Os Falsários
(Die Fälscher, 2007)
Entre a cruz e a espada
Desde que Steven Spielberg filmou, em 1993, a sua obra-prima “A Lista de Schindler” (Schindler's List), longa-metragem que estabeleceu um perfeito equilíbrio entre a brutalidade nazista e a emoção que se pode extrair de uma drama dessas proporções, o cinema se viu invadido por uma série de filmes tendo como tema central o holocausto cometido durante a Segunda Guerra Mundial. Desde então, praticamente todos os anos chegam às telas obras com este foco, seja em formato ficcional ou documental. Claro que, diante de tantas produções, inevitavelmente surgirão aquelas de maior e outras de menor qualidade, sendo necessário filtrá-las, afinal não basta que um filme tenha o massacre dos judeus como tema para que se possa afirmar que é bom cinema. Para cada “O Pianista” (The Pianist, 2002), uma das obras-primas de Roman Polanski, temos outros exemplares de qualidade duvidosa, como é o caso do nacional “Olga” (2004), de Jayme Monjardim, o qual, mesmo que não tenha o holocausto como tema central, mergulha em um sensacionalismo desnecessário, dado o caráter já naturalmente emocional da temática. A Academia de Hollywood, por seu turno, parece jamais se cansar de prestigiar longas que abordam o horror nazista e com certeza esse foi um dos principais fatores que levaram o longa-metragem austro-alemão “Os Falsários” a levar o Oscar de melhor filme em língua estrangeira em 2008. Entretanto, e felizmente, este não foi o único fator.
Poucos são os filmes que apresentam dilemas éticos e morais com tanta propriedade quanto “Os Falsários”. Na sua estrutura narrativa, as soluções, longe de fáceis ou maniqueístas, parecem, pelo contrário, sempre levar os protagonistas a um novo labirinto de interrogações e cada nova decisão tomada parece ser inevitavelmente insatisfatória, pois que destituída do poder de retirá-los do beco sem saída em que estão vivendo. Homens que não sabem se é honroso ou vergonhoso sobreviver quando lançados em uma situação em que suas vidas são pautadas pela ajuda que prestam a uma máquina de extermínio. Você, que está lendo, ajudaria o nazismo, mesmo que de uma forma indireta, em troca de ver mantida sua própria vida?
A problemática nos é apresentada através da história real conhecida como “Operação Bernhard”, hoje considerada como responsável pelo maior derrame de moedas falsas já realizado. Em condições difíceis nos campos de batalha e com os cofres cada vez mais escassos, os nazistas partiram para a falsificação de dinheiro como uma forma tanto de “criar” recursos para custear a guerra, como também de abalar a economia do países vítimas da contrafação, no caso Inglaterra e Estados Unidos. Para perpetrar tal intento, os alemães se valeram de judeus prisioneiros em campos de concentração com talentos adequados à falsificação de cédulas. Baseado no livro “The Devil's Wokshop”, de Adolf Burger (ele próprio um dos personagens na tela), a narrativa nos mostra que um destes especialistas judeus é Salomon Sorowitsch (no filme, o papel é de Karl Markovics), ou “Sally” para o mais próximos, um falsário de enorme talentos artísticos, mas que prefere levar a vida “fazendo” o dinheiro do que suando para ganhá-lo. É ele que será o líder dos falsários e contará com a especial confiança do comandante do campo (Devid Striesow) - que por sinal foi o policial que o prendeu - o qual reserva para o grupo uma tratamento diferenciado. No entanto, a posição de Salomon de salvar a vida a qualquer custo é confrontada por Burger (interpretado por August Diehl), que não admite servir aos propósitos dos próprios algozes.
Temas como esse poderiam cair facilmente no sentimentalismo, mas o diretor Stefan Ruzowitzky soube fugir dos lugares-comuns e manteve a narrativa, em sua maior parte, distante das facilidades. Desenvolvida em estilo flashback, já sabemos de antemão que Salomon escapou da morte no campo, evitando assim que o espectador pudesse focar em um suspense desnecessário acerca do destino do protagonista, o que desviaria sua atenção do drama ético proposto. A contraposição da vida de Salomon antes e depois da guerra, regada a mulheres e boemia, com o período em que ele passa enclausurado também se mostra muito útil para entendemos sua personalidade e sua facilidade em obter benefícios dos militares da SS. A edição primorosa mostra-se, ademais, fundamental para esse intento e até mesmo a trilha sonora escolhida, repleta de tangos, contribui para lembrarmos que Salomon é, antes de tudo, um bon-vivant que sabe, mais do que qualquer outro, arranjar maneiras de obter regalias. O roteiro, também escrito pelo próprio diretor Ruzowitzky, é enxuto, fazendo com que o filme não dure mais do que 1h e 40min. Mas isso não significa dizer que o mesmo é superficial. Pelo contrário, aborda as temáticas apontadas com objetividade e profundidade. Mas tais características cairiam por terra se o elenco não correspondesse, atribuindo verossimilhança aos personagens retratados, e aqui cabe destacar a ótima atuação de Karl Markovics ao imprimir ao mesmo tempo verdade e um tom misterioso a Salomon, fazendo deste um tipo memorável.
