terça-feira, 20 de novembro de 2012

Filmes Para Ver Antes de Morrer

A Vida dos Outros
(Das Leben Der Anderen, 2006)


A pior das vergonhas


A primeira vez que vi “A Vida dos Outros” (Das Leben der Anderen) foi com uma certa revolta. O ano era 2007 e ele tinha “roubado” o Oscar de melhor filme estrangeiro das mãos do meu favorito, “O Labirinto do Fauno” (El Laberinto del Fauno, 2006), a fábula dirigida por Guillermo del Toro que na minha opinião era “imbatível”. Assim, foi com curiosidade, mas também com vontade de encontrar defeitos na produção alemã, que resolvi conferi-la em uma sessão do Cineclube Natal, a convite de um amigo cinéfilo (abraço, Gian!). A verdade é que o meu esforço em buscar aspectos negativos no filme foi em vão e terminei a sessão completamente absorvido por aquela trama político-social inserida em um contexto belamente sensível que nos suga para dentro da vida daqueles personagens. Misturar observação politica com dramas individuais sem que nenhuma das vertentes saia prejudicada é algo bastante difícil de ser atingido, mas o diretor Florian Henckel Von Donnersmarck conseguiu a proeza. E o mais surpreendente é que este foi seu primeiro longa-metragem para o cinema.

Revendo o filme há poucos dias, a experiência mostrou-se igualmente sólida e envolvente. Em alguns momentos, senti-me tenso como se ainda não tivesse assistido ao seus 137 minutos de projeção (que não se sentem, diga-se de passagem). Impressionante um cineasta estreante atingir tal feito, mas isso não se deu por acaso. Donnersmarck fez uma vasta pesquisa nos arquivos da antiga República Democrática Alemã para compor seu roteiro, além de entrevistar várias pessoas que moravam no então lado oriental da Alemanha (o próprio diretor é filho de uma alemã oriental), vítimas das ações arbitrárias da Stasi, espécie de KGB local, polícia politica incumbida de monitorar e prevenir atividades consideradas subversivas ao Estado comunista. Apesar de contar com poucos recursos para a produção, conseguiu o máximo empenho do seu elenco, que aceitou recebeu suas remunerações com atraso e mesmo assim entregou belíssimas performances, principalmente Ulrich Mühe, intérprete do espião Wiesler, personagem central desta narrativa que mostra as terríveis consequências de uma sociedade dominada pela vigilância.


Na trama, Wiesler tem a missão de monitorar o dia a dia do dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch), um autor que conta com a simpatia do governo devido ao conteúdo socialista de suas peças. Entretanto, o ministro da cultura, Bruno Hempf (Thomas Thieme), está interessado na companheira de Dreyman, a bela Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), uma das mais conhecidas atrizes do país, razão pela qual é desencadeada uma operação para investigar supostas atividades anticomunistas de Dreyman. A observação constante de Wiesler faz com que este passe a, na verdade, admirar Dreyman e sua existência passional, cheia de entusiasmo pela literatura, música e vivendo uma relação tórrida com Christa-Maria, contrapondo-se à vida fria e solitária que resulta de sua atividade de bisbilhoteiro oficial. O diretor, inclusive, vale-se de uma comparação bem ajustada entre as práticas sexuais dos dois protagonistas para salientar as diferenças. Enquanto Dreyman vive quentes noites de amor com sua amada Christa, a vida sexual de Wiesler se limita a horas marcadas de sexo mecânico e impessoal com prostitutas, caracterizando o preenchimento da realidade do primeiro em contraposição ao vazio da existência do segundo. O próprio Wiesler percebe que ele nada mais é do que um voyeur chancelado pelo Estado, armado por um aparato tecnológico que o torna a apto a viver “a vida dos outros”, como diz o título perfeito da película, e isto passa a lhe trazer a pior das vergonhas: a vergonha de si mesmo, ainda mais potencializada quando percebe que suas ações estão servindo não a uma causa em que se possa acreditar, mas tão somente aos caprichos de um integrante das engrenagens estatais. O espião é a tradução individual de uma manifestação arcaica do poder estatal, eminentemente preocupado em impor limites aos seus cidadãos como uma forma de sustentação. Já Dreyman traduz o oposto, qual seja, a vida em liberdade, liberdade do pensar e do agir conforma sua autodeterminação.


