A dúvida “casmurra” de Gonzagão
Luiz Gonzaga e Luiz Gonzaga Jr. formam um incomum caso de talento que passou de pai para filho. O pai, o lendário Gonzagão, é um dos maiores gênios da nossa música popular, um dos responsáveis até pela construção de nossa identidade cultural, principalmente do Nordeste, que tem como “hino” extraoficial a canção “Asa Branca”, fruto de sua parceria com o advogado Humberto Teixeira. Já Gozaguinha é um dos expoentes do gênero que hoje se define como “MPB”, compositor socialmente engajado e dono de uma sensibilidade ímpar, capaz de emocionar mesmo o coração mais duro. O que nem todo mundo sabe é que pai e filho tiveram um relação complicadíssima, fruto da indiferença afetiva com que Luiz Gonzaga tratou seu filho durante a maior parte da vida. “Gonzaga: De Pai Pra Filho”, novo longa-metragem do diretor Breno Silveira, é, em boa medida, muito mais do que uma simples biografia do Rei do Baião. Trata-se de uma busca pelas motivações desse desentendimento, as razões que levaram os dois ao afastamento e posterior reconciliação.
Na verdade, este é um projeto antigo de Silveira, mais precisamente de 7 anos, iniciado logo após a estreia de “2 Filhos de Francisco”, a ótima cinebiografia dos cantores sertanejos Zezé Di Camargo e Luciano dirigida pelo mesmo em 2005. Baseado no livro Regina Echeverria e com adaptação da roteirista Patrícia Andrade, Silveira conseguiu algo improvável: coadunar com qualidade a história de vida do biografado sendo não somente didático, mas procurando analisar suas atitudes sem oferecer julgamentos e, ao mesmo tempo, conseguindo atingir uma veia emocional forte, que dificilmente deixará o espectador indiferente. Pode-se acusar o filme de romancear a vida de Gonzaga - o que, em parte, é verdade, principalmente no que diz respeito à sua primeira metade – bem como de amenizar algumas passagens pouco valorosas de sua vida (como seu apoio ao governo militar, ao menos no início) e de seu filho (o alcoolismo de Gonzaguinha é apenas sugerido). Contudo, é muito difícil condensar todo o histórico de vida de um ser humano em apenas duas horas e a abordagem escolhida pelo cineasta mostrou-se feliz em sua maior parte.
A história é narrada em estrutura de flashback, iniciando a partir do momento em que Gonzaguinha recebe um pedido de sua madrasta, Helena, para que vá até Exu, em Pernambuco, para encontrar seu pai, o qual está precisando de sua ajuda. Mesmo que relutante, Gonzaga Jr. empreende a viagem até a terra natal de seu genitor e, desde o primeiro encontro dos dois na tela, já percebemos o quão difícil era a relação entre ambos. É então que o filho resolve entrevistar o pai, usando para tanto um gravador (daqueles de fitas cassete bem oitentistas), buscando entendê-lo melhor a partir de suas memórias. E seguimos a vida de Gonzagão, desde a saída de Exu, fugindo de um coronel que não via com bons olhos o interesse de Luiz pela sua filha, passando a seguir por diversos episódios. Estão na tela sua vivência no exército; a chegada ao Rio de Janeiro; a ausência de sucesso ao iniciar sua vida de sanfoneiro tocando ritmos estrangeiros, como tango e fado, além de sua ascensão ao resolver investir na suas raízes e colocar no seu acordeon os ritmos do sertão nordestino.
