Risos e intimismo
Há poucos dias, em uma entrevista na TV, Selton Mello disse que há 30 anos nutre a dúvida de realmente ter feito a escolha certa ao seguir a carreira de ator, sentimento que até já o levou a momentos de depressão. Tendo conhecimento dessa circunstância podemos perceber que “O Palhaço”, o seu segundo filme na direção (o primeiro foi “Feliz Natal”, em 2008), possui linhas extremamente autorais. Afinal, Benjamim/Pangaré, o palhaço sem carteira de identidade e CPF que o ator e diretor interpreta no longa que teve sua estreia nacional na última sexta-feira, é um artista circense que se vê desmotivado com a vida que escolheu. Ou, pior ainda, que talvez não tenha escolhido, mas apenas herdado, dado que seu pai Valdemar (Paulo José), o dono do circo Esperança, também encarna o palhaço Puro Sangue, fazendo dupla com o filho no picadeiro. Destarte, tal sentimento de “destino imposto” é apenas mais um dos que fazem Benjamim oscilar. As limitações financeiras da vida mambembe, que chegam a transformar a compra de um mero ventilador em um “sonho de consumo”, também lhe fazem desejar seguir outro rumo, assim como a sensação de que o circo também prejudica muito a sua vida afetiva, impedindo-o de constituir laços sólidos com uma mulher.
Desta forma, vê-se que Selton soube levar o drama de Benjamim para além de uma questão unidimensional, assim como o são realmente as nossas escolhas e indecisões. O próprio fato de não possuir uma carteira de identidade serve como metáfora direta de que o referido palhaço ainda não sabe exatamente quem é e que quer ser. Da mesma maneira, o diretor teve a sabedoria de não transformar o enredo (com roteiro escrito pelo próprio Selton em parceria com Marcelo Vindicato) em um dramalhão acentuado, algo que poderia facilmente acontecer em mãos menos talentosas. Pelo contrário. A despeito do tom circunspecto que imprimiu a Pangaré, o longa, na maior parte do tempo, leva o espectador ao riso, sempre contrapondo o drama do protagonista a situações inusitadas e engraçadas, o que, por vezes, realça ainda mais o sentimento de solidão do mesmo. Dar ao riso efeitos intimistas é coisa para poucas obras e esta se destaca justamente por conseguir tal resultado.

Interessante observar que boa parte da narrativa se desenvolve de forma bastante visual. As inquietações de Benjamim são principalmente percebidas através de imagens, como, para citar um exemplo, os constantes olhares deste para os ventiladores, denotando o seu enorme desejo de possuir o aparelho. Além disso, as próprias apresentações circenses da trupe do Esperança funcionam como um elemento narrativo importante, servindo para contar a estória ao mesmo tempo que se colocam como marcos na psique do protagonista e ainda como revelação de conflitos latentes entre os personagens, como a insatisfação de Benjamim a respeito do relacionamento de seu pai com uma mulher bem mais jovem e atraente (Giselle Motta), mas de caráter bastante duvidoso. Interessante que os conflitos praticamente não são verbalizados, mas acabam percebidos pelo público sem que seja empreendido muito esforço, mais uma vez demonstrando que acreditar na inteligência do espectador é sempre uma atitude extremamente bem-vinda em uma obra cinematográfica.
Para contar uma narrativa de maneira tão visual e eficiente, a fotografia de Adrian Teijido dá uma enorme contribuição, sempre captando à perfeição as expressões dos personagens, com enquadramentos inteligentes e inusitados e sabendo utilizar muito bem os close-ups – algo raro no cinema brasileiro, que costuma exagerar nesse quesito por influência da televisão. A fotografia e a edição (do próprio Selton em parceria com Marília Moraes), ademais, nos dão por diversas vezes a sensação de estarmos realmente em um circo, uma impressão interessantíssima que me fez relembrar imediatamente as oportunidades em que de fato estive sob uma lona de picadeiro, fazendo-me rir como um garoto ao ver as palhaçadas de Pangaré e Puro Sangue. Aliada às ótimas montagem e fotografia está a trilha sonora, belíssima e sem cair em qualquer pieguice, culminando com a inserção de uma canção famosa na voz de Moacyr Franco, cantor hoje um tanto esquecido e que por sinal faz uma breve, embora bastante marcante e divertida, participação no longa.