Tais comentários políticos e existenciais, entretanto, poderiam se transformar em uma chatice se colocadas em mãos pouco habilidosas. Felizmente, não é o que sucede. Donnersmarck constrói um suspense que só aumenta ao longo da narrativa, desembocando em um clímax inesperado e contundente que deixa o espectador atordoado e que ainda é sucedido por uma conclusão de cunho emocional poderoso a que dificilmente você ficará indiferente. Aliado a este domínio do ritmo narrativo, ainda se destaca um direção de arte que se preocupou em reconstruir com precisão o ambiente da Alemanha Oriental dos anos 80, com suas cores estranhamente pálidas, desbotadas, suas paredes cinzentas e móveis angulosos que tornavam a vida tão fria e rigorosa quanto o aparato estatal então vigente. Juntando-se a este quadro temos a ótima performance do elenco. Se Martina Gedeck revela limitações na composição de sua Christa -Maria,. Sebastian Koch etá ótimo na pele do intelectual Dreyman, conferindo-lhe o tom sóbrio e ao mesmo leve bastante adequado a um homem das artes. Contudo, é inegável que a presença mais marcante em cena é de Ulrich Mühe, ele próprio nascido na RDA que faz aqui uma composição precisa, aliando contensão e emoção em igual medida e nos momentos certos. Uma pena que este ator tenha falecido meses depois das filmagens, vítima de um câncer no estômago, e não pudemos ter outras oportunidades de apreciar o seu trabalho.

“A Vida dos Outros” alcançou grande popularidade internacional, além de muito respeito diante da crítica. Contudo, alguns atacaram a obra por trazer uma visão “sensível e humanizada” de um agente da Stasi, algo semelhante às críticas que “A Queda – As Últimas Horas de Hitler” (Der Untergang, 2004) sofreu por mostrar uma suposta perspectiva “humanizada” do líder nazista. Porém, da mesma maneira que com o longa sobre os últimos momentos de Adolf Hitler, a crítica não procede, parecendo-me partir de pessoas que acreditam (ou precisam acreditar) em interpretações maniqueístas da História. O filme de Donnersmarck vai justamente no sentido oposto, fugindo de simplificações e nos apresentando personagens críveis, com suas contradições, virtudes, erros e redenções. E devo dizer: não foi nenhuma injustiça ele ter retirado o Oscar de melhor filme estrangeiro das mãos de “O Labirinto do Fauno”. Na realidade, foi um privilégio vermos dois filmes desta envergadura disputando o prêmio no mesmo ano, algo que nem acontece com frequência, infelizmente.


Cotação: 

Nota: 10,0
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3 comentários:

Unknown disse...

Pô, fábio, mais um ótimo texto. Concordo com tudo que vc escreveu. Acredito que esse seja um dos melhores filmes do século 21.

Abração!!

renatocinema disse...

Engraçada sua comparação amigo.

Tive o mesmo problema por ter amado O Labirinto de Fauno. Algo semelhante aconteceu com O Artista, pois tinha amado o trabalho de Scorsese.
Depois de seu texto não tenho como não ver o filme.......valeu pela dica e pela força.

abraços.

Maxwell Soares disse...

Olá, Fábio. Vi este filme no começo de 2010. O meu irmão me apresentou. Lembro-me que ao término do filme fiquei parado. Queria saber mais. Fique curisoo por todos os detalhes do longa. A ida do Stasi na livraria. A compra do livro - desculpe-me caso faça, aqui, uma confusão. Não lembro bem - é no mínimo surreal. Seu texto, como sempre, espantoso. Muito elucidativo. A respeito do que li, agora, e das lembraças do filme concordo com você no quesito "Estado". Hoje, Fábio, não é diferente. Há uma outra vestimenta na maneira como o Estado tenta nos oprimir. Hoje é até mais escancarado. Mas, infelizmente as pessoas estã com a consciêncita tão cauterizada que não resta tempo de pensar. Pensar dá trabalho. É um exercício árduo. Talvez, seja por isso que as pessoas tenham dificuldade de gostarem de filosofia. E parece que as pessos já se acostumaram com essa ideia de miséria. Ter alguém que pense por mim é cômodo ja dizia Kant. É isso, Fábio. Um abraço e até a próxima.