sexta-feira, 26 de abril de 2013

Meu Pé de Laranja Lima

Sem sorrisos


Ainda lembro do meu prazer infantil ao ler “Meu Pé de Laranja Lima”, romance de teor fortemente autobiográfico publicado por José Mauro de Vasconcelos em 1968. As travessuras do protagonista Zezé, um menino traquino que a família e vizinhança afirmavam “ter o diabo no corpo”, traziam-me aquele sorriso aberto que só as crianças possuem e chegavam a me “inspirar” para as próprias traquinagens a serem praticadas em casa ou na escola. Ao mesmo tempo, sua páginas me faziam chorar, pois que a história de Zezé possuía contornos pra lá de tristes, capazes de gerar lágrimas em qualquer um, sendo criança ou não. Um livro marcante e bastante imaginativo, apto a cativar qualquer garoto e que também possuía um relevante contexto social que não escapava nem mesmo à minha apreciação imatura. O travesso protagonista era um garoto pobre, filho de um pai alcoólatra e desempregado que lhe batia com frequência. As diabruras do menino eram, mais do que qualquer outra coisa, uma forma de chamar a atenção para a sua carência. E o “pé de laranja lima” do título era o amigo que alçava a imaginação do garoto para além dos limites sofridos de sua realidade.

È verdade que o livro sempre foi visto com reservas pela crítica, a qual o acusava de apelar para o sentimentalismo. De forma inversa, foi um grande sucesso de público, alçando números de best-seller e logo sendo alvo de adaptações para outras mídias. Sua primeira versão cinematográfica, dirigida por Aurélio Teixeira, data de 1970 e no mesmo ano acabou virando novela na extinta TV Tupi, sendo ainda levado à televisão mais duas vezes, em 1980 e 1998, ambas na TV Bandeirantes. O sucesso editorial aliado à diversidade de veículos fez com que “Meu Pé de Laranja Lima” acabasse por ser assimilado pelo inconsciente coletivo brasileiro. Pelo menos entre as pessoas da minha geração, é difícil encontrar alguém que nunca tenha sequer ouvido falar do romance. Contudo, a ausência na mídia nas últimas duas décadas fez com que a história de Zezé se tornasse desconhecida pelas novas gerações, uma falha que precisava ser corrigida e que a produtora Kátia Machado e o diretor e roteirista Marcos Bernstein (eles escreveu o roteiro de “Central do Brasil”) resolveram suprir.



É possível afirmar que essa adaptação de 2013 foi bem sucedida, apesar de possuir um tom que destoa do original e que, até certo ponto, acabou me incomodando. Na trama, vemos o autor do livro (vivido na fase adulta por Caco Ciocler), já com este lançado comercialmente, viajar até sua cidade natal e relembrar os dias que o inspiraram a escrever sua obra. Assim, em flashback, vemos o dia a dia sofrido do garoto Zezé que, além de viver nas limitações da pobreza, ainda levava surras constantes não só do pai (viciado em álcool, como já mencionado), mas também da mãe e irmã mais velha. Sua grande amiga é a fruteira do título, para quem faz confidências e viaja por mundos imaginários, férteis em sua mente infantil. Uma amizade real é posteriormente estabelecida com o português Manuel Valadares, o “Portuga” (papel de José de Abreu), um homem solitário que vê no garoto a oportunidade de resgatar sentimentos paternais. Não vou revelar mais do enredo para quem não o conhece, mas um dos temas centrais da obra de Vasconcelos é a perda. Perder alguém, seja de que forma for, através da morte ou por desentendimentos ou desencontros da vida, é algo que nunca será fácil de lidar, ainda mais na infância. Claro que isso significa afirmar que a narrativa em questão possui contornos inegavelmente tristes, como já sublinhado ateriormente, mas Bernstein exagera na pegada dramática, tornando a trajetória de Zezé um sofrimento quase sem fim, divergindo das cores lúdicas presentes no texto de Vasconcelos. Por outro lado, não se pode negar que o longa emociona no seu último terço, tal como aconteceu com gerações de leitores e espectadores de suas adaptações.