Ver-se entre a cruz e a espada é o que resulta da experiência de assistirmos a “Os Falsários”, levando o público antes de tudo à reflexão e não tão somente a um mero derramamento de lágrimas como acontece em tantos filmes que têm a Segunda Guerra (mormente o holocausto) como tema. Nesse trabalho de separar “o joio do trigo” entre tais dramas de guerra, o longa de Ruzowitzky merece destaque e sua premiação no Oscar (ele foi o primeiro a ganhar um Oscar de filme estrangeiro pela Áustria) não foi injusta. Embora não se possa afirmar que esteja à altura dos citados trabalhos de Roman Polanski e Steven Spielberg, ou ainda de outras produções europeias, como a obra-prima “Vá e Veja” (Idi i Smotri, 1985), de Elem Klimov, “Die Fälscher” com certeza é um trabalho que foge das obviedades de um gênero já bastante maltratado e aparentemente esgotado.
Cotação:
Nota: 9,0
(Die Fälscher, 2007)
Entre a cruz e a espada
Desde que Steven Spielberg filmou, em 1993, a sua obra-prima “A Lista de Schindler” (Schindler's List), longa-metragem que estabeleceu um perfeito equilíbrio entre a brutalidade nazista e a emoção que se pode extrair de uma drama dessas proporções, o cinema se viu invadido por uma série de filmes tendo como tema central o holocausto cometido durante a Segunda Guerra Mundial. Desde então, praticamente todos os anos chegam às telas obras com este foco, seja em formato ficcional ou documental. Claro que, diante de tantas produções, inevitavelmente surgirão aquelas de maior e outras de menor qualidade, sendo necessário filtrá-las, afinal não basta que um filme tenha o massacre dos judeus como tema para que se possa afirmar que é bom cinema. Para cada “O Pianista” (The Pianist, 2002), uma das obras-primas de Roman Polanski, temos outros exemplares de qualidade duvidosa, como é o caso do nacional “Olga” (2004), de Jayme Monjardim, o qual, mesmo que não tenha o holocausto como tema central, mergulha em um sensacionalismo desnecessário, dado o caráter já naturalmente emocional da temática. A Academia de Hollywood, por seu turno, parece jamais se cansar de prestigiar longas que abordam o horror nazista e com certeza esse foi um dos principais fatores que levaram o longa-metragem austro-alemão “Os Falsários” a levar o Oscar de melhor filme em língua estrangeira em 2008. Entretanto, e felizmente, este não foi o único fator.
Poucos são os filmes que apresentam dilemas éticos e morais com tanta propriedade quanto “Os Falsários”. Na sua estrutura narrativa, as soluções, longe de fáceis ou maniqueístas, parecem, pelo contrário, sempre levar os protagonistas a um novo labirinto de interrogações e cada nova decisão tomada parece ser inevitavelmente insatisfatória, pois que destituída do poder de retirá-los do beco sem saída em que estão vivendo. Homens que não sabem se é honroso ou vergonhoso sobreviver quando lançados em uma situação em que suas vidas são pautadas pela ajuda que prestam a uma máquina de extermínio. Você, que está lendo, ajudaria o nazismo, mesmo que de uma forma indireta, em troca de ver mantida sua própria vida?
A problemática nos é apresentada através da história real conhecida como “Operação Bernhard”, hoje considerada como responsável pelo maior derrame de moedas falsas já realizado. Em condições difíceis nos campos de batalha e com os cofres cada vez mais escassos, os nazistas partiram para a falsificação de dinheiro como uma forma tanto de “criar” recursos para custear a guerra, como também de abalar a economia do países vítimas da contrafação, no caso Inglaterra e Estados Unidos. Para perpetrar tal intento, os alemães se valeram de judeus prisioneiros em campos de concentração com talentos adequados à falsificação de cédulas. Baseado no livro “The Devil's Wokshop”, de Adolf Burger (ele próprio um dos personagens na tela), a narrativa nos mostra que um destes especialistas judeus é Salomon Sorowitsch (no filme, o papel é de Karl Markovics), ou “Sally” para o mais próximos, um falsário de enorme talentos artísticos, mas que prefere levar a vida “fazendo” o dinheiro do que suando para ganhá-lo. É ele que será o líder dos falsários e contará com a especial confiança do comandante do campo (Devid Striesow) - que por sinal foi o policial que o prendeu - o qual reserva para o grupo uma tratamento diferenciado. No entanto, a posição de Salomon de salvar a vida a qualquer custo é confrontada por Burger (interpretado por August Diehl), que não admite servir aos propósitos dos próprios algozes.
