretensioso em tudo. Quer mesmo levar às lágrimas ou ao riso fácil e foi feito pra ganhar prêmios, eu pelo menos achei quando vi. Me incomodou o tom super caricatural e que deu rasa abordagem aos personagens. Ainda assim, envolve e é agradável de ver, mas sinceramente esperava bem mais, ainda mais por conta desse "auê" em cima. Não acho merecedor de Oscar algum, ainda que reconheça a ótima atuação de Viola e Octavia. Nota 6,5 pra mim. Um abraço!
Não achei a maior bomba do mundo, mas longe de ser bom também. Como bem disse, maniqueísta ao extremo, criando caricaturas - e nada melhor que Octavia Spencer para comprovar isso, num dos papéis mais patéticos que vi. Além disso, resumem o preconceito racial da época à criação de banheiros separados, enquanto era muito mais grave, com mortes e violência física. Há alguns momentos cômicos, mas nada de mais, mesmo porque é riso fácil. E, calma lá, um filme que defende negras com uma protagonista BRANCA? Por que não colocar a personagem de Viola Davis como protagonista e a de Emma Stone como mera coadjuvante? Nesse caso, dariam maior profundidade a primeira, cortando muito das desnecessidades da personagem de Emma - qual a função de ser namorado na trama? Enfim, não é de todo ruim mesmo, a direção de arte e figurinos são impecáveis. Ademais, achei extremamente interessante a segunda informação que você colocou no fim do texto!
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