Vale ressaltar, porém, que este é apenas o segundo longa-metragem dirigido por Bernstein (o anterior foi “O Outro Lado da Rua”, de 2004), o qual também escreveu o roteiro em parceria com Melanie Dimantas. Para um diretor ainda “verde”, Bernstein demonstra segurança, imprimindo um bom ritmo, muito embora ainda falhe em alguns aspectos, principalmente na condução do elenco ou talvez até na escolha dele. O ator mirim que interpreta Zezé, João Guilherme Ávila, desenvolve uma atuação bastante oscilante, alternando boas cenas com outras realmente medíocres, o que me leva a acreditar que sua escolha para o papel teve como origem o fato dele ser filho do cantor Leonardo. Não se quer aqui dizer que o garoto é um desastre. Ele tem boa presença nas cenas mais dramáticas e esse é justamente o maior problema, uma vez que não consegue ser expressivo nas sequências que pedem mais leveza, contribuindo decisivamente para o mencionado tom carregado da narrativa. Em contrapartida, José de Abreu está ótimo na pele do grande amigo português de Zezé, destacando-se como a melhor presença cênica. Tivesse um elenco mais homogêneo, fatalmente a película poderia atingir níveis de excelência.



Embora se mostre um saudável respiro em relação ao padrão “Globo Filmes” que costuma dominar o circuito comercial brasileiro, o caráter excessivamente dramático desta nova versão de “Meu Pé de Laranja Lima” possivelmente irá afugentar aquele público que deveria ser o seu maior alvo, o infantil, mas isso também não significa falta de qualidade. A força da obra literária permanece em boa medida e as travessuras e desventuras de Zezé tocarão o público, mesmo que seja o adulto. Destarte, essa circunstância provavelmente levará a produção a se tornar um fracasso de bilheteria, uma vez que muitos adultos poderão deixar de pagar o ingresso por imaginar se tratar de um filme para crianças. Uma pena que o resgate de um livro tão bem quisto na cultura nacional esteja fadado a passar em brancas nuvens nas salas de exibição.


Cotação:



Nota: 8,0

terça-feira, 16 de abril de 2013

Oblivion

A continuação de “Guerra dos Mundos”


Na atual crise de criatividade do cinema norte-americano, é um alívio assistir a um filme pipoca que não seja sequência ou remake de outro. Tudo bem, “Oblivion” é baseado em uma HQ, mas não é uma daquelas publicadas pela Marvel Comics, com seus super-heróis que, em boa medida, já estão cansando na tela (ou alguém está realmente empolgado com a breve estreia de “Homem de Ferro 3”?). A graphic novell adaptada é de autoria do próprio diretor do longa, Joseph Kosinski (que escreveu a HQ ao lado de Arvid Nelson) e, talvez por essa circunstância, a trama é salpicada de referências cinematográficas a outros longas de ficção científica, algo que, como demonstra a carreira do genial Quentin Tarantino, pode trazer ótimos resultados.

Vamos admitir: Kosinski não atinge o nível de excelência tarantinesco na sua mistura de referências, mas é prazeroso assistir a um filme que relembre aquele que telavez seja o melhor curta-metragem de todos os tempos, “La Jetée”, dirigido por Chris Marker em 1962. A sequência inicial de “Oblivion” remete a esse último e a lembrança de “La Jetée” me atingiu de tal forma que me distraiu um pouco das cenas subsequentes. Mas nada que viesse a comprometer o entendimento da trama, na realidade mais uma ficção pós-apocalíptica, só que desta vez os responsáveis pela destruição do planeta Terra foram os alienígenas. Afinal, vale lembrar que o mercado estadunidense pós-crise econômica está em baixa e Hollywood depende cada vez mais do mercado internacional para fechar suas contas. Portanto, não pega bem inventar guerras nucleares com altranos e sicranos (leia-se, russos, árabes e afins) que levariam a uma hecatombe. Nesse quadro, melhor atribuir o “fim do mundo” a perigosos micro-organismos (como no caso de “Eu Sou a Lenda”, de Francis Lawrence) ou a extraterrestres, muito embora, neste último caso, os alienígenas não deixem de representar a eterna xenofobia ianque.


Na trama, narrada em primeira pessoa e protagonizada por Tom Cruise (que está cada vez mais assumindo um perfil de astro de filmes de ação), Jack Harper é um dos poucos humanos sobreviventes após a guerra dos mundos que tornou boa parte da Terra inabitável, o que me leva a imaginar que “Oblivion” poderia ser uma continuação do “Guerra dos Mundos” de Steven Spielberg (até o ator é o mesmo). Enquanto a maior parte da humanidade não vive mais no planeta, residindo no espaço e na lua de Saturno chamada Titan, Harper e sua companheira Victoria (Andrea Riseborough) permanecem na Terra exercendo uma função de vigilância, evitando que os “saqueadores” - aliens ainda resistentes em solo terrestre - destruam os drones (robôs patrulheiros). Além disso, passa as horas vagas resgatando as “relíquias” de um passado glorioso da humanidade, como discos, bonecos e livros (remetendo bastante a “Wall-E”, famosa animação da Pixar vencedora do Oscar). As coisas começam a mudar quando a humana Julia (Olga Kurylenko) é encontrada por Harper em uma cápsula criogênica após a queda de uma nave na região que controla. Ela lhe desperta vagas memórias, de um passado que não sabe exatamente se viveu, e acabará por lhe trazer revelações e descobertas acerca de sua própria existência.