É importante ressaltar que, mesmo relatando praticamente toda a trajetória do Rei do Baião, em nenhum momento Silveira perde o foco de tentar compreender a gênese dos seus atritos com o filho. Silveira, inclusive, optou por uma das versões da história do nascimento do garoto, aparentemente nunca inteiramente esclarecida. Se você fizer uma rápida pesquisa no nosso amigo Google, encontrará vária versões sobre a relação de Gonzaga com Odaleia Santos (no filme interpretada por Nanda Costa), alguns chegando a afirmar que ela já estaria grávida quando os dois se casaram e o músico teria assumido a paternidade do menino mesmo sabendo que não era o pai. A versão que vemos no filme é a da dúvida “casmurra” tornada célebre pelo nosso Machado de Assis. O Mestre Lua teria passado a vida com a dúvida sobre a paternidade daquele garoto que nem mesmo guarda semelhanças físicas com o genitor e que tinha como mãe uma mulher que trabalhava como dançarina de salão e tinha uma conduta “avançada” para a época. Desta forma, sugere-se que todo o abandono afetivo de Gonzagão por seu rebento tem suas origens nessa interrogação, algo que só iria crescer com tempo, principalmente a partir de seu segundo casamento com a secretária e contadora Helena Cavalcanti (papel de Roberta Gualda),a qual não conseguia engravidar e acusava Luiz de ser estéril, dando ainda mais força, portanto, à ideia de que Gonzaguinha não era seu filho. Sendo ou não a versão verídica dos acontecimentos, a opção narrativa se coloca como a maneira ideal de apresentar aquela história ao público.
Para o desenvolvimento de uma boa cinebiografia, boas atuações são importantes e é neste ponto que a produção se mostra oscilante. Nenhum dos três atores que interpretam Gonzaga nos oferecem grandes desempenhos, principalmente Chambinho do Acordeon, músico profissional que topou encarnar Gonzaga em sua fase adulta. Em várias de suas cenas, principalmente aquelas que mostram os shows de Luiz, ele se mostra artificial, quase caricato, embora tenha carisma. Entretanto, os outros dois intérpretes, Land Vieira e Adélio Lima, que fazem o Gonzaga adolescente e idoso, respectivamente, se não são brilhantes ao menos não comprometem o personagem, mostrando certa competência. O destaque interpretativo vai mesmo para Júlio Andrade interpretando Gonzaguinha em sua fase adulta. Ele simplesmente surge como uma espécie de reencarnação do cantor e compositor e não só no que se refere à semelhança física. Seus trejeitos, postura, o ar reflexivo e levemente arrogante de Gonzaguinha estão lá presentes e chegaram a impressionar até mesmo a família do músico (sua viúva chorou em uma sessão privada oferecida pela produção do longa). Curioso que Andrade conhecia bastante da vida e obra de Gonzaguinha antes mesmo de assumir o papel, pois seu pai é fã do músico e o ator cresceu ouvindo e vendo em casa a carreira da interpretado.
Pode-se concluir que “Gonzaga: De Pai Pra Filho” é um filme típico de Breno Silveira. Narra uma história de pai e filho muito cara à sua cinematografia (vide o citado “2 Filhos de Francisco” e o recente “À Beira do Caminho”), povoada por famosas canções de nossa música popular (no caso, ouvimos canções tanto do pai quanto do filho) e com uma catarse ao fim. Entretanto, vale dizer que seus filmes não soam repetitivos e, ao menos para este que vos escreve, este seu novo trabalho conseguiu atingir com força o coração. É verdade que talvez isto se deva às minhas origens nordestinas. Afinal, mesmo sendo um “rapaz do litoral” e da capital, acabo me identificando com grande facilidade tanto com os elementos culturais quanto sociais mostrados ao longo da projeção. Basta percorrer alguns quilômetros interior adentro aqui no Rio Grande do Norte para se deparar com as agruras da realidade tão bem espelhada por Gonzaga com sua música, bem como com suas alegrias e visão de mundo. Mas seria leviano taxar a película como uma obra “regional”. Certas histórias são universais e esta certamente é uma delas.
Cotação:
Nota: 8,5
5 comentários:
Eu não estava nada animado pra ver esse filme. Realmente não o achava interessante, mas o seu texto mudou o meu ponto de vista sobre. Quero ver!
Grande texto, Fábio. Apesar de alguns lugares comuns, é um ótimo filme. Gostaria de ver um spin off do Gonzaguinha. Perdão por não passar aqui antes. Abração!
Olá, Fábio. Acabei de ler,aqui, seu texto com minha esposa. Ela é fã de Gonzaga e, por causa do seu texto, já começou a pertubar meu juízo (kkk) pra ir ao cinema nessa semana. Fui ler em voz alta!!! Falando sério: bom texto, cara. Esse detalhes a respeito da relação conturbada entre pai e filho eu não sabia. Ficamos curiosos. Um abraço...
eu gostei muito do filme e também gostei da sua crítica e a relação com dom casmurro. mandou muito bem.
abraços!
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