O tempo não ajudou
A cultura de massas tem como efeito colateral banalizar certos tipos de estruturas narrativas que, de tão mastigadas, vêm causando muito mais enfado e impaciência nas plateias do que algum tipo de entusiasmo. Não que isso seja um fenômeno exatamente novo. Afinal, “Dom Quixote De La Mancha”, a obra-prima de Miguel de Cervantes, já se constituía, nos idos do século XVII, em uma crítica aos exageros e mesmice dos então populares romances de cavalaria. Entretanto, também tem razão quem diz que todas as histórias já foram contadas, só o que muda é a forma de contá-las e é nessa ideia que os produtores, em tempos de uma maré criativa tão baixa como a atual, parecem se apoiar para realizar os seus mais pesados investimentos, sempre apegados a uma noção de cinema voltado para o público adolescente-masculino. E põe pesados nisso. Com “John Carter: Entre Dois Mundos”, a Disney-Pixar investiu nada menos que 250 milhões de dólares, colocando o longa-metragem entre os 10 mais caros da história.
Não deixa de ser corajosa a atitude do estúdio em investir tanto dinheiro em um personagem pouco conhecido, criado por Edgar Rice Burroughs (o autor de Tarzan) 100 anos atrás, em 1912, na ficção “Uma Princesa de Marte”, fugindo da zona de conforto de adaptar apenas figuras com um prévio grande apelo pop (como é o caso dos heróis das HQs de hoje, como Homem-Aranha ou os X-Men). Claro que tanto investimento também faz parte de seus planos mercadológicos de emplacar uma nova franquia - algo que já havia tentado, sem o sucesso esperado, com “O Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo” (Prince of Persia: The Sands of Time, 2010) - para substituir a série “Piratas do Caribe”, que já demonstra sinais de cansaço. Mas é saudável que, pelo menos a princípio, saia da acomodação e explore um novo universo,apto a trazer algum sabor de novidade ao mercado de blockbusters.
O maior problema desta adaptação é justamente a sensação de que ela não soa tão original quanto deveria ser. A ideia de adaptar o livro de Burroughs era bastante antiga, remontando aos anos 30. Todavia, acabou ficando de lado e outros livros e filmes acabaram bebendo da fonte criada por Burroughs - como é o caso de George Lucas, cuja série “Star Wars” tem no planeta Tatooine, com seu visual desértico, uma nítida demonstração da influência da obra do primeiro. Sendo assim, ao longo da projeção, é inevitável que o espectador se lembre de tramas semelhantes (a maioria recordará de “Avatar”), onde um homem acaba tendo de superar as barreiras culturais impostas pelo contato com um nova civilização para, posteriormente, unir-se a elas e vencer inimigos e adversidades. No caso de John Carter (interpretado pelo desconhecido Taylor Kitsch), ele é um ex-combatente da Guerra de Secessão, cheio de vários traumas oriundos do conflito. Ao descobrir, por acaso, uma mina de ouro, Carter encontra nela um estranho artefato que o transportará em um piscar de olhos ao planeta Marte, o qual é denominado pelos nativos de Barsoom. Lá, terá de reaprender até mesmo a andar, já que os dois planetas possuem gravidades diversas. Também lidará com três povos diferentes, todos em conflito e conhecerá a princesa de um deles, Dejah Thoris (a também pouco conhecida Lynn Collins), por quem obviamente se apaixonará.
Dirigido por Andrew Stanton, estreante no cinema live-action (ele é o diretor das excelentes animações “Wall-E” e “Procurando Nemo”), a trama se desenrola redonda, sem atropelos, contando direitinho a estória (sabendo usar bem o recurso dos flashbacks para mostrar o passado de Carter) e estabelecendo um bom ritmo para a ação, em alguns momentos realmente vibrante, contando com ótimos efeitos especiais e uma bela fotografia dos “desertos de Marte” - na realidade, os desertos do estado de Utah, famosos no cinema pelos westerns do mestre John Ford. Há ainda uma boa sacada metalinguística do roteiro em colocar o próprio Edgar Rice Burroghs como o sobrinho de John Carter, exercendo papel importante na forma como a narrativa se desenvolve. E os atores-protagonistas, desconhecidos do grande público (o que talvez seja uma ideia acertada para começar uma franquia, vide o trabalho de Lucas no “Star Wars” original), até que não comprometem, com Taylor Kitsch, mesmo oscilante, rendendo bons momentos.
No entanto, como quase tudo que vemos no circuito comercial hoje, a sensação de que já vimos todo aquele enredo em algum lugar é constante. Todos os passos são previsíveis. A chegada e estranhamento de Carter no no novo mundo; sua aproximação dos nativos; a sua consagração como herói... Mais uma versão moderna e pop de “Pocahontas”, enfim, com aquele subtexto de respeito aos povos e suas culturas que agora já aparece como clichê (muito embora nunca perca sua relevância). Uma pena que as ideias originais de Burroughs tenham caído na banalidade neste longo lapso temporal que separou seus escritos da adaptação para a tela grande. E é fazendo justiça ao autor que podemos elogiar seu poder criativo, mesmo que hoje a aventura não cause o impacto que deveria, resultando a sessão em apenas um bom divertimento.
Cotação:
Nota: 7,5
5 comentários:
Fábio, para variar, mais um texto super bem escrito. Toda vez que venho aqui me deparo com muita coerencia, mesmo as vezes discordando de alguma coisa. Ainda não vi esse John Carter, mas pelo que parece, pelo menos entrete. Hoje em dia o cinemão tem se preocupado mais em agradar quem busco divertimento. Isso não é ruim, mas como vc bem disse, soa repetitivo e as vezes enfadonho. Até mesmo para algo que parece precursor. Grande Abraço, meu camarada.
As palavras do Celo são as minhas. Tanto sobre seu texto quanto sobre o cinemão.
Esse filme não me atraiu. Não mesmo.
Não é o tipo de filme que me anima...
O Falcão Maltês
vi o trailer mas não deu vontade de ver este filme.
"Uma pena que as ideias originais de Burroughs tenham caído na banalidade neste longo lapso temporal que separou seus escritos da adaptação para a tela grande." Bem isso mesmo. Muito embora não tenha assistido, dá pra imaginar que seja por aí mesmo. Lástima que a adaptação do livro que inspirou vários filmes seja vista hoje como clichê, justamente por causa dos inspirados na obra literária. Chega a ser irônico. Pra todos os efeitos, estou extremamente curioso para ver John Carter, que amigos disseram que é divertidíssimo.
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