Eu não assisti a “Tron – O Legado” (Tron – Legacy, 2010), trabalho anterior de Kosinski, mas, a partir da experiência com “Oblivion”, percebe-se que ele sabe manter o ritmo da ação sem que haja pressa no desenrolar dos fatos e apresentação dos personagens. Fazer um filme de ação não significa que seu enredo tenha de ser mal contado e Kosinski demonstra entender muito bem tal aspecto, mesmo que sua mise-en-scène seja tradicional, não apresentando nem mesmo ângulos diferenciados. A trama resta bem contada e isso se torna um elogio ainda maior diante de algumas “reviravoltas” que ela apresenta em sua segunda metade. Pena termos que colocar a palavra “reviravoltas” entre aspas, já que várias delas são até esperadas. Os problemas do longa são justamente esses artifícios do roteiro, previsíveis em vários aspectos. Ademais, as citadas referências vão se tornando cada vez mais óbvias, chegando a tornar incômodas. É o que sucede no seu desfecho, quando “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (2001 – A Space Odissey, 1968) é referenciado de forma tão ostensiva que chega a se tornar constrangedor (não vou contar como para não escrever um “spoiler” gigante). Outro problema é que a mencionada narração em primeira pessoa se perde ao longo da projeção, sendo quase que esquecida no seu último terço.


Entre as atuações, as mulheres, mesmo em minoria, mostram-se mais interessantes e comprometidas do que a ala masculina do elenco. Tanto Andrea Riseborough, intérprete de Victoria, quanto Olga Kurylenko, que encarna Julia, apresentam boas atuações. Já o superastro Tom Cruise não faz nada de significativamente diferente dos seus últimos papeis. Talvez esteja aqui um pouco mais “sério” do que de costume, com menos aparições do seu tradicional sorriso “colgate”, mas, de toda forma, seria estranho se um personagem de um mundo devastado ficasse abrindo sorrisos por qualquer coisa. Outro nome do primeiro escalão, Morgan Freeman, atua em piloto automático, tornando-se um coadjuvante de luxo.

O longa conta, ainda, com uma bela direção de arte (algo natural vindo de cineasta que é arquiteto por formação), fator que contribui bastante para a imersão do público, além de uma trilha sonora pop repleta de clássicos do Rock (de Led Zepellin a Procol Harum) Entretanto, não espere de “Oblivion” mais do que ele pode dar. Trata-se tão somente de uma boa diversão. Com neurônios, é importante frisar, mas nada mais do que isso. Para usar a comparação com o referido filme de Stanley Kubrick, “Oblivion” não irá gerar décadas de debates, estudos e discussões a respeito de suas verdadeiras pretensões e interpretações. A não ser no que se refere ao título. Terminada a projeção, eu não entendi por que a película leva esse nome. Será que minha surpresa com as referências a “La Jetée” me distraíram o suficiente para passar batido nesse detalhe?


Cotação:



Nota: 8,0

Em tempo: consultando o tradutor do Google acabei descobrindo que "oblivion" é um termo em inglês que significa "esquecimento" (não conhecia a palavra), o que possui, sim, relação com a trama. Ok. Então o erro foi da distribuidora no Brasil que decidiu permanecer com o título original, o que pode deixar nosso público voando.

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Aviso: O "Cinema Com Pimenta" estará em recesso por cerca de 10 dias, pois este blogueiro curtirá um merecido descanso em uma das praias do litoral aqui do Rio Grande do Norte. Um abraço a todos e até a volta!