Temas como esse poderiam cair facilmente no sentimentalismo, mas o diretor Stefan Ruzowitzky soube fugir dos lugares-comuns e manteve a narrativa, em sua maior parte, distante das facilidades. Desenvolvida em estilo flashback, já sabemos de antemão que Salomon escapou da morte no campo, evitando assim que o espectador pudesse focar em um suspense desnecessário acerca do destino do protagonista, o que desviaria sua atenção do drama ético proposto. A contraposição da vida de Salomon antes e depois da guerra, regada a mulheres e boemia, com o período em que ele passa enclausurado também se mostra muito útil para entendemos sua personalidade e sua facilidade em obter benefícios dos militares da SS. A edição primorosa mostra-se, ademais, fundamental para esse intento e até mesmo a trilha sonora escolhida, repleta de tangos, contribui para lembrarmos que Salomon é, antes de tudo, um bon-vivant que sabe, mais do que qualquer outro, arranjar maneiras de obter regalias. O roteiro, também escrito pelo próprio diretor Ruzowitzky, é enxuto, fazendo com que o filme não dure mais do que 1h e 40min. Mas isso não significa dizer que o mesmo é superficial. Pelo contrário, aborda as temáticas apontadas com objetividade e profundidade. Mas tais características cairiam por terra se o elenco não correspondesse, atribuindo verossimilhança aos personagens retratados, e aqui cabe destacar a ótima atuação de Karl Markovics ao imprimir ao mesmo tempo verdade e um tom misterioso a Salomon, fazendo deste um tipo memorável.
Ver-se entre a cruz e a espada é o que resulta da experiência de assistirmos a “Os Falsários”, levando o público antes de tudo à reflexão e não tão somente a um mero derramamento de lágrimas como acontece em tantos filmes que têm a Segunda Guerra (mormente o holocausto) como tema. Nesse trabalho de separar “o joio do trigo” entre tais dramas de guerra, o longa de Ruzowitzky merece destaque e sua premiação no Oscar (ele foi o primeiro a ganhar um Oscar de filme estrangeiro pela Áustria) não foi injusta. Embora não se possa afirmar que esteja à altura dos citados trabalhos de Roman Polanski e Steven Spielberg, ou ainda de outras produções europeias, como a obra-prima “Vá e Veja” (Idi i Smotri, 1985), de Elem Klimov, “Die Fälscher” com certeza é um trabalho que foge das obviedades de um gênero já bastante maltratado e aparentemente esgotado.
Cotação:
Nota: 9,0
6 comentários:
Um filme muito forte. Gostei da resenha.
O Falcão Maltês
Grande Fábio, recentemente comprei esse filme em Blu Ray, mas ainda não tive a oportunidade de conferir. Teu texto tá muito bom que me deu uma vontade imediata de conferir. Acho q vejo hj mesmo. Grande Abraço!
tinha esse filme jogado aqui por casa e nem ligava pra ele, mas depois de seu post vou pega-lo para assistir.
Olá, Fábio. Antes de tudo: parabéns pelo texto. Muito bem escrito. Agora sei que preciso vê-lo, logo. Ontem assisti com meu pai e a minha noiva "A Fuga de Sobibor". Fantástica obra. A fuga em massa dos judeus presos em um campo de concentração na Polônia. Baseado em fatos reais. É, simplesmente, fantástico. Die Fälscher (Os Falsários) tem uma linha narrativa que eu gosto. Os mecanismo que os nazistas usaram para manipular a economia para fins próprio é de uma esperteza tamanha. Gostei do texto, Fábio. Fiquei empolgado para vê-lo. Um abraço...
Realmente, é dificílimo se destacar entre tantos filmes com temática nazista (tem até uma piada na série "Extras" com isso, dizendo que filmes sobre holocausto cansaram). Os Falsários com certeza sobrevive incólume à esta tarefa. Eu adoro o filme e acho que foi justo o Oscar. Outro recente que conseguiu o feito foi Bastardos Inglórios, o brilhante filme do Tarantino.
A fascinação que sinto por "Os falsários" reside na capacidade que o filme tem não de apresentar respostas , mas de formular perguntas acerca dos temas que você abordou no texto. Texto que por sinal está ótimo. Parabéns!
Postar um comentário