Ulysses
(Ulysses, 1954)
Nunca entendi realmente o porquê, mas o cinema norte-americano, tão afeito a narrativas fantásticas, produziu relativamente poucos filmes tendo por base a mitologia grega. Mitos incríveis como o de Hércules foram relegados normalmente a produções B, com baixo orçamento e elenco limitado, ao contrário do que ocorria com histórias de teor bíblico, comumente adaptadas como superproduções (vide “Os Dez Mandamentos”, de Cecil B. De Mille). Apenas recentemente os estúdios têm dedicado mais atenção a este universo, como em “Tróia” (Troy, 2004) e o remake de “Fúria de Titãs” (Clash Of The Titans, 2010). Na Itália dos anos 50, contudo, o quadro era outro. Além de longas de menor orçamento, os mitos greco-romanos também eram temas de grandes produções, como aquelas orquestradas por Dino De Laurentiis e Carlo Ponti. Este “Ulysses”, realizado em 1954, é um deles, destacando-se não só pelo apuro técnico, mas principalmente por seu elenco estelar, encabeçado por um Kirk Douglas inspirado.
É verdade que o roteiro condensa bastante o texto da “Odisseia” de Homero, obra basilar de toda a literatura e cultura ocidentais. Nela, como deve ser do conhecimento de muitos, é narrada a longa viagem de retorno do general Ulisses, após a guerra de Tróia, até o seu reino de Ítaca. Ao longo de 10 anos, Odisseu (nome grego para o herói) enfrenta inúmeras adversidades para voltar ao lar, enquanto sua esposa, Penélope (interpretada aqui por Silvana Mangano), obstinada em sua fidelidade, jamais sucumbe aos cortejos dos pretendentes. Entretanto, apesar da síntese, os trechos transpostos para a tela são adaptados com satisfatória eficácia. Mesmo que o espectador não conheça de antemão as passagens do relato homérico não terá dificuldades em compreender o enredo, desenvolvido em formato de flashback, quando Ulisses, desmemoriado, chega a um reino próximo de Ítaca e conhece a princesa Nausica (Rossana Podestà). Ele se esforça para relembrar seu passado e é então que somos apresentados a algumas de suas aventuras.
É certo que o mito de Odisseu estabelece vários dos paradigmas culturais de toda a humanidade. O herói representa a coragem e determinação esperadas do homem, enquanto Penélope se apresenta como encarnação da dedicação e fidelidade que se esperam de uma mulher, modelos de comportamento até hoje dominantes, mesmo diante das diversas mutações da sociedade contemporânea. O pouco conhecido diretor Mario Camerini (que também participou da confecção do roteiro, ao lado de outros seis nomes) soube destacar estas nuances e foi muito feliz em dar a mesma importância na trama tanto a Ulisses como a Penélope, mostrando que os dramas de cada um eram intensos em igual medida, fazendo a narrativa tornar-se interessante tanto para o público masculino quanto feminino. Também ganha destaque o drama de Telêmaco (no filme interpretado por Franco Interlenghi), filho de Ulisses que mal conheceu o pai, pois que este estava ausente do lar desde a sua infância.
Contudo, embora tais elementos sejam colocados de maneira correta, é importante ressaltar que este é um longa de aventura e o principal foco obviamente se coloca nas peripécias do penoso regresso. É provável que a mais marcante delas, ao menos para a época em que o filme foi lançado, seja o confronto com o ciclope* Polifemo, filho do deus Posseidon (ou Netuno, para os romanos). Para os recursos do seu tempo, o gigante é concebido de maneira eficiente, destacando-se seu tamanho através de criativos enquadramentos. Ademais, ainda temos a chegada de Ulisses na ilha da feiticeira Circe (também interpretada por Silva Mangano, exercendo papel duplo no filme), onde precisa fazer com que esta retire o feitiço que transformou seus companheiros de tripulação em porcos, além de sua passagem pelo mar das sereias, resistindo ao seu canto ao pedir que seja amarrado ao mastro do navio.
Entretanto, o longa perderia muito sem a presença marcante de Kirk Douglas, conferindo uma adequada aura forte e mítica ao personagem e dominando todas a cenas em que aparece. Pena que o restante do elenco não o acompanhe. Mesmo Anthony Quinn, que interpreta Antinoo, o principal pretende de Penélope, não tem muito a fazer, uma vez que seu personagem tem pouco tempo em tela. Todavia, quem mereceria um Framboesa de Ouro pela dupla atuação seria Silvana Mangano, duplamente inexpressiva (a despeito de sua beleza), seja na pele de Penélope ou na de Circe.