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Filmes Para Ver Antes de Morrer

À Espera de Um Milagre
(The Green Mile, 1999)


Filme para deixar saudades


Frank Darabont, diretor e roteirista francês radicado há anos nos EUA, é um cineasta que parece ter um enorme talento para adaptar os livros de Stephen King para a tela grande. Em sua estreia na direção com “Um Sonho de Liberdade” (The Shawshank Rendemption, 1994), ele já demonstrava grande competência para contar histórias, aliando sofisticação na direção com uma certa habilidade para tocar o público médio dos cinemas sem parecer piegas, algo especialmente surpreendente vindo de alguém que estava debutando por trás das câmeras. E são essas mesmas aptidões que ele coloca em relevo com “À Espera de Um Milagre”, o seu segundo longa-metragem e segunda adaptação de uma obra de King (lançada em 1996 e originalmente dividida em 6 partes) , um autor muito adaptado, mas nem sempre com a mesma eficiência. Em mãos inábeis, uma trama como a de “The Green Mile” poderia resultar em uma autêntica bomba. Sua originalidade é latente e até mesmo por isso fica difícil encontrar o tom correto para ser abordada. Felizmente, mesmo com alguns percalços, Darabont atingiu o equilíbrio, tendo realizado um filme memorável em vários aspectos.

Convém lembrar, conforme escrevi tempos atrás em resenha sobre “O Nevoeiro” (The Mist, 2008) - outra transposição de Darabont para uma obra de King – que este cineasta aparenta certa predileção por ambientes claustrofóbicos. Tal como no mencionado “Um Sonho de Liberdade”, a narrativa de “À Espera de Um Milagre” se desenvolve quase inteiramente dentro um presídio, sendo aqui mais precisamente no corredor da morte a que os carcereiros atribuem o apelido de “milha verde”, devido ao chão de cerâmicas esverdeadas (daí o título original do longa). É lá que trabalhou Paul Edgecombe (Tom Hanks, no auge da forma), um ex-agente penitenciário que narra em flashback os acontecimentos estranhos e mágicos que sucederam na “milha” no já longínquo ano de 1935. Sua função, ao lado de outros carcereiros, era não apenas a de vigiar os detentos, mas também a de lhes conferir um tratamento diferenciado, mais humano do que o normalmente adotado para os outros presos. Afinal, os reclusos da “milha” estão com os dias contados e é necessário manter a dignidade e sanidade daqueles que irão pagar a mais alta dívida com a sociedade. Nesse contexto, chega mais um condenado, um homem gigantesco chamado John Coffey (Michael Clarke Duncan). Aparentemente assustador, até pelo crime pelo qual foi condenado (o estupro e assassinato de duas meninas), Coffey aos poucos vai se mostrando uma pessoa dócil, de coração puro, solidária e que possui um estranho e mágico poder que espanta a todos que o cercam.



É possível enxergar “The Green Mile” com um libelo contra a pena de morte, esse anacronismo estúpido ainda existente em alguns países. Nos Estados Unidos, mesmo que vários estados já a tenham abolido, a pena capital ainda perdura em alguns mais atrasados. A humanização dos personagens detentos realizada por Darabont se presta exatamente a nos fazer refletir sobre essa atrocidade sempre incensada quando um crime mais bárbaro choca a sociedade. No decorrer da trama, vamos conhecendo cada um dos tipos que estão no corredor da morte e é impossível ficar indiferente ao terror psicológico a que são submetidos os condenados no momento da execução. Neste ponto em particular, o diretor se vale de sequências sem concessões, onde a morte dos executados é mostrada em toda a sua crueza e desumanidade. Observe-se, ademais, que o roteiro se furta a mostrar quais os crimes cometidos por alguns dos presos, fazendo-nos enxergá-los tão somente como seres humanos, evitando que o espectador, assim, ofereça julgamentos. É verdade que, diante de tal manobra de Darabont, seu filme possa ser apontado como manipulador. Entretanto, quando se trata de defender um ponto de vista é natural apresentar os argumentos que lhe dão respaldo, em detrimento dos desfavoráveis, e não existe qualquer problema em um artista abraçar uma causa, ainda mais quando se consegue apresenta-la de maneira tão interessante e inteligente quanto aqui.

