Um Método Perigoso
(A Dangerous Method, 2011)
Gênios em conflito
Pode parecer que estou realizando um “tour de force” pela obra de David Cronenberg, tendo em vista que, há pouco tempo, postei uma resenha sobre “Na Hora da Zona Morta” (The Dead Zone, 1983), filme oitentista do cineasta que, à época, mostrava uma abordagem diferente das suas características, de um caráter mais comercial e menos perturbador, traços até então marcantes dos seus longas. Entretanto, alerto que foi apenas coincidência ter visto no último sábado este “Um Método Perigoso” (A Dangerous Method, 2011), filme que se encaixa dentro da nova forma concebida por Cronenberg desde “Marcas da Violência” (A History Of Violence, 2005), menos “perturbadora” ou “provocativa”, ao menos visualmente. Isso não significa dizer, porém, que Cronenberg abandonou seus velhos temas. A mudança está na forma, não no conteúdo, já que aqui ele se vale de uma trama inspirada em fatos reais e ambientada no início do século XX para tratar dos sentimentos de solidão e inadequação que lhe são peculiares.
Baseado em peça de Christopher Hampton (que também escreveu o roteiro filme), chamada “The Talking Cure”, e no livro “A Most Dangerous Method”, de John Kerr, o enredo tem como personagens centrais as figuras dos seminais teóricos da psicanálise, o judeu austríaco Sigmund Freud e o suíço Carl Jung, aqui interpretados por Viggo Mortensen e Michael Fassbender, respectivamente. Adepto das teorias de Freud, Jung as coloca em prática com uma de suas pacientes, Sabina Spielrein (Keira Knightley), uma judia russa que apresenta comportamento histérico e perturbado. Jung descobre, através de sessões de diálogos com a paciente, que em boa medida seus transtornos são resultado de repressões sexuais elaboradas ainda na infância, época em que desenvolve, em decorrência de castigos paternos, uma sexualidade pautada pelo prazer masoquista. É a partir do estudo da personalidade de Sabina e da melhora comportamental da jovem que Jung estabelece contato com Freud, o qual tem seu interesse despertado pela experiência. A partir de então o filme se desenvolve em duas frentes: a relação de Jung com Freud - a amizade surgida entre ambos, bem como seu rompimento – e relação amorosa de Jung com sua paciente Sabina, que se torna sua amante e alcança o equilíbrio ao realizar com o médico suas fantasias sexuais. Contudo, o equilíbrio de Jung toma o rumo oposto. Casado e de fortes valores, Jung se vê perturbado ao por em prática suas fantasias poligâmicas, em boa medida estimuladas por um pupilo de Freud, Otto Gross (interpretado por Vincent Cassel), embarcando em uma neurose que o levaria a um futuro colapso nervoso. Nesse passo, Jung pode ser apontado como o típico protagonista de Cronenberg, símbolo da angústia e solidão humanas.
Essas “duas frentes” abordadas por Cronenberg despertam no espectador reações diferentes. Não deixa de ser um prazer vislumbrarmos como se deu a aproximação e cumplicidade entre dois gênios da ciência, assim como ocorreu o seu posterior afastamento. A inicial admiração mútua vai se transformando em desconfiança, principalmente por parte de Freud, que enxerga em Jung uma ameaça intelectual, alguém capaz até de superá-lo perante a comunidade científica. Todavia, o filme se mostra feliz ao não bater o martelo e deixar em dúvida os reais motivos da cisão, até porque talvez até os próprios envolvidos não soubessem precisar as razões. Já na relação entre Jung e Sabina estabelece-se um clima de erotismo muito sugerido e pouco explícito, sem apelações, onde a nudez e cenas de sexo surgem na medida do estritamente necessário. Mas a verdade é que esse tom, ao mesmo tempo sutil e provocativo, pode trazer efeito bem mais eficiente e estimulante para o espectador do que muitos filmes de sexo explícito. Mérito da direção de Cronenberg, vale dizer, que conduz a projeção com muita naturalidade, tornando agradável um tema que poderia soar hermético e entediante.
Da mesma forma, contribui muito para o sucesso da narrativa a competência do elenco e vou fazer aqui um elogio em especial a Michael Fassbender, intérprete de Jung. Sem dúvida, Fassbender é um dos melhores atores em atividade no cinema. Parece que se torna melhor a cada filme e compõe um tipo que se molda perfeitamente à ideia que fazemos de um cientista, aparentemente frio, mas que deixa escapar sentimentos aqui e acolá. Uma composição perfeita que é mais um atestado da grandeza desse ator sensacional, uma espécie de anti-canastrão. Por outro lado, se Viggo Mortensen não chega a ser tão genial, ele não deixa a peteca cair na pele do pai da Psicanálise, mostrando um Freud seguro, influente e dono de um leve tom autoritário, criando um tipo bastante tridimensional. Já Keira Knightley, apesar de alguns momentos de exagero (típico dela, não?), está no melhor momento de sua carreira na pele de Sabina Spielrein (ao lado de sua atuação em “Orgulho e Preconceito”, anos atrás). Por fim, Vincent Cassel tem participação até pequena, mas marcante, como o maluco-beleza Otto Gross, que exerce influência determinante nas futuras decisões de Carl Jung.
Entretanto, o longa falha justamente ao passar a impressão de que Jung, um estudioso cheio de convicções, criador da teoria do inconsciente coletivo, era um homem bastante influenciável, tomando decisões a reboque de opiniões alheias, caso não só de Gross, mas também de Freud e da própria Sabina. Simbólico, neste sentido, a sua confissão de que Freud era muito persuasivo em suas argumentações, conseguindo facilmente convencer seus interlocutores do seu ponto de vista. Também incomoda uma certa falta de foco do longa ao estabelecer suas duas vertentes, pois que ao estabelecer dois focos de atenção na trama, a relação de Jung com Freud e a outra com Sabina, fica a sensação de que ficou a desejar nos dois campos. Aliás, o longa é bastante curto (tem apenas 99 minutos de duração) e, nesse caso, faria bem se fossem adicionados uns 20 minutos para que alguns aspectos da trama fossem melhor desenvolvidos.
É possível, ainda, observar algumas conotações com o Holocausto judeu na Segunda Guerra, já que a condição judia de Freud e Sabina Spielrein é algo que adquire relevância no contexto do filme, assim como a etnia ariana de Jung (que adora Wagner) é algumas vezes sublinhada entre os diálogos. Será que a quebra da amizade entre Freud e Jung se dá porque o segundo (o “ariano”) se sente ameaçado pelo intelecto do primeiro (o “judeu”) ou vice-versa? Sendo sincero, esse é um subtexto que precisa ser reanalisado em outras visitas à obra, a qual está entre aquelas que precisam ser vistas mais de uma vez para compreendermos inteiramente suas nuances. Ultimamente, não são muitos os longas-metragens que me estimulam a mais uma olhada, mas “A Dangerous Method” consegue ser interessante a esse ponto. Filme que nos deixa pensando sobre suas implicações e reflexões para além de sua projeção é um artigo difícil de encontrar nos dias de hoje.
Cotação:
Nota: 9,0