E Moacyr não é o único artista esquecido a ser resgatado por Selton na produção. Revelando aqui as influências de Quentin Tarantino (cineasta que declaradamente é uma de suas maiores referências), Selton convidou figuras queridas e pouco lembradas como Ferrugem e Jorge Loredo (o Zé Bonitinho, lembram?) para também fazerem curtas e bem-humoradas pontas, ideia que deu ainda mais brilho ao competente elenco, mesmo que formado essencialmente por atores pouco conhecidos do grande público (uma das poucas exceções é a do seu irmão Danton). O show, entretanto, fica mesmo por conta da dupla Selton e Paulo José. Curioso que o diretor não pensava para si mesmo o papel de Benjamim/Pangaré, tendo primeiramente convidado Wagner Moura e Rodrigo Santoro para assumi-lo. Contudo, como ambos estavam já envolvidos em outros projetos que coincidiam com os prazos de “O Palhaço”, impossibilitando suas participações, sugeriram que o próprio diretor interpretasse o papel central. E este demonstra mais uma vez ser um dos melhores atores de sua geração, mesmo que esteja hoje querendo se dedicar mais à direção. Já Paulo José (amigo pessoal de Selton), além de sua ótima e contida atuação, nos entrega um verdadeiro exemplo de superação e amor à arte tendo em vista as dificuldades que hoje passa devido à doença de Parkinson que o acomete há anos e que o levou a implantar um eletrodo no cérebro para voltar a controlar os movimentos, muito embora ainda apresente hoje acentuada dificuldade na fala (não percebida na projeção).
Claro que, diante do tema circense, sempre somos levados às lembranças da obra do gênio Federico Fellini e, inevitavelmente, suas influências também se fazem sentir - alguns momentos me remeteram imediatamente a “A Estrada da Vida” (La Strada, 1954), inclusive a sua cena inicial, e a crise pela qual passa Benjamim relembra o Guido de “8 1/2”. Tal circunstância, entretanto, acaba sendo mais um elogio a esta obra de Selton, o qual se qualifica como um dos melhores diretores em atividade no Brasil já no seu segundo trabalho por trás das câmeras. Aliás, se pensarem este filme para uma possível campanha para o Oscar 2013 (já que para 2012 o nosso concorrente será “Tropa de Elite 2”) acredito que ele terá ótimas chances, pois mesmo o cinema mundial está carente de obras tão sensíveis e intimistas, filmes que fazem o público ser tocado ao mesmo tempo em que dá boas risadas na sala de exibição. Poucos autores atingiram este feito (Charles Chaplin, outro produtor-diretor-roteirista-ator, é o primeiro que me vem à mente) e Selton Mello conseguiu, qualificando-se, desta forma, como um autor de primeira linha e que parece ter um futuro brilhante pela frente.
Cotação:

Nota: 10,0
Há poucos dias, em uma entrevista na TV, Selton Mello disse que há 30 anos nutre a dúvida de realmente ter feito a escolha certa ao seguir a carreira de ator, sentimento que até já o levou a momentos de depressão. Tendo conhecimento dessa circunstância podemos perceber que “O Palhaço”, o seu segundo filme na direção (o primeiro foi “Feliz Natal”, em 2008), possui linhas extremamente autorais. Afinal, Benjamim/Pangaré, o palhaço sem carteira de identidade e CPF que o ator e diretor interpreta no longa que teve sua estreia nacional na última sexta-feira, é um artista circense que se vê desmotivado com a vida que escolheu. Ou, pior ainda, que talvez não tenha escolhido, mas apenas herdado, dado que seu pai Valdemar (Paulo José), o dono do circo Esperança, também encarna o palhaço Puro Sangue, fazendo dupla com o filho no picadeiro. Destarte, tal sentimento de “destino imposto” é apenas mais um dos que fazem Benjamim oscilar. As limitações financeiras da vida mambembe, que chegam a transformar a compra de um mero ventilador em um “sonho de consumo”, também lhe fazem desejar seguir outro rumo, assim como a sensação de que o circo também prejudica muito a sua vida afetiva, impedindo-o de constituir laços sólidos com uma mulher.
Desta forma, vê-se que Selton soube levar o drama de Benjamim para além de uma questão unidimensional, assim como o são realmente as nossas escolhas e indecisões. O próprio fato de não possuir uma carteira de identidade serve como metáfora direta de que o referido palhaço ainda não sabe exatamente quem é e que quer ser. Da mesma maneira, o diretor teve a sabedoria de não transformar o enredo (com roteiro escrito pelo próprio Selton em parceria com Marcelo Vindicato) em um dramalhão acentuado, algo que poderia facilmente acontecer em mãos menos talentosas. Pelo contrário. A despeito do tom circunspecto que imprimiu a Pangaré, o longa, na maior parte do tempo, leva o espectador ao riso, sempre contrapondo o drama do protagonista a situações inusitadas e engraçadas, o que, por vezes, realça ainda mais o sentimento de solidão do mesmo. Dar ao riso efeitos intimistas é coisa para poucas obras e esta se destaca justamente por conseguir tal resultado.