O grande trunfo de Darabont é desenvolver sua história sem qualquer pressa, apresentando cada um dos personagens com cuidado. As nuances de cada um deles são tão bem delineadas que às vezes parece que estamos a ler uma obra literária e não assistindo a um filme. E assim, vamos conhecendo o perfil não apenas do protagonista Edgecombe, como também dos outros guardas, dentre os quais se destacam Brutal (David Morse, ótimo), o emotivo Dean Stanton (Berry Pepper, de “O Resgate do Soldado Ryan”) e o mau caráter Percy (Doug Hutchison), além de outros prisioneiros como Eduard “Del” Delacroix (Michael Jeter) e o nefasto “Wild Bill” (Sam Rockwell). Até mesmo um ratinho de habilidades especiais, apelidado de “Mr. Jingles”, ganha destaque e tem participação importante no decorrer da trama. Vale dizer que Daranbont soube extrair o melhor de cada ator e não há um deles que esteja caricato ou apático em suas performances. Por outro lado, falhou ao atribuir características unidimensionais aos “vilões” Percy e Wild Bill, tornando-os tão somente “homens maus” e incorrendo em um maniqueísmo indesejável. Os personagens, contudo, não deixam de ser extremamente marcantes e John Coffey, o imenso presidiário de bom coração de Michael Clarke Duncan, com certeza é um dos tipos mais marcantes da história do cinema. Não por acaso rendeu ao ator uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante e fez com que ele se tornasse, por esse único e marcante papel, um nome lembrado com carinho pelo grande público (tanto que sua morte, com apenas 54 anos, foi noticiada com destaque em todas as mídias). Ademais, Tom Hanks estava ainda em grande fase, entregando mais uma de suas memoráveis atuações.


Com uma edição precisa, a qual faz com que as longas três horas e oito minutos de projeção não sejam percebidas, “À Espera de Um Milagre” é um daqueles filmes que nos deixam saudades quando terminam. A imaginativa trama criada por Stephen King pode ser vista, inclusive, como uma alegoria sobre a vida de Cristo, [SPOILER] dado que John possui os mesmos poderes milagrosos de Jesus e também é condenado e executado injustamente (poderíamos até imaginar que Edgecombe faria o papel de Pilatos na trama) [FIM DE SPOILER]. Destarte, para além de possíveis interpretações e significados ocultos, são seus personagens fortes e cativantes que ficarão na memória do espectador por muito tempo. A série “Filmes Para Ver Antes de Morrer” normalmente é dedicada a películas que atingem um nível de excelência à prova de falhas, o que, como já apontado mais acima, não é bem o caso presente, tendo em vista a presença de certo maniqueísmo e manipulações em favor de um ponto de vista. Entretanto, a força de sua narrativa, a qual torna impossível a indiferença do público, coloca este longa como essencial e digno de figurar entre aqueles a que devemos assistir pelo menos uma vez na vida.


Cotação:



Nota: 9,5

sábado, 6 de abril de 2013

Para Ver Em Um Dia de Chuva

À Beira do Abismo
(The Big Sleep, 1946)


Divertidamente confuso


O Noir é o gênero cinematográfico que provavelmente mais desperta a curiosidade e atenção dos cinéfilos ao longo das décadas. Se é que podemos definir o “noir” como um gênero, é importante ressaltar. Talvez seria mais correto defini-lo como um estilo de criação cinematográfica, já que alguns filmes ditos “noir” pendem mais para o drama, outros para o policial, suspense e até comédia. De qualquer forma, a iconografia do cinema noir, com seus personagens fumantes, vestindo sobretudos ou vestidos provocantes, envoltos em tramas geralmente misteriosas, é algo que já faz parte do inconsciente coletivo mundial e, em boa medida, serve de atestado da força do cinema Hollywoodiano na cultura popular. Entretanto, dentro da fluidez do conceito de cinema noir – na verdade uma definição elaborada pela turma francesa da Nouvelle Vague – existem aqueles filmes que se aproximam mais ou menos de seus padrões característicos. “À Beira do Abismo!, longa-metragem dirigido pelo mestre Howard Hawks em 1946, com certeza está entre aqueles que mais realçam os traços roteirísticos e imagéticos desse estilo tão estudado, charmoso e idolatrado.

Baseado em um romance policial de Raymond Chandler, o filme tem fama de possuir um roteiro muito confuso, dado o excesso de nomes e reviravoltas que vão acontecendo no seu desenrolar. É verdade. Tanto que o próprio Raymond Chandler admitiu que seu livro era confuso e, ao terminarmos de assistir à adaptação cinematográfica - que teve o roteiro assinado por ninguém menos que William Faulkner (Nobel de literatura em 1949) - a sensação é de não termos entendido boa parte do que se passou. Entretanto, isso nem de longe significa afirmar que “À Beira do Abismo” é um filme ruim. Sua narrativa complicada, repleta de diálogos ágeis e personagens que vão entrando e saindo sem que se perceba sua real importância, não deixa de ser muito divertida, espirituosa e inteligente. Aliás, em geral são assim os filmes dirigidos por Hawks, um daqueles cineastas que, mesmo dentro do chamado “studio System”, quando os diretores não tinham muito controle sobre a obra, conseguia imprimir aspectos autorais em seus trabalhos.