A despeito destes problemas e da direção de Camerini, a qual, embora correta, não deixa marcas autorais, “Ulysses” mantém o seu interesse devido à força de uma narrativa imortal, que supera os séculos e transcende culturas. Mesmo que você conheça pouco da temática, esta será uma boa e didática forma de se familiarizar com ela, apesar de que, obviamente, o melhor seja conferir a fonte direta de tais mitos, lendo a “Ilíada” e a “Odisseia, embora nos livros você não veja a marcante atuação de Kirk Douglas. Contudo, convenhamos, vale ressaltar que não é fácil adaptar mitologia para as telas. Talvez seja exatamente por isso que os por vezes preguiçosos produtores de Hollywood nunca foram afeitos ao tema: é muito complexo para a média de suas produções feijão com arroz, perdendo a oportunidade de realizar entretenimentos inteligentes como no caso em tela.
Cotação:
Nota: 7,5
* Ciclopes, na mitologia helênica, eram gigantes de um só olho.
(Ulysses, 1954)
Entretenimento com inteligência
Nunca entendi realmente o porquê, mas o cinema norte-americano, tão afeito a narrativas fantásticas, produziu relativamente poucos filmes tendo por base a mitologia grega. Mitos incríveis como o de Hércules foram relegados normalmente a produções B, com baixo orçamento e elenco limitado, ao contrário do que ocorria com histórias de teor bíblico, comumente adaptadas como superproduções (vide “Os Dez Mandamentos”, de Cecil B. De Mille). Apenas recentemente os estúdios têm dedicado mais atenção a este universo, como em “Tróia” (Troy, 2004) e o remake de “Fúria de Titãs” (Clash Of The Titans, 2010). Na Itália dos anos 50, contudo, o quadro era outro. Além de longas de menor orçamento, os mitos greco-romanos também eram temas de grandes produções, como aquelas orquestradas por Dino De Laurentiis e Carlo Ponti. Este “Ulysses”, realizado em 1954, é um deles, destacando-se não só pelo apuro técnico, mas principalmente por seu elenco estelar, encabeçado por um Kirk Douglas inspirado.
É verdade que o roteiro condensa bastante o texto da “Odisseia” de Homero, obra basilar de toda a literatura e cultura ocidentais. Nela, como deve ser do conhecimento de muitos, é narrada a longa viagem de retorno do general Ulisses, após a guerra de Tróia, até o seu reino de Ítaca. Ao longo de 10 anos, Odisseu (nome grego para o herói) enfrenta inúmeras adversidades para voltar ao lar, enquanto sua esposa, Penélope (interpretada aqui por Silvana Mangano), obstinada em sua fidelidade, jamais sucumbe aos cortejos dos pretendentes. Entretanto, apesar da síntese, os trechos transpostos para a tela são adaptados com satisfatória eficácia. Mesmo que o espectador não conheça de antemão as passagens do relato homérico não terá dificuldades em compreender o enredo, desenvolvido em formato de flashback, quando Ulisses, desmemoriado, chega a um reino próximo de Ítaca e conhece a princesa Nausica (Rossana Podestà). Ele se esforça para relembrar seu passado e é então que somos apresentados a algumas de suas aventuras.
É certo que o mito de Odisseu estabelece vários dos paradigmas culturais de toda a humanidade. O herói representa a coragem e determinação esperadas do homem, enquanto Penélope se apresenta como encarnação da dedicação e fidelidade que se esperam de uma mulher, modelos de comportamento até hoje dominantes, mesmo diante das diversas mutações da sociedade contemporânea. O pouco conhecido diretor Mario Camerini (que também participou da confecção do roteiro, ao lado de outros seis nomes) soube destacar estas nuances e foi muito feliz em dar a mesma importância na trama tanto a Ulisses como a Penélope, mostrando que os dramas de cada um eram intensos em igual medida, fazendo a narrativa tornar-se interessante tanto para o público masculino quanto feminino. Também ganha destaque o drama de Telêmaco (no filme interpretado por Franco Interlenghi), filho de Ulisses que mal conheceu o pai, pois que este estava ausente do lar desde a sua infância.
Contudo, embora tais elementos sejam colocados de maneira correta, é importante ressaltar que este é um longa de aventura e o principal foco obviamente se coloca nas peripécias do penoso regresso. É provável que a mais marcante delas, ao menos para a época em que o filme foi lançado, seja o confronto com o ciclope* Polifemo, filho do deus Posseidon (ou Netuno, para os romanos). Para os recursos do seu tempo, o gigante é concebido de maneira eficiente, destacando-se seu tamanho através de criativos enquadramentos. Ademais, ainda temos a chegada de Ulisses na ilha da feiticeira Circe (também interpretada por Silva Mangano, exercendo papel duplo no filme), onde precisa fazer com que esta retire o feitiço que transformou seus companheiros de tripulação em porcos, além de sua passagem pelo mar das sereias, resistindo ao seu canto ao pedir que seja amarrado ao mastro do navio.
