História
Os norte-americanos têm um apreço especial por seus políticos. É algo que faz parte da cultura deles e nunca entendi muito bem o porquê. Se a média dos brasileiros enxerga apenas deméritos em seus representantes (e aí não dá para entender o porquê de alguns deles continuarem sendo reeleitos ano após ano), os estadunidenses parecem agir em sentido contrário, respeitando o estadistas até que alguma prova apareça mostrando o contrário (como aconteceu com Richard Nixon). Neste sentido, era de se esperar que um filme sobre Abraham Lincoln, uma espécie de semideus nos Estados Unidos da América, obtivesse sucesso tanto junto ao público quanto junto à crítica. E é exatamente o que está acontecendo com “Lincoln”, o longa-metragem de Steven Spielberg (o cineasta que melhor representa hoje o cinema hollywoodiano) sobre o 16º presidente estadunidense.
Olhando com maior cuidado, fica difícil definir “Lincoln” como uma cinebiografia. Spielberg, em verdade, concentrou-se somente em um curto período de tempo, os meses decisivos da Guerra Civil entre os estados do norte e do sul ocorrida em virtude da questão escravagista. Portanto, não espere algo como o brasileiro “Lula – O Filho do Brasil”, de Fábio Barreto, longa que procura captar um largo período da vida do ex-presidente. Caso fosse esta a escolha de Spielberg, o filme restaria com o principal defeito da película nacional, transformando-se em uma narrativa episódica que relata vários momentos da trajetória do biografado, mas sem que se chegue a um resultado coeso e sem que possamos compreender um pouco mais da figura histórica. O cineasta norte-americano poderia facilmente cair nessa tentação, pois que a biografia de Lincoln, tal como a de Lula, é repleta de altos e baixos, cheia de momentos de perseverança e superação. Entretanto, fez uma ótima opção ao retratar a batalha política pela aprovação no Congresso da 13ª Emenda à Constituição, aquela que garantiu a abolição da escravidão no território ianque.
Este é o primeiro dado peculiar a ser apontado para o espectador médio sobre “Lincoln”. Trata-se de um filme eminentemente político e que se apega a detalhes históricos. Não é por acaso que as cópias exibidas fora dos Estados Unidos contam com uma introdução para situar o espectador no contexto histórico, já que seria complicado fazer o público compreender a ação sem que certos pormenores fossem elucidados. Não é uma obra para as massas no sentido estrito da expressão. Alguns poderão considerá-lo até aborrecido e, se não tiverem um pouco mais de paciência, abandonarão a sala de exibição (como vi alguns fazendo na sessão a que assisti). Contudo, caso você tenha paciência, desfrutará de uma bela abordagem a respeito do estadista e, sim, haverá também os momentos de tensão e emoção. Afinal, Spielbeg é um mestre na manipulação e sempre sabe jogar para a plateia. E também conhece o caminho das pedras para fazer a ligação entre o passado e o presente.
As relações feitas entre o momento histórico vivido pelo republicano Abraham Lincoln e o presente do democrata Barack Obama são claras. Da mesma forma que Obama precisou gastar muito de seu capital político para aprovar a reforma no sistema de saúde dos EUA (e ainda precisará para aprovar medidas como um maior controle no comércio de armas e o casamento entre homossexuais), Lincoln teve de empenhar todo o seu imenso prestígio popular para aprovar a citada 13ª Emenda, e não sem muitas dificuldades, conchavos, trocas de favores, compra de votos, além do simples convencimento das consciências dos parlamentares. Sim, a política é podre no mundo todo e na terra de Tio Sam não é diferente. Nós, brasileiros, é que nos deixamos iludir por uma mídia que no faz acreditar que o partido que atualmente ocupa nossa presidência é o mais corrupto de todos os tempos. Como o roteiro, escrito por Tony Kushner (e baseado no livro "Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln", Doris Kearns Goodwin) realça, Lincoln precisou usar de vários expedientes para alcançar seu objetivo, inclusive os menos elogiáveis. Aliás, não só ele. O deputado Thadeus Stevens - interpretado por Tommy Lee Jones em grande atuação - um abolicionista por convicção na igualdade plena entre os homens, acaba por renegar seus valores para que seus discurso soasse mais convincente perante os deputados em dúvida. O fins justificam os meios? Spielberg parece sustentar que, ao menos em alguns casos, os fins, sim, justificam os meios, uma posição que pode soar polêmica, mas que se mostra defensável diante das circunstâncias exibidas no longa.
Ressalte-se que a produção é repleta de toda a perfeição técnica costumeira nos filmes do cineasta, aqui acompanhado de seus velhos parceiros, como Janusz Kaminski na fotografia, a qual prima por paletas escuras e focos de luz concentrados nos personagens, e John Williams na trilha sonora (muito embora não seja das mais inspiradas, ainda é assim é competente), além de um figurino impecável nas mãos de Joana Johnston. Contudo, o desempenho do elenco é mesmo algo à parte. Sally Field, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante, entrega uma ótima atuação na pele da esposa de Lincoln, uma mulher perturbada pela perda de um dos filhos do casal, mas que tem uma influência marcante sobre as decisões do presidente. Tommy Lee Jones, como já frisado acima, mostra que realmente está em boa fase, sendo também indicado ao Oscar como ator coadjuvante. Mas não se pode negar que é mesmo Daniel Day-Lewis o principal catalisador das atenções. Day-Lewis é um daqueles atores que parecem incapazes de ter uma má atuação. Em uma composição perfeitamente equilibrada, ele traz Lincoln de volta com seu tipo desengonçado, caipira, mas também um contador de causos cheio de sabedoria. Além disso, faz o espectador sentir a solidão que o poder confere a um homem responsável por tantos destinos. Impressionante sua naturalidade, mesmo nos momentos mais emocionais, onde ele nunca extrapola para a super atuação. Não resta dúvida que ele é a versão masculina de Meryl Streep este ano. Está levando todos os prêmios por sua performance (no último domingo, levou o Sindicato de Atores) e é virtualmente imbatível.
Este é um dos filmes de Steven Spielberg que se filiam à sua vertente mais “sóbria”, digamos assim, juntando-se a obras como “A Lista Schindler” (Schindler’s List, 1993) e “Munique” (2005). Entretanto, está um pouco abaixo do patamar alcançado com os mencionados filmes (sim, eu considero “Munique” um longa injustiçado e um de seus melhores trabalhos). Há momentos em que “Lincoln” adquire um certo tom hagiográfico, principalmente na conclusão, onde é retratado o discurso de Getysburg e o personagem é mostrado como aquele presente nas cédulas de 5 dólares (algo que Spielberg disse que desejou evitar). Ademais, o longa realmente carece de ritmo em alguns momentos, deixando-nos meio que perdidos em meio aos emaranhados políticos. Todavia, tais problemas não tiram dele sua relevância e, decididamente, este é o melhor registro do seu diretor em vários anos (mais precisamente, desde o citado “Munique”). E, se você gosta de Cinema e História (assim, com “h” maiúsculo), “Lincoln” se coloca como um filme obrigatório.
Nota: 9,0
Um comentário:
Por enquanto, eu vou ver mais por conta de ter sido indicado ao Oscar e tudo mais, mas não estou tão animado com o filme.
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