Interessante observar que boa parte da narrativa se desenvolve de forma bastante visual. As inquietações de Benjamim são principalmente percebidas através de imagens, como, para citar um exemplo, os constantes olhares deste para os ventiladores, denotando o seu enorme desejo de possuir o aparelho. Além disso, as próprias apresentações circenses da trupe do Esperança funcionam como um elemento narrativo importante, servindo para contar a estória ao mesmo tempo que se colocam como marcos na psique do protagonista e ainda como revelação de conflitos latentes entre os personagens, como a insatisfação de Benjamim a respeito do relacionamento de seu pai com uma mulher bem mais jovem e atraente (Giselle Motta), mas de caráter bastante duvidoso. Interessante que os conflitos praticamente não são verbalizados, mas acabam percebidos pelo público sem que seja empreendido muito esforço, mais uma vez demonstrando que acreditar na inteligência do espectador é sempre uma atitude extremamente bem-vinda em uma obra cinematográfica.
Para contar uma narrativa de maneira tão visual e eficiente, a fotografia de Adrian Teijido dá uma enorme contribuição, sempre captando à perfeição as expressões dos personagens, com enquadramentos inteligentes e inusitados e sabendo utilizar muito bem os close-ups – algo raro no cinema brasileiro, que costuma exagerar nesse quesito por influência da televisão. A fotografia e a edição (do próprio Selton em parceria com Marília Moraes), ademais, nos dão por diversas vezes a sensação de estarmos realmente em um circo, uma impressão interessantíssima que me fez relembrar imediatamente as oportunidades em que de fato estive sob uma lona de picadeiro, fazendo-me rir como um garoto ao ver as palhaçadas de Pangaré e Puro Sangue. Aliada às ótimas montagem e fotografia está a trilha sonora, belíssima e sem cair em qualquer pieguice, culminando com a inserção de uma canção famosa na voz de Moacyr Franco, cantor hoje um tanto esquecido e que por sinal faz uma breve, embora bastante marcante e divertida, participação no longa.
E Moacyr não é o único artista esquecido a ser resgatado por Selton na produção. Revelando aqui as influências de Quentin Tarantino (cineasta que declaradamente é uma de suas maiores referências), Selton convidou figuras queridas e pouco lembradas como Ferrugem e Jorge Loredo (o Zé Bonitinho, lembram?) para também fazerem curtas e bem-humoradas pontas, ideia que deu ainda mais brilho ao competente elenco, mesmo que formado essencialmente por atores pouco conhecidos do grande público (uma das poucas exceções é a do seu irmão Danton). O show, entretanto, fica mesmo por conta da dupla Selton e Paulo José. Curioso que o diretor não pensava para si mesmo o papel de Benjamim/Pangaré, tendo primeiramente convidado Wagner Moura e Rodrigo Santoro para assumi-lo. Contudo, como ambos estavam já envolvidos em outros projetos que coincidiam com os prazos de “O Palhaço”, impossibilitando suas participações, sugeriram que o próprio diretor interpretasse o papel central. E este demonstra mais uma vez ser um dos melhores atores de sua geração, mesmo que esteja hoje querendo se dedicar mais à direção. Já Paulo José (amigo pessoal de Selton), além de sua ótima e contida atuação, nos entrega um verdadeiro exemplo de superação e amor à arte tendo em vista as dificuldades que hoje passa devido à doença de Parkinson que o acomete há anos e que o levou a implantar um eletrodo no cérebro para voltar a controlar os movimentos, muito embora ainda apresente hoje acentuada dificuldade na fala (não percebida na projeção).
Claro que, diante do tema circense, sempre somos levados às lembranças da obra do gênio Federico Fellini e, inevitavelmente, suas influências também se fazem sentir - alguns momentos me remeteram imediatamente a “A Estrada da Vida” (La Strada, 1954), inclusive a sua cena inicial, e a crise pela qual passa Benjamim relembra o Guido de “8 1/2”. Tal circunstância, entretanto, acaba sendo mais um elogio a esta obra de Selton, o qual se qualifica como um dos melhores diretores em atividade no Brasil já no seu segundo trabalho por trás das câmeras. Aliás, se pensarem este filme para uma possível campanha para o Oscar 2013 (já que para 2012 o nosso concorrente será “Tropa de Elite 2”) acredito que ele terá ótimas chances, pois mesmo o cinema mundial está carente de obras tão sensíveis e intimistas, filmes que fazem o público ser tocado ao mesmo tempo em que dá boas risadas na sala de exibição. Poucos autores atingiram este feito (Charles Chaplin, outro produtor-diretor-roteirista-ator, é o primeiro que me vem à mente) e Selton Mello conseguiu, qualificando-se, desta forma, como um autor de primeira linha e que parece ter um futuro brilhante pela frente.
Cotação:

Nota: 10,0