Polêmico, jamais superficial
Antes de adentrarmos especificamente na análise dos aspectos de “Amor”, filme de Michael Haneke vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, traçarei um breve relato de uma história que se passou próxima a mim. Acompanhei de perto o desenrolar de um caso de Alzheimer em uma família. Foi um processo lento e doloroso, no qual a paciente foi perdendo, gradativamente, suas funções cognitivas e mesmo fisiológicas. Por mais que tenhamos conhecimento e noções de como se desenvolve uma doença degenerativa, a experiência real com um portador de um mal de tais proporções é impactante, triste e extremamente desgastante. Era consternador ver filha e netos se dedicando com o máximo de empenho àquela velha senhora cujo destino já estava lamentavelmente traçado. Talvez o lado mais triste do processo seja justamente este: a certeza de que o esforço em cuidar do doente, procurando proporcionar a este um mínimo de dignidade, não reverterá o quadro e que a falência do organismo é algo que se avizinha. Um turbilhão de emoções se avolumavam e se tornavam cada vez mais difíceis de controlar, desde a alegria ao ver a convalescente reagir a estímulos, até a tristeza e impaciência ao não conseguir fazer com que ela tomasse apenas um copo de água. Um desafio que leva os cuidadores ao limite.
Assim, foi com um envolvimento acentuado que assisti a “Amor”, longa que trata justamente deste processo degradante que a atinge as vítimas de doenças degenerativas do sistema nervoso central. A narrativa nos apresenta um casal de octogenários, Anne, interpretada por Emmanuelle Riva (a lendária atriz de “Hiroshima Meu Amor”), e Georges, personagem de Jean-Louis Trintignant (outro ator de muita história cinematográfica). Eles têm uma bela relação, baseada no respeito e companheirismo e no cultivo de interesses comuns, como a música. Levam um cotidiano tranquilo, morando em um apartamento em Paris sem muitos luxos, mas que traduz perfeitamente o espírito erudito do casal, com artes nas paredes, móveis antigos e um cômodo que é um misto de biblioteca e sala de música. Vale dizer que o apartamento é colocado pelo diretor Michael Haneke também como um personagem da trama, até porque esta se passa quase em sua totalidade nos limites de sua residência. A referida tranquilidade é abalada quando Anne sofre um AVC, o que acaba por desencadear um posterior processo degenerativo que se assemelha ao mal de Alzheimer (embora em nenhum momento fique definida qual a doença que acomete Anne). Daí em diante, Anne passa a sofrer de limitações cada vez maiores e Georges, com inteira dedicação, faz o máximo possível para conferir qualidade de vida à sua esposa.
Percebe-se que a narrativa poderia dar margem a uma imersão no melodrama, mas não é o que acontece nas mãos de Haneke, um diretor famoso por se distanciar de emoções fáceis. Seus filmes costumam levar o espectador à reflexão através do choque, característica que faz seus detratores por vezes taxarem sua obra como apelativa ou marcada por impactos gratuitos (aliás, um dos seus filmes bem conhecidos se chama justamente “Violência Gratuita”). Em “Amor” ele nos conduz por um caminho repleto de sofrimento, mostrado de forma crua e direta, sem floreios, mas ao mesmo tempo gerando uma enorme consternação no espectador. Colocando em minúcias o processo de demência iniciado pela doença, desde os momentâneos “apagões” da mente da enferma até seus últimos estágios, como a rejeição à comida e água (o que com frequência leva pacientes de Alzheimer a necessitarem de sondas para alimentação), Haneke, mesmo sem se valer de truques melodramáticos (como trilha sonora melancólica ou diálogos carregados de açúcar), emociona ao nos mostrar, de uma só tacada, a inevitabilidade da morte e o amor como forma de nos afastar dela. Entretanto, o encanto e identificação com os personagens é quebrado por uma atitude inesperada de Georges que nos leva ao choque e também a questionar: “afinal, o que é o “amor” do título?”. É uma questão para a qual existirão várias respostas e fico com aquela que entende o amor como um sentimento que vai além de meros egoísmos e percebe que o caminho a ser seguido por vezes pode não ser aquele que nos seja mais reconfortante.
Apesar de não concordar com a visão de Haneke, torna-se inegável a força de seu argumento e a maneira extremamente artística como ele é desenvolvido.“Amour”, inclusive, foge de algumas características da filmografia do diretor. Nenhum dos seus filmes é tão lírico e poético quanto este. A título de exemplo, cite-se a cena em que Anne revê um álbum com fotos antigas e exclama “como é linda!”. Ao que Georges pergunta: “o que?”; e ela responde : “a vida”. Uma sequência simples, mas de muita beleza e que vale mais do que tomos e mais tomos de filosofia a respeito do que seja a existência. Interessante que, mesmo se passando quase unicamente dentro do apartamento do casal, o filme nunca se torna cansativo. Pelo contrário, imergimos junto com Georges no seu dia a dia solitário e desgastante, dividido apenas com uma enfermeira que comparece em três dias da semana, pois que a filha do casal, Eva (interpretada por Isabelle Huppert, outra unanimidade francesa), revela-se fria e distante durante boa parte da trama, demonstrando apenas eventualmente uma indignação conveniente diante da forma como Georges conduz os cuidados com Anne.
Até por conta do seu espaço exíguo e dos poucos personagens em cena, as atuações seriam primordiais para que se mantivesse o interesse no longa. O que sucede é um verdeiro show do casal Trintignant e Riva. Ele nos entrega uma performance emocionalmente perfeita e ela incorpora de tal maneira o personagem que por vezes esquecemos que quem está na tela é uma atriz e não uma pessoa realmente acometida por uma doença degenerativa. A Academia de Hollywood deveria aproveitar a oportunidade e render a melhor das homenagens com um Oscar para essa estrela já bastante idosa que marcou o Cinema com sua participação em longas de enorme relevância. Fosse um prêmio francês, Isabelle Huppert talvez fosse indicada ao prêmio de atriz coadjuvante, uma vez que mesmo com poucas participações ela consegue mostrar muito da personalidade de Eva, fazendo com que o espectador possa conceber uma perfil da relação entre pais e filha.
Apesar do incômodo provocado pela última meia hora de projeção, a qual deixa o público tão desnorteado quanto reflexivo, “Amor” é uma obra de profundidade ímpar, atributo inquestionável mesmo para aqueles que discordem dos rumos traçados por Haneke em seu roteiro. Até por isso, vem sendo continuamente premiado em tudo que participa e já se tornou barbada para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Um filme, antes de mais nada, humano, que questiona nossas mais profundas entranhas, nossos limites, esperanças, perspectivas, sendo capaz de nos revoltar e comover ao mesmo tempo. Pode-se atribuir muitos adjetivos para a obra de Michael Haneke, menos que ela seja “superficial”. Polêmica, sim; superficial, jamais.
3 comentários:
Baixei o filme e ainda não assisti, devido ao retorno da faculdade.
Uma amiga não gostou...mas, ela não conta. Curte muito filme pipoca. kkkk
abs
Ótimo texto, meu camarada. Sem dúvida, Amor é uma das melhores produções de 2012. Não precisa de Oscar para ser reconhecida. o filme é muito maior que isso.
Renato, veja logo e não irá se arrepender.
Brilhante sua frase, Celo: " O filme é muito maior que isso". Onde assino?
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