Aqui, ele repetiu a dose com o casal central, interpretados por Humphrey Bogart e Lauren Bacall, os mesmos de “Uma Aventura na Martinica” (To Have and Have Not, 1944), realizado dois anos antes. A dupla tinha efeito enorme sucesso junto ao público, dada a ótima química em cena. Na verdade, a química entre os dois era tão boa que eles já estavam vivendo um romance também fora das telas e se casariam apenas seis meses depois da filmagens de “The Big Sleep”. Com o respaldo da boa bilheteria, Hawks então se sentiu à vontade para deixar fluir os diálogos espirituosos e insinuantes entre a dupla, além de preencher os vários coadjuvantes com tipos característicos de sua filmografia. As mulheres, por exemplo, são as costumeiras “atiradas”, comuns nos longas de Hawks. Philip Marlowe, o detetive interpretado por Bogart, é alvo de “cantadas” mais ou menos diretas de praticamente todas as mulheres que surgem ao longo da narrativa, até mesmo de uma motorista de táxi e da proprietária de uma livraria (esta última sendo uma ótima presença de Dorothy Malone). Essas fêmeas pró-ativas de sua obra, que atingiriam o ponto máximo com Marilyn Monroe em “Os Homens Preferem as Loiras” (Gentlemen Prefer Blondes, 1953), possivelmente representam as fantasias do cineasta, denotando que este era o seu perfil preferido de mulheres.

Mas não é só no campo das metáforas que está presente a mão do diretor. O longa é imageticamente impecável e, como já frisado mais acima, apresenta todos os elementos estéticos típicos do cinema noir. Desde os créditos iniciais os cigarros estão presentes, destoando completamente do perfil antitabagista da Hollywood contemporânea. O detetive Marlowe passa quase toda a projeção vestindo sobretudo; a trama se passa praticamente inteira durante o período noturno e a fotografia em preto e branco de forte contraste complementa o tom soturno da projeção, a qual, no fundo, gira em torno de uma menina mimada, Carmen Sterwood (Martha Vickers), a dor de cabeça do pai, o General Sternwood (Charles Waldron). É o general que contrata Marlowe, um detetive acostumado a enfrentar o submundo, para investigar Arthur Geiger, credor de enorme quantia em dívidas de jogo assumidas por Carmen. Na mesma oportunidade, ele é abordado por Vivian Rutledge (Bacall), irmã mais velha de Carmen, a qual acredita que a origem dos problemas está no desaparecimento de um empregado e amigo do pai, um tal de Shawn Regan. A partir de então, sucedem-se assassinatos, charadas e romances que se misturam, deixando o espectador ligado em um enredo divertidamente confuso.


Como frisado mais acima, Bogart e Bacall sustentam um ótimo jogo amoroso ao longo da projeção. Ele com seu estilo cínico, sempre dono da situação, e ela com seu olhar e maneiras imponentes, os quais a faziam parecer mais bonita do que realmente era. Todavia, cabe apontar que o elenco coadjuvante é bastante eficiente. Alguns afirmam, inclusive, que boa parte das cenas de Martha Vickers teriam ficado de fora da edição final devido à competência de sua interpretação para Carmen Sternwood, ofuscando o brilho da estrela Lauren Bacall. Não vi a versão do diretor presente na edição brasileira lançada pela Versátil e, sendo assim, não pude aferir a veracidade de tal afirmação. De qualquer forma, na versão original exibida nos cinemas, Martha Vickers realmente rouba as cenas das quais participa, mesmo que não sejam muitas, atribuindo uma condição perturbada à personagem de Carmen. Outro ponto relevante é a trilha sonora de Max Steiner (o mesmo compositor das trilhas de nada mais, nada menos que “Casablanca” e “...E o Vento Levou"), conferindo um boa dose de suspense nos momentos-chave da trama.

É possível que você, leitor, ao assistir “À Beira do Abismo”, fique com sensação de não ter entendido muita coisa. Por outro lado, também é provável que deseje repetir a experiência para tentar montar esse quebra-cabeças. É assim que o longa de Hawks deve ser encarado: um quebra-cabeças que lhe trará 114 minutos de diversão, auxiliado pela presença luxuosa de dois grandes astros do cinema norte-americano, complementada pela direção sofisticada e inteligente desse grande cineasta. Além, claro, de se ter uma bela aula sobre o que foi o cinema noir, com seus mistérios, mulheres fatais e detetives durões.


Cotação:



 Nota: 9,0