Entretanto, o longa perderia muito sem a presença marcante de Kirk Douglas, conferindo uma adequada aura forte e mítica ao personagem e dominando todas a cenas em que aparece. Pena que o restante do elenco não o acompanhe. Mesmo Anthony Quinn, que interpreta Antinoo, o principal pretende de Penélope, não tem muito a fazer, uma vez que seu personagem tem pouco tempo em tela. Todavia, quem mereceria um Framboesa de Ouro pela dupla atuação seria Silvana Mangano, duplamente inexpressiva (a despeito de sua beleza), seja na pele de Penélope ou na de Circe.
A despeito destes problemas e da direção de Camerini, a qual, embora correta, não deixa marcas autorais, “Ulysses” mantém o seu interesse devido à força de uma narrativa imortal, que supera os séculos e transcende culturas. Mesmo que você conheça pouco da temática, esta será uma boa e didática forma de se familiarizar com ela, apesar de que, obviamente, o melhor seja conferir a fonte direta de tais mitos, lendo a “Ilíada” e a “Odisseia, embora nos livros você não veja a marcante atuação de Kirk Douglas. Contudo, convenhamos, vale ressaltar que não é fácil adaptar mitologia para as telas. Talvez seja exatamente por isso que os por vezes preguiçosos produtores de Hollywood nunca foram afeitos ao tema: é muito complexo para a média de suas produções feijão com arroz, perdendo a oportunidade de realizar entretenimentos inteligentes como no caso em tela.
Cotação:
Nota: 7,5
* Ciclopes, na mitologia helênica, eram gigantes de um só olho.
8 comentários:
Não assisti a essa obra.
Entendo que os americanos não retrataram muito a mitologia grega, apenas por um detalhe....o nacionalismo irracional deles.
Uma pena.
Cara, eu como um grande amante da mitologia grega, sou doooido para ver esse filme. Preciso assisti-lo imediatamente! Só é uma pena que os poucos filmes deste tema já feitos tem a história do mito original sempre muito distorcida. O renato aí de cima disse tudo!
Já tem post novo lá no blog. Abraços!
http://monteolimpoblog.blogspot.com.br/
Parabéns, Fábio, pela grande lucidez. Texto claro e objetivo. Sou fã da mitologia grega e concordo com você no que diz respeito a falta de boas iniciativas nas produções deste clássicos. Tenho visto tais filmes e confesso, sem muito entusiasmo. A Fúria de Titãs (Clash of the Titans, 1981)com direção de Desmond Davis foi o primeiro que vi quando criança, ainda. Fiquei maravilhado. Neste dias comprei o filme e revi com o mesmo regozijo de sempre. Fico imaginando se o diretor dos Senhor dos Anéis abraçasse essa ideia. Já, pensou? Realmente falta mais dinamismo e respeito a um tema tão fantástico e mágico. No mais um abraço, Fábio. Até a próxima, companheiro.
Ainda não vi esse filme, mas fiquei curiosa para analisar também a questão da mitologia que você abordou tão bem. Excelente análise!
Este para mim foi um dos melhores filmes do seu gênero.E melhor ainda está o texto que fizestes rico em detalhes e super elaborado.Uma ótima semana e meu grande abraço.
Gosto de ULYSSES, Fábio. Camerini era impessoal, mas dirigia corretamente. O Douglas tá ótimo, cheio de vigor, e a Silvana como Circe é uma delícia.
O Falcão Maltês
Bom, eu estudo Mitologia Grega desde criança por hobby. Então, é um dos meus assuntos preferidos.
Ainda não vi ESSA versão específica do mito de Ulisses pro Cinema. Mas, das que eu já vi, acho que a que se manteve mais fiel ao original homérico foi a versão de 1997. De vez em quando passa no SBT. Mas, infelizmente, sempre tem várias cenas cortadas.
E sinceramente, fico sem saber se estamos ganhando ou perdendo por existirem poucos filmes hollywoodianos inspirados em Mitologia Grega, porque muitos que já foram produzidos até hoje tiveram a história TÃO alterada que muitas vezes, com exceção dos nomes dos personagens, não tem nada de Mitologia Grega ali, né?
Acho que os americanos desde os primórdios do cinema preferiram realizar filmes épicos com temas bíblicos ao invés da mitologia grega não por uma questão de nacionalidade mais sim de preferencia popular. Não podemos esquecer que os USA é um país cristão, e em sua maior parte, protestante, sendo assim é obvio que o público prefere temas religiosos ao invés de mitos....
Hoje o quadro mudou e com o aumento de fãs desses gêneros os filmes vem surgindo com mais qualidade.
Enfim,quero ver esse Ulisses, Kirk Douglas é o cara....
Abraço
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